As profecias de K. Marx e R. Luxemburgo em tempos pós-modernos.

Karl Marx escreveu, em 1847, essa frase surpreendente e profética: “A barbárie reapareceu, mas desta vez ela é engendrada no próprio seio da civilização e é parte integrante dela. É a barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização”.

Um ano após, outra profecia que se cumpre integralmente desde então: “Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são por fim forçados a encarar com sentidos sóbrios as reais condições de suas vidas e suas relações com os outros homens”. (Marx e Engels, “O Manifesto Comunista”, 1848).

O século XXI e a “modernidade líquida”.

Vivemos uma crise no conceito de comunidade de cidadãos, de onde emergiu um individualismo desenfreado, onde ninguém é mais companheiro de ninguém, mas seu adversário. Com a crise do Estado e dos partidos políticos o indivíduo foi levado também à perda de qualquer apelo a uma comunidade de valores onde pudesse se abrigar. Juntamente com o indivíduo, a própria sociedade vive um processo contínuo de precarização.

A isso tudo, Zygmunt Bauman denominou “modernidade líquida”.

São tempos onde os valores herdados da história da civilização estão colocados em cheque e gradualmente destruídos. A “lepra da civilização” corrói a essência das conquistas dos trabalhadores e de sua própria consciência social.

Os bens produzidos e seus próprios produtores, os trabalhadores, são objetos de consumo imediato numa sociedade excludente e brutal para com a maioria, superficial, mecanicista, em processo de perda acentuada da intelectualidade em suas elites.

Afinal, “tudo o que é sólido desmancha no ar”! Tudo que “é sagrado é profanado”!

Que rumo a humanidade está seguindo?

Caminhamos, na verdade, em direção a uma bifurcação na estrada da vida, tal qual ocorre nas ambíguas escolhas dos heróis das Tragédias Gregas: podemos seguir pelo lado da barbárie, que é o natural, inerente à dinâmica do capitalismo (aliás, recordemos Lacan que afirma ser o capitalismo uma espécie arquetípica do subconsciente), ou caminhar para um outro lado, tão complexo quanto novo e inseguro, uma trilha que conduza ao Renascer da Humanidade e de seus valores.

Ao analisar as Tragédia Gregas, J.P.Vernant nos traz aquilo que é parcela da essência do ser humano: “Criatura ambígua e enigmática, desconcertante: ao mesmo tempo agente e agido, culpado e inocente, livre e escravo, destinado por sua inteligência a dominar o universo e incapaz de governar a si mesmo e associando o melhor e o pior, o ser humano pode ser qualificado de “deimós”, nos dois sentidos do termo: maravilhoso e monstruoso”. (J.P.Vernant , “Mito e Tragédia na Grécia Antiga”).

Socialismo ou barbárie.

Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estágio da “barbárie civilizada”. Dois autores, os primeiros, soaram o sinal de alarme: Roxa Luxemburgo e Franz Kafka. Apesar de suas evidentes diferenças, eles têm em comum o fato de terem tido a intuição – cada um à sua maneira – de alguma coisa sem precedente que estava para se constituir no curso daquela guerra.

Ao usar a palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, Rosa Luxemburgo em “A crise da socialdemocracia”, de 1915, rompeu com a concepção da história como progresso irresistível, inevitável, “garantido” pelas leis “objetivas” do desenvolvimento econômico ou da evolução social. E assinala: “Não se trata mais de esperar que o fruto “amadureça”, segundo as “leis naturais” da economia ou da história, mas de agir antes que seja tarde demais”.

O socialismo é a única alternativa ao sinistro perigo: a barbárie! Uma barbárie eminentemente pós-moderna, bem pior em sua desumanidade assassina que as práticas guerreiras dos conquistadores “bárbaros” do fim do Império Romano.

No passado, jamais tecnologias como os tanques, a aviação militar, as naves de combate, as redes sociais, a inteligência artificial, a energia atômica – tinham estado à disposição de uma política imperialista de massacre e de agressão, o que permite que hoje o sejam em uma escala incalculável.

Por outro lado, as intuições de Kafka são de uma natureza totalmente diferente. É sob a forma literária e imaginária que ele descreve a nova barbárie. Trata-se de uma novela intitulada “A colônia penal”: em uma colônia francesa, um soldado “indígena” é condenado à morte por oficiais, já que “a culpabilidade não deve jamais ser colocada em dúvida! ”. Sua execução deve ser cumprida por uma máquina de tortura, que escreve lentamente sobre seu corpo com agulhas, que o atravessam, a frase: “honra seus superiores”.

O personagem central da novela não é nem o observador que acompanha os acontecimentos com uma hostilidade muda, nem o prisioneiro, que não reage de modo nenhum, ou o oficial que preside a execução, nem mesmo o comandante da Colônia. É a máquina! É a tortura!

 “Toda a narrativa gira em torno desse sinistro aparelho (Apparat), que parece mais e mais, no curso da explicação detalhada que o oficial dá ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho não está lá para executar o homem, é sobretudo este que está lá pelo Aparelho, para fornecer um corpo sobre o qual ele possa escrever sua obra-prima estética, sua inscrição sangrenta ilustrada de “muitos florilégios e ornamentos”. O oficial mesmo é apenas um servidor da Máquina e, finalmente, ele mesmo se sacrifica à esse insaciável Moloch”, nos assevera Michel Lowy.

Lowy define como propriamente moderna a barbárie que apresenta as seguintes características:

  1. Utilização de meios técnicos modernos. Industrialização do homicídio. Exterminação em massa graças às tecnologias científicas de ponta.
  2.  Impessoalidade do massacre. Populações inteiras – homens e mulheres, crianças e idosos – são “eliminados”, com o menor contato pessoal possível entre quem toma a decisão e as vítimas.
  3. Gestão burocrática, administrativa, eficaz, planificada, “racional” (em termos instrumentais) dos atos bárbaros.

Como sublinha Marcuse, os tempos pós-modernos transformaram a razão ocidental em força destrutiva. Sua análise da burocracia como máquina “desumanizada”, impessoal, sem amor nem paixão, indiferente a tudo aquilo que não é sua tarefa hierárquica, é essencial para compreender a lógica reificada dos campos da morte, em que se transformou o Oriente Médio, tendo a Palestina como epicentro.

E agora…

Levar em conta a barbárie moderna do século XX/ XXI exige o abandono da ideologia do progresso linear. Isso não quer dizer que o progresso técnico e científico é intrinsecamente portador de malefício – nem tampouco o inverso. Simplesmente, a barbárie é uma das manifestações possíveis da civilização industrial/capitalista moderna – ou de sua cópia “socialista” burocrática.

“Não se trata também de reduzir a história do século XX/XXI a seus momentos bárbaros: essa história conheceu também a esperança, as sublevações dos oprimidos, as solidariedades internacionais, os combates revolucionários: “México, 1914; Petrogrado, 1917; Budapeste, 1919; Barcelona, 1936; Paris, 1944; Budapeste, 1956; Havana, 1961; Paris, 1968; Lisboa, 1974; Manágua, 1979; Chiapas, 1994; foram alguns dos momentos fortes – mesmo se efêmeros – dessa dimensão emancipadora do século”. (Lowy)

Eles constituem pontos de apoio preciosos à luta das gerações futuras por uma sociedade humana e solidária, que afaste a barbárie pós-moderna: uma Sociedade Socialista e Democrata na profecia de Rosa de Luxemburgo, onde “os homens são por fim forçados a encarar com sentidos sóbrios as reais condições de suas vidas e suas relações com os outros homens”, na profecia de Marx.

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