Alceste, a primeira tragédia conhecida de Eurípedes, eleva a mulher ao grau supremo do sacrifício por amor o seu homem. Este não decorre por uma decisão súbita, inesperada, momentânea. Mas é determinado por uma decisão madura da mulher que ama e, principalmente, da mãe que de qualquer sacrifício é capaz, posicionando Alceste como uma heroína acima da covardia dos velhos pais e do próprio marido, Admeto.
Tânatus, a morte personificada, jamais voltaria de mãos vazias da visita ao lar de Admeto. Alceste ao se oferecer para trocar sua vida pela do marido apenas impõe uma condição: que o viúvo não tome nova esposa, uma forma extremada de proteção dos filhos.
Para Platão, os próprios deuses consideraram tão belo o auto-sacrifício de Alceste que lhe permitiram retornar do reino de Hades, “pois os numes honraram nela a virtude máxima do amor”.
Alceste, tragédia ímpar em Eurípedes, em que no final as coisas se harmonizam por ação de um deus “ex-machine”, representado por Hércules, e todos retornam a uma vida feliz. Por força do amor!
O Prólogo é um relato do deus Apolo. Ele conta que se rebelara contra a ação de Zeus, que fulminara com um raio seu filho Esculápio, motivado pelas curas humanas por este realizadas, o que levara ao esvaziamento do reino de Hades. O senhor do Olimpo condenara-o servir a Admeto, um simples mortal.
Durante este serviço, as Parcas, tecelãs do Destino, haviam enviado Tânatos para conduzir Admeto, morto, para o reino de Hades. Apolo, que se tornara amigo do seu patrão, consegue ludibriá-las, de tal forma que Admeto permaneceria vivo se alguém, de livre e espontânea vontade se predispusesse morrer por ele. Mas nenhum dentre os amigos, ou mesmos seus velhos pais, consentiram em trocar a vida pela do rei. Somente sua esposa, Alceste, aceitara o sacrifício. Este é o testemunho dado por Apolo quando, passado o tempo, na data marcada, chega à cidade de Féres, o próprio Tânatos em pessoa, com a missão de levar Alceste, a substituta.
Apolo tenta ainda convencê-lo a levar primeiro “aqueles que tanto tardam a morrer”, e que “se Alceste, por fim, tivesse que morrer, o fosse mais idosa, dado que teria um funeral ainda mais suntuoso”.
Tânatos reage: “Apolo o que propões favorece os ricos tão somente, pois os abastados comprariam o direito de morrer apenas quando anciãos”. O emissário da morte deixa claro que, perante ele, não há privilégios sociais. Apolo, aristocrata, retira-se, não sem antes prever que está chegando alguém que arrebatará à força Alceste de Tânatos. O irmão gêmeo de Hypnos, o Sonos, penetra no palácio para colher sua alma.
Apresenta-se o Coro composto pelos anciãos de Féres. Entra a Serva de Alceste, pois é chegado o dia de sua morte, morte com data definida: “Que outra mulher faria mais por seu marido do que se oferecer para morrer por ele?…Vestiu-se ricamente e implorou aos deuses que dessem um destino mais feliz aos filhos, para que não morressem como a mãe, antes do tempo dado pelo seu Destino…”
Alceste deseja ver o céu pela última vez e sai do palácio em companhia do marido.
O Coro: “Nunca direi que o himeneu, o casamento, proporcione mais venturas que dores; a julgar pelos dramas passados e pelo destino deste rei, que tendo perdido a maior das esposas, arrastará uma vida que já não será mais viver”.
Alceste a Admeto: “Arrastam-me já para a mansão dos mortos. É Hades, ele mesmo com suas asas e olhos horrendos cercados de negras sobrancelhas… Uma noite escura cai sobre meus olhos…Admeto, vês a que extremos eu cheguei, amando-te sinceramente e dando minha vida para que possas olhar a luz…Traíram-te teu pai e tua mãe pois a idade avançada lhes permitiria uma morte gloriosa e eu continuaria a viver e tu não sofrerias com minha morte…Quero uma graça em troca: tu amas a nossos filhos tanto quanto eu; que eles sejam os donos do lar! Não lhes imponha uma madrasta, que, impelida pelo ciúmes, maltrataria estas pobres crianças. Não faças tal coisa! A madrasta que sucede a esposa é inimiga dos filhos do primeiro matrimônio e em nada inferior a uma víbora!”
Admeto compromete-se que, “tendo-te possuído em vida, continuarei a considerar-te minha esposa depois da morte e nenhuma outra mulher me chamará de marido….Não quero mais banquetes, nem festas animadas para os amigos, nem coroas floridas, nem a flauta líbia, pois tu levarás todo o encanto… E visitando-me em sonhos tu me trarás conforto à minha viuvez”.
Saem do palácio os filhos do casal e Alceste morre. Admeto confessa que ha muito esperava este golpe (desde o dia de seu casamento, quando Alceste ofereceu sua vida pela do amado) e sofria por ele. Ordena todas as honras fúnebres e sai, com os filhos, conduzindo o corpo da morta.
Permanece em cena o Coro e chega o herói Hércules. Está de passagem por Féres, seguindo para um novo trabalho civilizatório: retirar os cavalos comedores de carne humana criados por Diomedes, na Trácia.
O Coro alerta-o sobre os riscos desta empreitada, ao que o herói responde:”Jamais o filho de Alcmena tremerá diante de seus inimigos”.
Admeto, em luto, recepciona-o. Hércules interroga-o sobre quem morrera e Admeto relata-lhe que é o dia em que Alceste deverá morrer, já sendo do conhecimento de Hércules que ela trocara-se sua vida pela do esposo. “Não estejas a lamentar prematuramente a morte”. Admeto contesta-lhe: “Quem deve morrer já está morto; e quem está morto já não existe.” Ao que lhe responde o visitante: “No entanto, ser e não ser são coisas muito diferentes”. Mas Admeto desconversa para não entristecer o hóspede, que em tão má hora o viera visitar e afirma-lhe que seu luto deve-se à morte de uma mulher, que não pertence à sua família, mas que lhe é muito querida. Hércules tenta partir, mas a cortesia de Admeto e a lei da hospitalidade não lhe permitem.
A ala dos hóspedes é distante do local dos prantos e para lá o herói é conduzido pelos servos, onde um banquete lhe é servido.
O pai de Admeto chega para prantear a nora. O desprezo do filho para com o pai é insustentável, dada a covardia de ambos em enfrentar a morte. Diz-lhe Admeto: “Não mais considero ter pai e mãe. Tu, em idade tão avançada não tiveste a coragem de morrer pelo teu filho, mas deixaste esta honra a uma mulher, a uma estrangeira… Mentem os velhos que a cada momento invocam a morte queixando-se da velhice e da longa duração da vida; pois se a morte se aproxima, ninguém quer morrer, e a velhice deixa de ser um doloroso fardo!”
Responde-lhe o pai, no mesmo tom: “Dei-te a vida e te eduquei para que fosse, depois de mim, o chefe de meu patrimônio; mas nunca me obriguei a morrer em teu lugar! Feliz ou não, cada um cumpre o seu destino!… Tu, que te debateste vergonhosamente perante a morte, tu que vives à custa de tua esposa. E agora censuras a minha covardia, tu, infame, suplantado em coragem por uma mulher, que se deixou morrer por ti, belo rapaz! Descobriste uma maneira de evitar a morte, basta que convenças a que cada nova esposa que morra por ti.”
Depois que Admeto ordena que o corpo seja conduzido ao túmulo, o Coro chora pela melhor das mulheres e a mais generosa das esposas. Saem Féres, o pai, e Admeto. Entra um Servo e, posteriormente Hércules. O Servo relata a alegria de Hércules no banquete servido e o vinho bebido, em total dissonância com o clima funéreo da casa. Hércules: “Todos os homens são condenados à morte, e não há um só que possa assegurar estar vivo amanhã…Convencido destas verdades cumpre viver a vida, que o demais fique por conta do Destino…Visto que somos mortais, convém que nos conformemos com as coisas naturais. A vida para os homens austeros e tristes não é a verdadeira vida, mas um suplício e nada mais!” Em seguida o Servo participa-lhe da desgraça que é a morte de Alceste.
Hércules, o herói da força, demonstra não primar tanto pela inteligência, fora logrado por Admeto. De todos os modos, como recompensa pela hospitalidade recebida em tão difíceis circunstâncias, irá lutar com Tânatos para tirar-lhe das garras o corpo de Alceste. Caso não o consiga, dispõe-se a descer até o reino de Hades e retornar com a defunta para a vida. Assumindo mais um trabalho, que somente um herói de seu porte conseguiria realizar, parte. Ele retornará conduzindo pela mão uma mulher velada por um manto.
Hércules pede ao rei Admeto que acolha aquela mulher enquanto ele deverá partir para buscar os cavalos de Diomedes. Que Admeto não a toque até a sua volta. “Talvez um dia tu me agradeças pelo que fiz”.
Entretanto, o amigo implora que não lhe peça o favor, que não o torture com a presença de uma jovem que, pelo porte, tanto se assemelha à esposa morta. Hércules busca consolá-lo, pois “amar a uma morta é fonte perene de lágrimas”. Ao que Admeto retruca ter perdido a alegria do viver. Hércules o desafia: “Um novo casamento há de consolar-te um dia”.
Admeto permanece firme na promessa feita a Alceste: “Mulher alguma partilhará de meu amor… que eu morra se algum dia a trair”. Hércules insiste em que aceite a dádiva que lhe trouxera. E insiste em que ele tome a desconhecida pela mão e conduza-a para dentro do palácio.
Então, Hércules se aproxima e retira o véu que encobria Alceste, “que jamais alguém ouse falar que o filho de Alcmena seja um hóspede ingrato… Contemple-a, veja se não é muito parecida com tua esposa. Para longe o luto e o desespero!”
A surpresa toma conta do rei, afinal, não seria um fantasma, uma aparição? “Não sou um invocador de almas”, fala Hércules. “Apoderei-me dela sustentando-a nos braços e impedindo Tânatos de tocá-la”.
“Mas por que razão Alceste, de retorno à vida, permanece muda e imóvel?”, pergunta o agitado esposo. Hércules: “Não te será possível, Admeto, ouvir sua voz enquanto ela não for purificada da consagração às divindades subterrâneas, e somente no terceiro dia ela ressuscitará. Faze-a entrar em tua casa, vamos, Admeto”, convida o herói.
O Coro encerra a única tragédia de Eurípedes em que todos terminam felizes: “Os acontecimentos que os deuses nos proporcionam têm diferentes formas de se manifestar e muita coisa acontece para além de nossos temores e suposições; muitas vezes o que se espera jamais ocorre, e o que nos assombra se realiza, mas sempre com a ajuda dos deuses”.