O não pensar se torna um problema social em momentos de crise como o que hoje o mundo vive, quando os antigos padrões e códigos de conduta e ética caíram por terra. É quando aqueles que não pensam se deixam levar pelas novas regras que terminam sendo ditadas por bandidos movidos por ideologias, ideologias que espelham um mundo que deveria ser segundo eles próprios, um mundo criminoso.
De um lado, temos em absoluta atividade as ferramentas de ação e consequências do neoliberalismo: privatização do Estado, desmonte da solidariedade social, financeirização e uma jamais vista concentração de riquezas, com a decorrente corrosão da democracia. De outro lado, emerge o aparentemente oposto ao espírito dito democrático capitalista: o nacionalismo, o conservadorismo cristão, o racismo e a supremacia branca.
Agregando ambos fatores, a nova direita bate-se de maneira agressiva, debochada e deletéria contra a ciência, a laicidade e as instituições democráticas, ao mesmo tempo em que exibe uma feroz e oca “vontade de potência” (Nietzsche).
Embora todos esses componentes tenham raízes antigas, estamos diante de uma formação relativamente inédita. O projeto neoliberal que deu à luz sua filha bastarda, a nova extrema direita, foi sendo gestado desde o final da 2ª Guerra Mundial para blindar o capitalismo do “perigo” representado pelo poder popular e pela intervenção estatista.
Mais tarde, economistas como Hayek, elaboram o projeto mercado-e-moral: a partir da lógica de mercado, trata-se de moldar o Estado, a moral e a lei; no lugar da igualdade e da solidariedade social, agora as famílias são responsáveis pela educação moral e social dos indivíduos sob o modelo do capital humano, vale dizer, a formação da massa de empreendedores de si a partir de uma gramática individualista e hipercapitalista.
O atual empoderamento raivoso da extrema direita tornou também todos os valores religioso-moral voltados para a lógica da mercadoria. O sujeito torna-se capital humano de cima a baixo!
O impulso de vida, amor e criatividade transforma-se no que Marcuse chamou de dessublimação repressiva, conceito que explica o gozo sentido como subversivo pela nova direita: livre, manipulável, viciado em estímulos e gratificações triviais, o sujeito é desbloqueado para gozar de mais-prazer, desobrigado de qualquer relação com o social.
A verdade, que se desprendeu da mentira, depende da interpretação de cada “influencer digital”.
Cultivar o pensamento crítico, a única arma de combate.
Se alguém me perguntar sobre o que considero como características fundamentais do pensamento crítico eu elencaria, antes de tudo, a reflexão sobre o próprio pensar, depois o pensamento modesto e, finalmente, a popularização do pensar filosófico, por si só questionador.
Pensar criticamente significa iluminar a trilha do pensamento em meio aos preconceitos, às opiniões não examinadas, e às crenças. Nem dogmático nem cético, o pensamento crítico corresponde à modéstia destruidora que questiona as possibilidades e o limites do pensar.
E isto Kant o fazia sem poder vivenciar pessoalmente a liberdade, sob a Prússia repressiva de Frederico II, no século XVIII! Dado que o ser humano como tal só existe na comunicação e na consciência dos outros, devemos compartir para aprender, escolhendo nossas companhias. E se essa escolha significa escolher determinados pensadores ou certos companheiros de jornada, o seu objetivo deverá ser a busca de um caminho próprio, que será sempre somente nosso, aberto para as questões do presente! De modo que os pensadores escolhidos se tornem contemporâneos e não o contrário.
O Passado possui suas luzes e trevas, mas somente o Presente é vida e é nele que devemos aspirar viver a liberdade!
Ao pensarmos criticamente, a verdade deixa de ser una e estática ou absoluta, assim como a via de acesso a ela. Trata-se de aprender a lidar com o Passado, aliando o querer conservar ao querer destruir de W. Benjamin, para quem buscar significados é sempre um reexaminar sem fim e a cada resultado obtido segue-se a dissolução deste, e, após isto, um reexame.
Se os conhecimentos dogmáticos se estabelecem, isso ocorre porque os “insigts” da razão são tratados como resultados do conhecer e que, uma vez consolidados, ganham o status de “resultados científicos” e tornam-se inquestionáveis.
Foi tendo o pensamento dogmático como alvo, que Kant diferencia razão do intelecto, e entre estes a atividade do raciocínio daquela que é apenas senso comum; as atividades do pensar passam ao lado da atividade do conhecer.
Logo, o senso comum, o “bom senso” não se confunde com o pensar. E a ciência, em si, é um prolongamento extremamente refinado do bom senso. Pensar, raciocinar, usar a razão é procurar aprender os significados. A parcela do conhecimento que nasce do pensar é o significado, permanecendo a razão como condição básica para o intelecto.
A irreflexão e a perda das “asas da liberdade”.
Sócrates é o descobridor da “consciência em si”, e para ele “seria melhor que uma multidão discordasse de mim do que eu, sendo um, discordasse de mim mesmo e entrasse em contradição comigo mesmo”.
Aquele que não pensa não se constitui como personalidade, apenas chega a ser uma “persona”, o possuidor de máscaras.
O não- pensante não precisar se ocupar com a harmonia de um “eu interior”, ele não precisa prestar contas do que faz ou do que diz, e nem se importará em cometer um crime, do qual, aliás, se esquecerá no momento seguinte.
Kant ressalta que “o diálogo consigo mesmo” é a forma de manifestação da pluralidade humana e contradizer-se significa tornar inimigos os dois parceiros do diálogo interior. “O eu é uma espécie de amigo”.
Como nos recorda Arendt, Catão, o romano, dizia com sabedoria: “nunca um homem está mais ativo que quando nada faz, nunca está menos só do que quando está consigo mesmo. Isso o faz refletir”.
Irreflexão: o não pensar.
A irreflexão ocorre por parte daqueles que se ocupam das coisas do mundo e nunca param para pensar. Ela pode ser encontrada até mesmo em pessoas eruditas, em cientistas e em pessoas inteligentes. No III Reich Alemão, por exemplo, havia intelectuais e eles eram assassinos altamente cultos, “embora nenhum deles tenha composto um poema a ser lembrado, uma música digna ou um quadro que alguém penduraria na parede” (Jaspers).
Isso porque nenhum talento pode suportar a perda da integridade que experimentamos quando perdemos a capacidade comum de pensar, de lembrar e nos emaranhamos no navegar do acovardamento.
O não pensar se torna um problema social em momentos de crise como o que hoje o mundo vive, quando os antigos padrões e códigos de conduta e ética caíram por terra. É quando aqueles que não pensam se deixam levar pelas novas regras que terminam sendo ditadas por bandidos movidos por ideologias, ideologias que espelham um mundo que deveria ser segundo eles próprios, um mundo criminoso.
Arendt admite que ninguém pode viver sem preconceitos, pois não é possível julgar novamente e continuamente todos os acontecimentos. Isto exigiria uma bagagem e um estado de alerta sobre humanos. Mas “viver sem preconceitos” não vale para a política, que se baseia na formação de opiniões, e não é válido para os momentos de crise, quando é necessário discernir-se o certo do errado. Por isso mesmo “aqueles que pensam, precisam aparecer para julgar os acontecimentos políticos nos momentos de crise”.
O problema da irreflexão é que aqueles que se conduzem por códigos e regras são os primeiros a aderir e a obedecer. O nazismo, os autoritarismos e as tiranias, que sempre buscam se implantar na humanidade, substituem o não matarás pelo matarás.
Aquele que não pensa possui um eu que não fundou raízes, é um ninguém.
São seres humanos que se recusam a serem pessoas. No entender de Jaspers, ser ninguém é pior que ser mau; esse ser ninguém se revela inadequado para o relacionamento com os outros, porque os bons e os maus são, no mínimo, pessoas. É isto que faz da banalidade do mal o pior dos males: espalha-se rapidamente sem necessidade de qualquer ideologia.
As verdadeiras asas da liberdade.
A ideia de que nascemos para a liberdade sugere que de algum modo estamos condenados a sermos livres e esta é uma espantosa responsabilidade da qual se tenta escapar com a ajuda de diversas doutrinas, como o fatalismo ou o fascismo.
Se a pedra de toque de um ato livre é sempre a nossa consciência de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos, o verdadeiro pensar não aceita as condições sob as quais a vida dos homens é dada.
Onde quer que os homens se encontrem, todos nós somos movidos pelo desejo de sermos vistos, ouvidos, comentados, aprovados e respeitados pelas pessoas que nos rodeiam. A virtude por esta paixão, que se chama emulação, o desejo de superar os outros, entretanto, quando se torna um vício transforma-se em ambição o que leva o “homem da polis” a aspirar ao poder por meio da distinção. Aí encontramos os principais vícios e virtudes psicológicas do homem político.
No entanto, quando a vontade de poder se aparta do desejo de distinção, tal como é o caso do tirano ou do espírito que se corrompe no processo, não se trata mais de um vício, mas uma condição que tende a destruir toda a vida política.
E agora o que importa, o que está em questão, já é o valor da própria vida e a possibilidade de perda das asas com que vivenciamos a liberdade, caso abdiquemos da responsabilidade do pensamento crítico!
A História sempre demonstrou ser prenhe de pessoas que, mesmo sob condições do terror mais extremo, são capazes de resistir, julgando o que é certo e o que é errado, e agirem de acordo com suas consciências.
3 respostas
Excelente
Vou divulgar
Magnifica essa anáise do pensamento! Podemos acrescentar que o pensamento lógico-científico (que não é privilégio dos cientistas) desgraçadamente está fora do alcance do povo. Assim os donos do poder manipulam à vontade a mente do povo. Neste contexto, não há solução para os problemas da humanidade que está caminhando para o abismo , conduzida pelos psicopatas do poder
Mtnos Calil
Um pensamento que não é criticado é apenas uma constatação do óbvio, ou, às vezes, porque não vale nem a pena criticá-lo!