1. Agente genocida: Estados Unidos da América
Local: Filipinas, ano 1900.
O escritor americano D.W. Lawrence expressou em 1930 que “a consciência deliberada de americanos tão loiros e de fala tão mansa encobre, por baixo, uma consciência diabólica. Destrua! Destrua! Murmura a consciência profunda. Ame e produza! Ame e produza! Repete a consciência aparente. E o mundo só ouve esse grasnido. Recusa-se a ouvir o murmúrio subjacente da destruição. Até o momento em que é obrigado a ouvir. O americano precisa destruir. É o seu destino!”
O primeiro massacre praticado por aqueles homens e mulheres “tão loiros e de fala tão mansa” foi contra os antigos povos que residiam nas Américas, os “peles vermelhas”. O segundo grande genocídio ocorreu longe da América, no Arquipélago das Filipinas.
Desde meados do século XIX os EUA desejavam se apossar do que restara do império espanhol: Filipinas, Havaí e Cuba. Em 1898, após um agravamento das relações diplomáticas entre os dois Países, um navio de guerra dos EUA explodiu no porto de Havana. Os EUA acusaram a Espanha de sabotagem e iniciaram a Guerra Híspano – Americana de 1898, que resultou na rápida derrota da Espanha.
Como o governo dos EUA prometera a independência para a população das províncias cobiçadas, cubanos e filipinos haviam-se uniram ao esforço de guerra americano. O presidente William McKinley declarou publicamente que se os EUA passassem à anexação das Filipinas, descumprindo as promessas e acordos feitos com o povo filipino, isso “seria, de acordo com o nosso código moral, uma agressão criminosa”.
No entanto, foi exatamente a agressão criminosa que ocorreu. Depois da derrota da Espanha, os Estados Unidos voltaram-se contra o povo filipino e invadiram as Filipinas, com o objetivo de tornarem-na colônia de exploração agrícola. McKinley explicou ao mundo, “que os filipinos eram incapazes de se autogovernarem”, e “Deus lhe tinha dito que Os Estados Unidos da América não poderiam fazer nada melhor que educar e cristianizá-los”.
Os filipinos, assim que os derrotados espanhóis abandonaram o arquipélago, declararam sua própria independência, em junho de 1898. Em janeiro de 189, Emílio Aguinaldo foi eleito e empossado como o primeiro presidente da república. Tratou de organizar um congresso e elaborar uma constituição democrática, nos mesmos moldes da americana.
Mas, o nascente imperialismo americano tinha outros objetivos. Em fins de 1898, um exército composto por 11 000 soldados americanos foi enviado para ocupar as ilhas. Posteriormente, mais 8 000 soldados se incorporariam à tropa de extermínio.
Cadáveres de camponeses assassinados e colocados por empilhadiras em valas comuns
As hostilidades começaram em fevereiro de 1899. A única cidade da ilha sob controle das tropas invasoras era Manilha. O presidente dos EUA, William McKinley, disse mais tarde aos jornalistas “que os insurgentes atacaram Manilha”, a fim de justificar a violência sem medidas que suas tropas utilizariam.
Em março de 1900, Emilio Aguinaldo, o presidente das Filipinas, foi capturado pelas forças invasoras e feito prisioneiro de guerra. Em junho, Galicano Aplacible, o primeiro embaixador das Filipinas nos EUA, que havia fugido para o Canadá no ano anterior, escreveu uma carta apaixonada ao povo dos EUA, implorando-lhe para que o massacre contra o seu país cessasse.
Pese o terror imposto na cidade, a luta de guerrilha no campo continuou. Entretanto, em setembro de 1903, sofreu um forte golpe quando Ola Simão, um dos chefes resistentes, foi capturado, morto e seu cadáver exposto em via pública para ser devorado pelos corvos.
Estando o presidente Aguinaldo prisioneiro,Macário Sacay, o vice-presidente, assumiu a liderança dos filipinos. Convidado para uma conferência de paz com o comando dos invasores, também foi feito prisioneiro e enforcado pelos mesmos, em 1907.
Para destruir a guerrilha e a resistência campesina- muçulmana, os EUA decidem-se pela destruição em massa do povo filipino: destroem cidades e vilas com incêndios propositais; atua se para quebrar o moral do povo, realizando estupros em massa, onde as filipinas jovens eram postas em fila e estupradas coletivamente pelas tropas. Os fuzilamentos e a tortura generalizaram-se.
A tática de remoção da população das áreas de guerrilha, que foi posteriormente utilizada no Vietnã, teve sua “ avant première”: centenas de milhares de aldeões foram removidos para áreas ermas sem quaisquer condições de plantio, vindo a morrer de fome. Outras pessoas foram vítimas da política de concentração de civis em “zonas protegidas” – um eufemismo para trancafiá-las em campos de concentração, que nada deixariam a desejar em relação aos nazistas, quarenta anos após. O comandante de um dos campos chamou-o de “subúrbio do inferno”.
Na província de Batangas, o General Franklin Bell ordenou, em 25 de dezembro de 1901, que toda a população de duas províncias inteiras das Filipinas, Batangas e Laguna, fossem presas em campos de concentração. Tudo o que não pudessem carregar com o corpo deveria ficar para trás, incluindo casas, roças, sementes para o plantio e o sustento de suas famílias. Todos os pertences deixados para trás foram queimados pelo Exército dos EUA. Todo aquele morador que estivesse fora dos campos de concentração deveria ser executado de imediato.
Em novembro de 1901, o correspondente em Manila do Philadelphia Ledger relatou: “Nossos homens são implacáveis, estão exterminando homens, mulheres, crianças, prisioneiros e detidos, supostos insurgentes e suspeitos de ajudar a guerrilha, meninos de dez anos para cima; a ideia que prevalece é a de que um filipino não é melhor que um cão.”
Escrevendo em 1970, sob o título de “Nossa My Lai de 1900”, Stuart Miller registrou que: “ Em 1900, cartas de soldados a parentes descrevem com naturalidade o uso de balas dundum, o fuzilamento retaliatório de prisioneiros e a instalação de campos de concentração para civis. Em uma das cartas para a mãe, um jovem soldado relata seu prazer em abater a tiros homens , mulheres e crianças, como se fossem “coelhos em fuga”. E que, quando os filipinos conseguiam se esconder nos matos , o cães os retaliavam. O tenente Hall declarou aos jornais que o general Funston mandava fuzilar, como rotina, todo e qualquer prisioneiro”.
Em 1908, Manuel Arellano Remondo constatou: “A população diminuiu devido à guerra. No prazo de cinco anos, a população que fora estimada em nove milhões, no presente (1908), não alcança oito milhões de pessoas.”
O historiador filipino E. San Juan Jr., afirma que a morte de 1,4 milhões de filipinos foi um ato claro e gravíssimo de genocídio, jamais reconhecido pelo Estado americano, até os dias de hoje. O caráter de genocídio fica claro quando se compara o número de baixas dos revoltosos filipinos com o de civis, alvo prioritário americano: enquanto 16 000 insurgentes filipinos foram torturados e mortos, assassinaram-se mais de 1 milhão de civis.
Na imagem do jornal “New Yorker” vemos a inscrição: “matem todos os maiores de dez anos, uma ordem do general Jacobs”.
Na imagem do jornal “New Yorker” . Lemos a inscrição: “matem todos os maiores de dez anos, uma ordem do general Jacobs”.
2. Os Genocidas
O genocídio é um tema do presente, do passado e do futuro da humanidade. No entanto, se a ação genocida é muito antiga, a palavra que a designa é recente, tendo sido cunhada em 1930 pelo jurista Raphael Lemkin, judeu polonês, que requereu à Liga das Nações que proclamasse uma lei contra o assassinato em massa de grupos raciais ou nacionais minoritários.
Malreaux, em “A Condição Humana”, disse que a morte transforma certas vítimas em destino e que a lembrança do sofrimento transforma-se em uma salvaguarda contra o sofrimento. Enquanto isso, Wiesel sentenciou ter sido “Auschwitz o ponto zero da História, o começo e o fim de tudo o que existe. É a referência final, e em relação a ele, tudo será julgado. Por termos visto o triunfo das trevas, temos que falar sobre o sofrimento e a resistência de suas vítimas. Por que vimos o mal em ação, temos que denunciá-lo. Temos de combatê-lo sem dar um minuto de trégua e salvar o mundo do contágio!”
Auschwitz, Hiroshima e My Lai nos ensinaram que assassinato, desenvolvimento tecnológico, sociedade de massas não se excluem mutuamente.
A agressão, em si mesma, é energia humana, energia vital e pode ser direcionada para a destruição. Para Charny, dois tipos de energias condicionam a vida humana: uma criativa e a outra destrutiva. A primeira busca mover-se, entrar em comunhão com outros seres. Já a destrutiva quer a morte. O Eros e o Tânatus freudianos. Fromm diferencia a agressão entre benigna e patológica. A primeira seria acidental, brincalhona, auto-assertiva e defensiva. A segunda incluiria energias para conquista de poder, vingança e sadismo.
Na Alemanha nazista, pelo menos 275 mil homens , mulheres e crianças foram declarados “inferiores”e executados em hospitais psiquiátricos. Até enurese noturna foi causa de execução infantil, ordenada por médicos psiquiatras para crianças arianas.
Maslow, ainda sobre a agressividade humana, nos diz que ela, assim como a hostilidade, a discórdia, o conflito, a crueldade e o sadismo, são experiências comuns e talvez universais no sofá do psicanalista, isto é, na fantasia do sonho, no sonho. “Suponho que a qualidade da agressão mude acentuadamente quando progredimos da imaturidade psicológica ou da neurose para a auto-individualização ou para a maturidade; que o comportamento sadístico, cruel ou mesquinho seja um aspecto da agressão encontrada no indivíduo subdesenvolvido, neurótico ou imaturo. Mas se ele evolui para a maturidade pessoal e para a liberdade, a qualidade dessa agressão transforma-se em indignação reativa ou justa, em auto-afirmação, resistência à dominação e à exploração, em paixão pela justiça, etc.”.
Laing realizou um estudo em que concluiu que apenas “nos últimos 50 anos nós, seres humanos, massacramos mais de 100 milhões de membros de nossa própria espécie (o período analisado foi de 1920 a 1970) .” O século XX superou a marca de 120 milhões de assassinatos em massa.
O Dr. Kelley pesquisou o comportamento de diversos líderes nazistas e concluiu que eles não eram tipos sem iguais, diferenciados. Que eles tiveram três notáveis características em comum e a oportunidade de tomar o poder: “ambição arrogante, baixos padões éticos e um nacionalismo fortemente desenvolvido, que justificava tudo que fosse feito pela pátria alemã”.
Os genocidas e torturadores desenvolvem padrões de comportamento semelhantes: eles racionalizam e atenuam seus atos, de modo que, com grande sinceridade, acreditam estarem agindo em uma espécie de autodefesa deste ou daquele tipo. Chegam a um ponto em que eles já não mais reconhecem o motivo pelo qual realizam a destruição que praticam.
Em muitos aspectos, o homem tende a ser um ser egoísta e atormentado, carente de identidade, com dificuldade de experimentar qualquer ligação com a tragédia do outro. Entretanto, o futuro genocida dá muitos passos além. Ele, mesmo em seus melhores dias , é levado a relegar os outros, os diferentes de si próprio, a um status inferior. Daí a atormentá-los, explorá-los e destruí-los é quase uma decorrência. Pois o denominador comum da perseguição racial, da caça às bruxas, da experimentação médica com seres humanos é a desvalorização da vida humana. Logo que o ser humano é classificado e rotulado como inferior, ele se torna boa presa para os torturadores e genocidas em geral, pois desumanizar outras pessoas redefine-as efetivamente como não pertencentes à espécie humana. A desumanização torna o outro como imerecedor da proteção devida a membros de nossa própria espécie.
Por outro lado, o poder e a lei figuram ao lado do opressor e ambos têm origem na autoridade que sanciona a desvalorização da vida humana. Shapiro pesquisou os editais de concorrência pública que os nazistas abriram para construção das câmaras de gás. Listamos algumas respostas de mega-empresas fornecedoras do Estado Nazista, algumas até hoje existentes:
1. Tpos e Filhos, Erfurt, fabricantes de equipamentos de aquecimento. “Acusamos o recebimento de sua encomenda de cinco fornos triplos, incluindo dois elevadores elétricos para retirar os cadáveres e um elevador de emergência…”
2. Vidier Works, Berlim: “Para introduzir os corpos nos fornos, sugerimos simplesmente um garfo de metal movendo-se sobre cilindros…”
3. C.H. Kori: “Garantimos a eficácia dos fornos de cremação, bem como sua durabilidade, o emprego dos melhores materiais e nossa perícia impecável”.
Dr. Charny, analisando psiquiatricamente genocidas, concluiu que “ eles não foram considerados anormais em termos dos conceitos clínicos correntes. Apenas se redefinirmos o objetivo do diagnóstico psiquiátrico para focalizar não em que medida a pessoa é sã de espírito, realista ou competente, mas em que grau ela é humana, a questão adquire mais sentido. No genocida há uma despersonalização, isto é, uma incapacidade de sentir a grandiosidade do processo de vida em si mesmo ou em outro ser humano. Ele considera as pessoas como objetos inexpressivos, destinados a receber ordens e a serem postos em seus lugares. A submissão aos ditames do grupo, ao fuehrer ou ao “deus do eletrochoque” é o valor final para o genocida”.
Ainda o mesmo Dr. Charny concede que “claro que existem genocidas impelidos por emoções, outros por ambição desmedida , loucos pelo poder. Alguns até mereceriam o rótulo de paranoicos ou psicopatas. Estes sempre desempenharam um papel decisivo no núcleo do poder nazista. Mas sem o apoio de líderes “normais e respeitáveis” da sociedade, sem uma grande adesão do povo e sem certas tendências culturais , dificilmente a catástrofe nazista teria assumido sua magnitude”.
O “Caso Eichmann” foi profundamente analisado por psicanalistas e filósofos. As conclusões a que Arendt chegou podem ser esquematizadas da seguinte forma:
1. Eichmann carecia inteiramente do senso de ser;
2. A sexualidade deixava-o embaraçado;
3. Ficava perturbado com temas emocionais de agressão;
4. O que lhe importava era reduzir toda a vida à ordem, ao não movimento, à não emoção, de modo que a vida ao seu redor pudesse ser controlada.
Conclusão psiquiátrica: perfeito estado de sanidade mental!
Ele era um funcionário calmo, “bem equilibrado”, imperturbável, desencumbindo perfeitamente seu trabalho burocrático, ou seja, a supervisão administrativa dos assassinatos em massa. Eichmann sentia profundo respeito pelo sistema, pela lei e pela ordem, fiel servidor de um grande Estado. Não possuía remorsos pelos milhares de assassinatos dos quais foi o líder; era “mentalmente são”e bem adaptado.
Seus chefes poderiam ser até mesmo psicóticos, não ele. Afinal, quem confiaria um serviço de inteligência e supervisão administrativa a um psicótico? Os psicóticos são suspeitos; já os mentalmente sãos são pessoas bem adequadas, cumpridoras das regras, lógicos, que estarão obedecendo a ordens que consideram sensatas, que lhes chegaram através da cadeia de comando. E devido a sua sanidade mental, eles não terão remorsos depois das ordens cumpridas, tal qual Eichman.
De tal forma que o foco real na vida de um destruidor talvez não seja a destruição como tal, mas a imposição da ordem e a uniformidade em tudo. A coisificação do outro, que o transforma em escravo, facilita a agressão e a exploração cada vez maior da vítima.
Para encerrarmos esse nosso ensaio sobre o genocídio, permitimo-nos citar Laing: “Temos que defender a realidade contra o vazio, a burla e o mal da Irrealidade. É por isso que estamos lutando. Para defender o real contra o irreal. A verdade contra a falsidade. A vida plena contra a vida vazia, o bem contra o mal. O que é contra e o que não é. Eles são muito reais, de modo que vamos ter que recomeçar …Mas então do que é que estamos nos defendendo? De nada? Oh, não, do perigo, da ameaça do inimigo. Eles são reais. Eles são perigosos, eles existem, enquanto existem, corremos perigo. Portanto, temos de destruí-los e eles têm que destruir-nos para impedir que os destruamos, e temos que destruí-los antes que eles nos destruam…esse é o ponto em que estamos nesse momento. Não precisamos nos preocupar com o fato de que a taxa de mortes entre Eles e Nós fique alta demais. Há sempre mais do lugar de onde eles vêm. De dentro de nós mesmos!