Edgar Allan Poe, o alvorecer da literatura clássica americana.

“Sou espantosamente preguiçoso e maravilhosamente ativo, mas a espaços. Há períodos em que toda atividade intelectual para mim é uma tortura e só me satisfaz a comunhão solitária com a natureza.” Assim se expressava Poe em sua “Autobiografia Espiritual”, bem ao espírito de  seu ídolo, o poeta Byron. E prosseguia: “A minha vida tem sido apenas capricho, ilusão, arrebatamento, desejo de solidão, desdém pelo presente, sede de futuro. Escrevo por imperativo mental, para satisfazer meu gosto e o meu amor pela arte. A glória não exerce em mim a menor influência. Como eu poderia preocupar-me com o juízo de uma multidão se desprezo cada um dos indivíduos que a constituem?”.

Edgar nasceu Poe, em 1809, filho de David Poe, de uma família bostoniana tradicional; David abandonou a perspectiva de ser uma futura magistratura pelo palco ao conhecer a atriz que viria a ser a mãe de Poe. Infelizmente, David iria se tornar um ator medíocre, alcoólatra e morrerá de tuberculose logo após o nascimento do filho Edgar. A mãe, Elizabeth Arnold, arrastará Edgar e seus irmãos para Richmond, na Virgínia sulista onde, três anos após, ela também sucumbirá à mesma enfermidade que acometera o marido.

Então, a companhia teatral adota solidariamente os órfãos de Elizabeth. Ao cabo de trinta dias, entretanto, uma enorme catástrofe marcará a todos. O teatro em que atuam incendeia-se provocando o trágico falecimento de sessenta espectadores.

Os meninos Poe são deixados à caridade pública. Assim Edgar, mal chegado ao mundo, adquire familiaridade com a morte. Ele será adotado por Frances Allan, esposa de um importante comerciante impossibilitada de ter filhos. Edgar passa a chama-se Allan Poe. Ele recebe todo um afeto “sufocante e exclusivista” de Frances, na casa satisfazem-lhe todas as vontades; aos seis anos o pequeno sabe ler, desenhar e cantar, ao mesmo tempo em que é  uma criança mandona e caprichosa. A percepção de um lado bom e de outro mal irá inspirar no artista futuro o conto “Willian Wilson”, onde o garoto Wilson é mau e crescerá mau, sendo perseguido pelo seu lado bom, que se empenhará em frustrar as perfídias cometidas pelo antípoda.

O ano de 1815 é marcado pela Segunda Guerra pela Independência americana, os negócios refluem e Allan, para salvá-los, muda para a Inglaterra com a família. Na Inglaterra, Poe aprendeu noções de francês, latim, história e muita literatura. A sua imaginação foi impressionada para sempre pelos castelos misteriosos, pelas casas decrépitas, pelas caves úmidas e por corredores escuros. A vivência com a morte próxima e essas imagens e sensações vividas serão as bases do gosto do adulto escritor pelo macabro e pelo mistério, base de toda a ficção de Poe.

Cinco anos após, a família retorna à America e a Richmond. O agora rapazinho Edgar nutrirá diversas paixões platônicas, tanto por mães de colegas, quanto pelas moças da vizinhança. Ao completar dezessete anos, o pai adotivo Allan matriculará o filho na conceituada Faculdade de Línguas Mortas e Vivas, da Universidade de Virgínia.

Edgar, com o perfeito domínio de pelo menos cinco línguas, pouco estuda, mas adquire o vício pela bebida e pelos jogos nos quais contrai dívidas que não tem como pagar. O pai recusa-se a fazê-lo e retira-o da Universidade, tentando introduzi-lo no ramo dos negócios. Em vão. Edgar rompe com a família, dá um adeus definitivo à riqueza e ao sólido ambiente burguês. Será forçado até o final da vida a lutar para sobreviver.

Viaja para o norte, para Boston, sua cidade natal. Com o que lhe resta de dinheiro edita “Tamerlão e outros poemas”, poesia que praticamente ninguém leu ou comentou. Alista-se, então, como soldado e é transferido para Sullivan, onde ocorrerá a inspiração para o “Escaravelho de Ouro”. No tempo de ócio ele cria o poema “Al Araaf”.

Dedicado, é promovido a sargento; entretanto, em questão de meses, cansa-se da vida de soldado e abandona tudo. Deseja agora o oficialato e, para tanto, entra na Academia Militar de West Point. Por algum tempo se sente feliz, mas o desânimo o abate, relaxa suas obrigações ao ponto de provocar sua expulsão “ignominiosa”.

Some de circulação por uns tempos. Quando torna à cena tenta vender “suas memórias”. Nelas, após a Academia, ele embarcara para a Europa, participara da guerra pela libertação da Grécia dominada pelos turcos, terminara dando com os costados em Petersburgo, onde se viu implicado na Revolta Decembrista de 1825. É salvo pelo embaixador americano dos trabalhos forçados na Sibéria. “Recém-chegado à América”, dá palestras e consegue circular pelos jornais uma história de aventuras pessoais que, entretanto, jamais existiram. Mitômano, inspiração noveleira ou ambos?

Na pobreza vai residir uns tempos em Baltimore, em casa de sua tia por parte dos Poe, Mary Clemm, uma pessoa que dali para frente jamais lhe faltará na vida. Beaudelaire vê nela o “anjo bom da vida de Poe”. Finalmente, em 1833, ele ganha num concurso o prêmio de 50 dólares pelo conto “Manuscrito encontrado numa garrafa”. Agora el torna-se conhecido.

Por recomendação de um amigo é contratado como editor de um jornal de Richmond. “Sou feliz, tenho na minha frente uma excelente perspectiva de triunfo.” Porém, após alguns meses de trabalho dedicado, seu sentimento se modifica. Já não lhe importa o Jornal. “Sofro de uma depressão mental que jamais experimentei. Luto em vão contra a melancolia, encontro-me em um estado miserando e ignoro o porquê.” “Não encontro sinceramente nenhum prazer nos estimulantes a que com frequência me entrego com tanta raiva.” Edgar volta a beber e a fumar ópio e perde o gosto pelo trabalho.

Em “Julgamento Universal de Giovani Papini”, seu personagem irá se confessar: “Cometi apenas um erro, não soube ser feliz. Nunca, nem um só dia, nem uma só hora… a causa primeira de meu infortúnio agora a conheço: sempre tive medo da vida… A vida banal, a realidade cotidiana constituía para mim uma fonte constante de terror… Não será por conta de meus delírios que eu pedirei perdão a Deus, mas em nome deste atroz e cru destino que fez de mim sobre a Terra uma alma que não colheu da vida senão o pouco que lhe era necessário para sofrer.”

Dois anos depois, por insistência do amigo Kennedy, Poe é recontratado e chega de Baltimore com a tia e a prima- criança de treze anos com quem se casara, Virgínia Poe. O trabalho que desenvolve é brilhante, o jornal progride, mas, de repente, uma nova crise depressiva leva Poe novamente à bebida e às drogas.

Agora desempregado, ele e a família decidem viver em Nova Iorque. Poe publica seu único romance “As aventuras de Arthur Gordon Pym”, que reflete a partida de Arthur para uma viagem que se estica de desventura em desventura, das quais não existe retorno, apenas alívios provisórios. Pym, afinal, terminará por afundar com seu barco.

Tenta um emprego fixo, mas não mais o consegue. Sentindo-se perseguido em Nova Iorque, vai viver na Filadélfia, onde escreverá seus mais importantes contos, ao mesmo tempo em que, aos 31 anos de idade vivencia uma das piores fases da vida. Sem dinheiro, e com Virgínia doente, a mais negra miséria o atinge e ao seus familiares.

Aos 36 anos, retorna a Nova Iorque e o “Evening News” publica seu poema “O Corvo”. Como num passe de mágica, o sucesso lhe escancara as portas. O público fica galvanizado por suas declamações e Poe, caoticamente, passa a viajar para todo lado declamando para um público elegante o crocitar de seu corvo: “nevermore”!

Com dinheiro na mão, torna-se associado de um jornal e nele aplica todo o capital. Mas o  jornal não progride, a melancolia o acolhe novamente, Poe se endivida e, afinal, perde tudo.

Mama Clemm literalmente carrega-o e à filha enferma para Fordham, onde eles praticamente viverão da caridade alheia. Nova morte de uma pessoa amada enrodilhará Poe. Virgínia falece e Poe lhe dedica o doloroso “Ulalume”. “Nada pode haver de mais poético que a morte de uma mulher a quem se ama”. Como Virgínia, Poe viu extinguirem-se sucessivamente a mãe, Jane, um primeiro amor,  e verá morrer a mãe adotiva Frances Allan, sempre pela tuberculose.

Depois disso, Poe busca um novo casamento por puro interesse financeiro. Precisa sempre e sempre de dinheiro. Encontra algumas mulheres na terceira idade que por ele se apaixonam, mas o desequilíbrio e o alcoolismo fazem com que dele elas desistam. Até que surge uma antiga namorada, agora uma viúva rica, a sra. Shelton que se apaixona pelo poeta. A data do casamento é marcada e Poe deixa de se intoxicar e beber. Mas é o tipo de calma que antecede a tempestade fatal. Viaja para trazer mamãe Clemm para seu casamento, mas no percurso embriaga-se. Em 3 de outubro de 1849, descobrem-no numa valeta sujo, andrajoso, inconsciente. Levado para o hospital, em “delirium tremens”, falece quatro dias após, aos 41 anos de idade.

Poe foi um dos primeiros escritores de contos na América, sendo considerado o inventor do gênero ficção policial, o criador do lendário Inspetor Dupin ( o qual inspirará Conan Doyle com Sherlok Holmes). Além disso é tido como fundador do emergente gênero de ficção científica.

Baudelaire, que tornou Poe conhecido na Europa, estimava sua produção em cerca de sessenta contos, um romance (“As aventuras de Gordon Pym”), cincoenta poemas, uma extensa obra de crítica e teoria literária e um trabalho filosófico, o “Eureka”.

Sobre poesia dizia Poe em “Filosofia da Composição”: “A poesia não tem sido um escopo, mas sim uma paixão, e convém tratar as paixões com o maior respeito. Elas não podem nem devem ser suscitadas arbitrariamente, alicerçadas em frágeis compensações e nos vagos louvores que os homens podem proporcionar”. “A poesia é a sublimação da alma, não se trata de um meio de comunicação ou de uma procura de valores. Fundada na emoção, o seu verdadeiro objetivo é a criação rítmica da beleza”, Poe escreveu em “Carta a Monsenhor B”.

Foi como crítico literário que ele, ao seu tempo, foi considerado “o príncipe da crítica americana”; sua crítica era caracterizada pela perseguição sem quartel que realizava contra plagiadores e os sem “caráter literário”. Sua combatividade sempre lhe rendeu amigos e inimigos poderosos. “Os Literatos” é uma série que repassa diversos escritores americanos e contemporâneos europeus, sempre “com a pena mergulhada em ácido prússico”, segundo a expressão de uma de suas “vítimas”. De todo modo, Poe fundou a crítica literária nos U.S.A..

Já a escrita teve como um de seus temas maiores o Conto Fantástico, onde o centro é a Morte, com seu fúnebre contexto de enterramentos prematuros, aparições sinistras, vampirismo e desencarnações- encarnações. Em “A Máscara Vermelha”, a Morte é simbolizada, pois para fugir à peste que grassa entre os pobres, o Príncipe Próspero encerra-se com sua corte no castelo e propicia bailes e festas para aqueles que se creem livres da peste. Mas um de seus convivas é precisamente a Morte, que ali comparece “fantasiada” para levá-lo consigo.

Nos contos aos quais Edgar deu nomes femininos, como “Ligéia” e “Berenice”, o tema da morte é evocado como a transferência da vida de uma pessoa para a outra, enterramento prematuro e sobrevida de catalépticos, o que também se dá em “A Queda da Casa de Usher”, dentre seus mais refinados trabalhos.

“O Gato Preto”, por seu lado, foi o conto que mais impressionou Baudelaire. Um homem é perseguido por um gato de quem gostara, mas que, num repente de embriaguez, vazara o olho. O animal passa a odiá-lo e ele o enforca. O sujeito arrepende-se e encontra pela rua outro gato preto e cego e o leva consigo. Este gato também passa a odiá-lo e ele tenta matá-lo com uma cutilada, mas erra o alvo e atinge a própria mulher que morre. Empareda o cadáver, mas quando chega a polícia, da parede ouve-se um grito de socorro. Ela é posta abaixo pelos policiais e sobre a cabeça da morta está sentado o gato preto.

Finalmente, um dos contos mais célebres de Poe é “O Poço e o Pêndulo”, em que descreve as torturas físicas e morais suportadas por uma vítima da Inquisição Espanhola, que é salva no limite pela chegada de tropas francesas libertárias.

Apenas dez pessoas acompanharam o féretro de Poe, sepultado no cemitério presbiteriano de Baltimore. Sobre seu túmulo, assentaram um bloco com o número 80, nada mais. O maior poeta americano do século XIX esperará quase trinta anos até que os letrados e autoridades de seu país se dignem a erguerem um monumento em sua memória!

O grande poeta americano Whitman negou-se a usar da palavra na cerimônia do monumento a Poe, pois para ele, o pedestal nem de longe era digno do autor desaparecido. Do outro lado do oceano, escreveu a respeito Beaudelaire: “Os U.S.A. foram para Poe apenas uma vasta prisão, uma grande barbárie iluminada a gás.”

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