Carta aberta aos políticos e juízes: por que insistem em controlar os úteros femininos?

Caros senhores, somos um dos poucos países democráticos em que o aborto é considerado crime, exceto em situações especialíssimas, como estupro comprovado e fetos anencefálicos.

E por ser considerado um crime contra a vida, o aborto é julgado pelo tribunal do Júri. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2021 chegaram 411 novos processos relativos ao crime de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento.

Muitos destes casos chegaramà polícia graças a relatos de médicos que se desobrigaram da ética que exige sigilo sobre pacientes e procedimentos. Algumas indiciadas alegaram estupro, mas não houve “comprovação”. Ora, somos um país em que um estupro acontece a cada seis minutos!

E, em 98% dos casos, as gestantes eram pobres, negras na maioria, atendidas pelo Sistema Público de Saúde!

Aliás, todos sabemos perfeitamente os porquês: classe média e ricos recorrem a profissionais de saúde que realizam ou orientam procedimentos, enquanto os mais pobres correm lá seus riscos, sem a ajuda dos mesmos.

Ora, por favor, o que os senhores desejam, ademais da hipocrisia de suas leis e sentenças, é o controle das mulheres e de seus úteros!

Mas, saibam senhores, a tentativa de controle dos úteros falhou até mesmo nas sociedades patriarcais!

Se são absolutamente repetitivas e nauseantes as tentativas de controlar úteros ao longo da história, estas nunca conseguiram evitar o fato de que mulheres fazem, sempre fizeram e continuarão a fazer abortos em todos os tipos de sociedade, quaisquer que sejam as leis restritivas ou as crenças religiosas imperantes.

O aborto e a própria contracepção estiveram presentes em todos os tempos. E seguirão presentes entre nós, para desespero tanto dos conservadores de boa têmpera, como para proveito dos espertalhões “vendilhões do Templo”, e de todos os hipócritas ditos “pro-vida”, enquanto os fetos estão dentro dos ventres de suas mães.

Saibam senhores que fazem e que executam as leis, que se em determinados países do mundo contemporâneo restringem o aborto seguro às elites,  na Antiguidade e na Idade Média, não era assim.

O historiador americano John Riddle no seu livro “Eve’s Herbs: A History of Contraception and Abortion in the West”, reporta-nos aspectos interessantíssimos da prática abortiva no Ocidente, que os senhores poderão consultar!

O “Tesouro do Homem Pobre”, pelo Papa João XXI.

Pedro Hispano, pensador medieval nos deixou obras de lógica e farmacologia; escreveu um manual de medicina popular chamado “O Tesouro do Homem Pobre”.

Pedro era também um homem da Igreja. Foi deão, diácono, cardeal e, Papa: O Papa João XXI. Pedro Hispano foi ÚNICO em muitos aspectos: único Papa português, o único papa médico e o único papa a escrever um capítulo em seu Manual sobre métodos contraceptivos! Ele jamais estimulou a prática, muito pelo contrário, mas lá nos seus escritos estavam métodos contraceptivos.

Pedro era, ao contrário da “ortodoxia” dita cristã, fiel à Bíblia: “Deus faz crescer nos campos ervas com o poder de curar e o homem sábio deve saber usá-las (Eclesiástico 38,4)”.

Com apenas oito meses de pontificado, em 1276, foi encontrado morto!

O controle de natalidade na Antiguidade.

Ervas e métodos contraceptivos eram conhecidos e difundidos desde o Egito dos Faraós à Grécia antiga, em Roma e, na Europa da Idade Média!

Alguns não eram lá tão eficazes, enquanto outros funcionavam e eram receitados após observação, experimentação e acúmulo de conhecimento!

Textos médicos egípcios há cinco mil anos já listavam abortivos. Na Grécia, Aristóteles defendia o aborto para casais “férteis além do limite”.

Aristófanes, o criador da comédia antiga grega, citou em algumas de suas comédias o poejo, planta medicinal de diversos usos, entre eles a interrupção da gravidez.

Em Roma, o conservador Plínio, o Velho, em “A História Natural”, elencou diversas plantas abortivas, o poejo dentre elas. E frise-se que ele condenava a prática, mas dizia “ser um direito da mulher”.

O sílfio, a rainha das plantas abortivas, mãe do Cytotec.

O sílfio, na Antiguidade clássica, teve um uso tão disseminado que se tornou o motor da economia de uma importante cidade grega.

As propriedades da planta foram descobertas pelos colonos gregos, que fundaram, no século VII a.C., a cidade de Cirene, nas costas da Líbia dos dias de hoje.

O sílfio era considerada uma dádiva da natureza e dos deuses! Caule e raiz eram comestíveis, das flores extraía-se perfume, a seiva, tempero e xarope para tosse. Pastores que alimentavam ovelhas com essa planta obtinham uma carne mais macia.

A erva ainda aliviava hemorroidas e possuía propriedades afrodisíacas!

Mas, segundo Riddle, o maior chamariz da planta eram suas virtudes de controle reprodutivo.

Mas que coisa, senhores das leis: alguma coisa cheira os dias de hoje, tempos do capitalismo selvagem e predador: o sílfio foi extinto graças à ganância humana.

Cirene era uma próspera cidade, com comércio firme e forte como todas as importantes pólis gregas. Aqueles que colhiam e vendiam sílfio enriqueceram e comandaram Cirene.

Segundo os registros de Teofrasto, discípulo de Aristóteles, Arkesilas, o rei, supervisionava pessoalmente a pesagem e o transporte de sílfio. Aliás, essa imagem está registrada em um vaso grego do século 6º a.C.

Além disso, moedas de Cirene gravavam na face o sílfio, verdadeira galinha dos ovos de ouro. Umas delas mostram uma mulher sentada, com um sílfio aos seus pés. Ela toca a planta com uma mão e com a outra aponta suas partes íntimas. Uma maneira clara e direta para indicar seu uso.

O médico Sorano, que prestou seu nome a uma antiga cidade toscana, defendia o aborto em caso de perigo à saúde da mãe; dizia que o sílfio era um método mais eficaz do que o uso de preçários, tipo de aparelhos elásticos para conter os órgãos pélvicos. O médico nascido em Éfeso, no século II d.C., receitava pequena quantidade, uma colher de chá de suco de sílfio com água, uma vez ao mês, após a menstruação ou na ausência desta. “Previne uma concepção e destrói uma existente”, afirmou.

Mas chegamos ao século do nascimento do Nazareno! O poeta Catulo se referia à planta como uma régua definidora do amor livre. Enquanto houvesse sílfio na costa de Cirene, o sexo sem preocupações estava garantido…. –

Mas a festa acabou!

Cerca de 40 anos depois, já estava difícil encontrar a planta. Os gregos tentaram domesticá-la e cultivá-la em outros lugares, mas fracassaram.

Só existia sílfio em Cirene, e na forma selvagem. Os colonos deviam colher na época certa e esperar a natureza agir.

Mas a ansiedade e a demanda andavam de mãos dadas rumo ao precipício: o agronegócio de Cirene era tão agressivo quanto o nosso na Amazônia e no Pantanal, a planta rareou e virou artigo de luxo.

Plínio, o Velho, chegou a afirmar que o sílfio estava valendo mais do que seu peso em prata!

Aqueles poucos quilômetros de encostas secas de montanhas voltadas para o mar não deram conta do desejo das pessoas, e o que eles produziam de sílfio, ficou cada vez mais inacessível.

Ao fim da Antiguidade Clássica, por volta do século 5º d.C., o sílfio era considerado extinto. Quanto a Cirene, ela esteve alguns séculos sob domínio romano. Mas no século V, decadente, em ruínas.

Cirene e o sílfio morreram juntos! Morreram?

Alguns historiadores acreditam que a planta ainda possa existir no Mediterrâneo….

Não teria tido como base o sílfio, o princípio ativo desenvolvido em laboratórios, do mais disseminado abortivo do planeta, o misoprostol, mais conhecido como Cytotec?

Se aqueles pesquisadores estiverem corretos, isto significa, senhores magistrados, que o sílfio sempre esteve entre nós, esse tempo todo. Assim como o aborto.

Concluímos.

Em nosso texto, tentamos falar em aborto de uma maneira leve, no entanto, nem sempre esta é uma tarefa fácil, pois o tema além de ser delicado envolve questões morais, científicas, éticas, religiosas e filosóficas. E a prática, tão antiga quanto a humanidade, também pode representar diversos riscos à saúde das mulheres.

Não esqueçamos, por outro lado, que nosso tempo é infectado de “ortodoxos cristãos” hipócritas de redes sociais, de crenças que admitem assassinatos pela fome, por doenças ou armas de fogo. Da justiça que pune mulheres por tentarem dispor de seus corpos, de filhos que não teriam pais, pois indesejados, de crianças sem chances de vida plena!

Diariamente, cerca de 830 mulheres são vítimas de complicações durante e após o período gestacional, sendo o aborto um dos principais catalisadores das mortes maternas em todo o mundo. Aliás, somente na América Latina e no Caribe acontecem 4 milhões de aborto por ano!

Cessem senhores da busca por controlar dos úteros femininos!

Devotem vossas leis, nossos dinheiros e vosso tempo à atenção da saúde da mulher, respeitem suas decisões, acolham às gestantes, ofereçam condições dignas às crianças nascidas e desejadas! Amém!

2 respostas

  1. Os nossos iluminados congressistas acabam de fazer ser cancelada uma mesa de discussao sobre a questao do aborto…

  2. Estranhamente, como retratado, no sec 21 convivemos com visões e práticas criminosas do patriarcado em plena era espacial!

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