“O Percevejo”, obra teatral de vanguarda, modernista, questionadora, genial. Uma verdadeira sátira que se torna tragédia!
“A peça teatral mais sombria de Maiakovski. Nele todas as ilusões dos primeiros anos do regime socialista são evocadas com uma cor sinistra, e o próprio futuro comunista da humanidade é visto como um mundo asséptico, regrado, sem poesia”. Boris Schnaiderman. Diríamos, distópico.
O simbolismo de Maiakovski aponta para um “futuro socialista” que, já então, após doze anos da Grande Revolução (1929), se apresenta ao poeta como triste e sem gosto, homogêneo e monocórdico. Maiakovski, que após seu suicídio foi elevado por Stalin a “O Poeta da Revolução”, faz uma crítica acerba ao tratamento dado à arte, prenunciando os tempos sombrios do devir.
Era a noite de 13 de fevereiro de 1929: a primeira montagem teatral foi simplesmente genial, mas assustadora para a burocracia e para a União dos Escritores Proletários! A claque presente, comandada pelos konsomols não a aplaudiu!
Texto e roteiro: Vladmir Maiakoviski. Direção de arte: Vsevolod E. Meyerhold.
Para a montagem contribuíram os vanguardistas Shostakovitch, (grande músico e maestro, autor da “Sinfonia 1905”, apresentada em praça pública durante o cerco nazista a Leningrado como o hino de resistência soviética, em 1942) e Rodtchenko, fotógrafo e artista plástico, o genial cenógrafo.
“O Percevejo” era, ao mesmo tempo uma praga que tanto incomodava quanto representava a própria garantia de humanidade dentro da Revolução, já agora em franca e trágica transição para o burocratismo estatal.
“Cuidado, cidadão! ” Clama um bombeiro, “incêndios são causados por sonhos mal sonhados, por isso nunca leve para ler na cama Nadson e Jarov”, o último dos quais, rompendo com Maiakovski, se transformará nos anos 1930 num dos esteios do oficialismo na arte, o futuro manipulável realismo socialista.
Na antevisão do poeta, o socialismo futuro que se plantava seria “desprendido” do álcool, do fumo, da liberdade, enfim do gosto de se viver livremente.
Um sistema socialistaamorfo na garantia do pão, mas da estupidez e da vulgaridade para a massa, e, por tudo isso, profundamente desumanizado.
Prissípkin, ex-operário, ex-membro do Partido, muda seu nome para o mais melodioso Skrípkin (de skripka , violino), para se casar com a manicure Elzevira, filha de uma cabeleireira enriquecida durante o período da Nova Política Econômica, com cujo dinheiro Prissípkin e o amigo Baian preparam um casamento “vermelho”.
Realizava-se um sonho: a “união do proletariado com a pequena burguesia”. Palavras da mãe da moça: “Minha filha, você ainda não tem o cartão do sindicato, então é melhor, como eu, também ficar quieta, calar a boca”, desnudando os privilégios formais que, já em 1929, corroíam a sociedade soviética.
Mas um incêndio extermina todos os personagens! Entre os cadáveres nota-se a falta de um que, pelo visto, fora consumido pelo fogo. Mas não era isso que acontecera.
E num surpreendente achado Prissípkin é encontrado! Havia passado cinquenta anos, e, em 1979, congelado e intacto, numa tina d’ água dos bombeiros, o corpo do ex-operário ressurgira!
1979: o tempo da Federação Socialista da Terra, na distopia do futurista Maiakoviski!
Uma votação coletiva decide ressuscitá-lo. E junto com Prissípkin ressuscita um belo e corpulento percevejo: oPercevejus normalis.
Prissípkin, o ressurreto, seria transformado em uma peça de museu, ou melhor, de zoológico! Entretanto, quando ele toma contato com o mundo que o recria, seu único desejo é retornar à rua Lunatcharski, n. 17! Ou seja, quer voltar no tempo, retornar à “residência” do primeiro Comissário para a Educação e Cultura, renascer, mas no ano da Revolução!
Afinal, “Para que viver? ” “Para o socialismo do futuro? ”
É um grito de socorro do poeta Maiakovski lançado ao vento, um pathos impossível de encontrar uma luz, a não ser no próprio suicídio.
E um professor, num futuro socialista, tentará em 1979 decifrar palavras do passado: “suicídio, o que é suicídio? ”, olha no dicionário e o que encontra como sinônimos? Servilismo…solidão…suicídio, ah, aqui está! ”.
Maiakovski antecipa sua própria tragédia pessoal: a bala na própria cabeça meses após.
A peça constitui uma clara crítica acerba da burocracia que sufoca, que privilegia aqueles que, com um cartão de sindicato, colocam-se acima do próprio povo. Maiakoviski vai ao fulcro do deslumbramento dessa parcela do “proletário ascendente e privilegiado”, criado pelo consumismo!
O vendedor de bonecas no mercado, aonde pessoas chegam como seres humanos e partem transformadas em “transportadoras de mercadorias”, anuncia: “bailarinas mecânicas, diretamente da ópera de Moscou…bonecas que dançam sob a direção de nosso Camarada Comissário”.
Outro vendedor apregoa “ 105 histórias engraçadas de Tólstoi… por apenas 15 copeques”, liquidação do que aquele titã da literatura jamais escrevera, comédias!
E ainda: “Eu sou um homem de perspectivas históricas! Desprezo os costumes pequeno-burgueses como fitas, lacinhos, eu quero mesmo é uma Cristaleira! ”, diz o personagem central, preocupado com o próprio patrimônio e com certo estilo e poder de compra! Este é Prissipkin, ex- proletário, ex- membro do Partido, “que perdera a carteira do Partido (ou melhor, seu verdadeiro significado), mas que ganhara na loteria e nas ações do Estado”. Mantinha, por não ser tolo, a carteira sindical!
Tudo se deturpa, também no socialismo, na ânsia pelo consumo.
A seguir, Maiakovski desnuda a corrupção e a falta de transparência. Um serralheiro diz a Prissipkin: “Segue meu conselho: ponha cortinas nas janelas! Aí você poderá abrir as cortinas e olhar a rua ou então, fechá-las e abocanhar as propinas”. E o mesmo serralheiro declama: “Eu trabalhei, há algum tempo, na construção de uma ponte para o socialismo. Mas eu me cansei e não terminei e, debaixo da ponte repousei. Na ponte cresceu grama que os carneirinhos comeram. Agora eu só quero descansar à beira do caminho”.
A Secretaria Central Epidemiológica, em 1979, possui um dilema: “Como evitar o contágio com a bactéria da bajulação e da vaidade transmitida pelo percevejo, doença característica do ano de 1929? ” “ O mistério do lambe-botas poderia ressuscitar? ” Uma preocupação de apenas um primeiro momento; logo a seguir a sociedade do futuro glorificará o percevejo transmissor do puxa-saquismo e erguerá para ele um pedestal no zoológico, buscando alguém a quem ele possa picar infindavelmente para sua preservação.
Dialeticamente, entretanto, o mesmo percevejo transmissor do puxa-saquismo, também trará para aquela sociedade mórbida do futuro, outra bactéria do passado heroico, uma novidade chamada paixão, há muito extinta!
Na sociedade futurista, Prissipkin será sempre o representante de uma espécie extinta, uma nova espécime biológica, o “Filistaeus vulgaris”, que, conforme o Comissário Diretor transformava “Tolstoi em Marx” e se diferenciava dos pássaros pelo tamanho de seus “excrementos”.
Quanto ao ressuscitado, da jaula do zoológico onde o colocam para visitação pública, grita inutilmente: “Eu não pedi para ninguém me ressuscitar! Congelem-me novamente! ” “Por que estou sozinho na jaula? Camaradas, venham comigo”!
A resposta do Diretor é: ”Apliquem-lhe uma mordaça, para que não fale e não nos contamine”.
Luiz Antônio Martinez Correa realizou a melhor montagem sobre a dramaturgia do grande poeta russo Vladimir Maiakovski no Brasil! Encenou “O Percevejo” em 1981, com cenografia de Helio Eichbauer.
Entre os atores estavam Caca Rosset e Maria Alice Vergueiro.
A música foi de Caetano Veloso, com sua capacidade inigualável de transformar em letras bonitas até mesmo o desinteressante. E quem não se recorda de seus principais refrãos de “Ressuscita-me”, cantada depois por Gal Costa?
“Ressuscita-me
Ainda
Que mais não seja
Porque sou poeta
E ansiava o futuro”.
“Ressuscita-me
Lutando
Contra as misérias
Do cotidiano
Ressuscita-me por isso”.
“Ressuscita-me
Quero acabar de viver
O que me cabe
Minha vida
Para que não mais
Existam amores servis”.
“Ressuscita-me
Para que ninguém mais
Tenha de sacrificar-se
Por uma casa
Um buraco”.
“Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai
Seja pelo menos
O Universo
E a mãe
Seja no mínimo
A Terra. ”
Maiakoviski, Caetano, ressuscitem-nos!