A alma feminina: em “Medeia”, o arquétipo da mulher selvagem e independente.

Clarissa Pinkola Estés em seu trabalho “Mulheres que correm com lobos”, mostra como a natureza instintiva da mulher foi sendo domesticada ao longo dos tempos, num processo que punia todas aquelas que se rebelavam. A exemplo das florestas virgens e dos animais silvestres, os instintos foram devastados e os ciclos naturais femininos transformados à força em ritmos artificiais para agradar aos outros.

Até o ponto em que, emergindo das grossas camadas de condicionamento cultural, apareça a corajosa loba que vive em cada mulher. Afinal, as lobas na Grécia antiga eram os animais amantes da deusa Artemis (Diana para os romanos) a caçadora, e elas carinhosamente amamentavam todos os heróis, cuja infância defendiam com sua fúria.

Medeia, o Mito Grego. A mulher indomável e selvagem!

Tanto Medéia quanto Ártemis fogem do padrão da mulher na sociedade patriarcal. Ártemis é a deusa virgem, a que recusa qualquer contato sexual. Se nega a casar e a se submeter ao jugo de um homem.

Ártemis é livre, dona de si, que não se atém aos amores, que não se vincula aos homens e às paixões. Já Medeia é a mulher que ama em demasia, entrega-se ao amor sem os limites da ponderação e é capaz de manter ódios mortais por seus inimigos.

A mãe de Medeia era a deusa Hécate, que simboliza as decisões fatais, a vontade fulgurante da mulher, a magia do conhecimento das ervas e plantas venenosas e curativas. Por isso tudo, ela é uma das personagens mais terríveis e fascinantes de toda a mitologia grega, envolvendo sentimentos contraditórios e extremos.

Os mitos todos que envolvem Medeia são classificados por alguns autores como elementos-chave no limiar da civilização, separando de um lado o mundo primitivo, o do matriarcado e, de outro, os novos desafios e paradigmas aportados pelo patriarcalismo.

Medeia era filha do rei da Cólquida, possuidor de um velocino de ouro (ofertador da sorte). Jasão, por outro lado, é o herói grego que se empenha na busca do velocino de ouro e, para tal, organiza uma expedição à bordo da nau Argos. Ele e seus companheiros, os argonautas, navegarão até as terras da Cólquida para roubar o velocino do pai de Medeia. E a paixão por Jasão leva a moça a sacrificar um irmão, trair seu pai e sua Pátria.

O casal ladrão foge e se refugia em Corinto, terra de um amigo de Jasão, Creonte, o príncipe. Eles vivem lá por dez anos e têm dois filhos.

Com o tempo, Jasão se aproxima de Creonte, que lhe oferece a filha em casamento. Medeia não suporta a traição do amante e prepara a vingança, matando a noiva de Jasão, Creonte e os próprios filhos.

“Medeia” . A Tragédia de Eurípedes

“Medeia” é momento maior de Eurípedes!

Aqui, o desespero da mulher traída e abandonada desencadeará uma fúria irracional, mas calculada, dentro de uma incontida selvageria. Afinal, quem sacrificara a fortuna do pai e a vida de um irmão pela paixão por um homem, com o mesmo denodo buscará na fúria a destruição de tudo o que seja mais caro ao seu amante e traidor, Jasão.

Pois se em Eurípedes as mulheres chegam aos extremos das virtudes e da desumanização, os homens perdem qualquer aura de heróis. Jasão, tão amante do poder, é pusilânime e suas propaladas virtudes são coberturas para o mais vil oportunismo político, que não poupam nem a companheira, nem os filhos.

O patriarcalismo em Eurípedes sufoca e destrói.

No prólogo da tragédia, a Ama de Medeia relata-nos a traição de Jasão e que Medeia jaz alimentando-se somente pelo ódio aos próprios filhos e ao amante, e que seu caráter violento não suportará o ultraje recebido, “pois é violenta, e quem incorre no seu ódio não fica livre da desgraça”.

O Preceptor das crianças, que os traz de volta ao lar, comenta que Creonte decidira pela expulsão da mãe e dos filhos de Jasão de Corinto, ao que a Ama pergunta se o pai concordara com isto. “Não será a primeira vez que um pai que, devido a um novo matrimônio, deixe de amar os filhos”, conclui o Preceptor.

A Ama pede que as crianças entrem em casa, mas que evitem a própria mãe, “Que não fará Medeia presa das dores, esse coração implacável que respira ódio? ”

O desvario de Medeia faz com que reze aos deuses pela morte do marido e da noiva. “Aquele a quem consagrei os meus preciosos bens tornou-se o pior dos homens… A desdita imprevista que me feriu perdeu a minha alma e, privada da volúpia da vida, desejo morrer, amigas”. “Entre todos os que respiram, somos nós, as mulheres as mais miseráveis. Antes de tudo precisamos comprar um marido e aceitar um dono para nosso corpo… e o divórcio nunca é honroso para as mulheres e não nos cabe repudiar o mau marido”.

E Aristófanes ainda dizia que Eurípedes não amava as mulheres! O grito de independência e libertação feminina faz-se ouvir, dois mil e seiscentos anos atrás com a mesma força de hoje em dia!

No entanto, uma das essências das personagens trágicas é sua ambiguidade.

O que Medeia quer é a vingança: “Pensam que eu teria palavras submissas se não tivesse em vista uma emboscada? … Insensato Creonte, poderia ter-me expulsado e todos os meus planos naufragariam, mas permitiu-me um dia, durante o qual farei morrer três dos meus inimigos: o pai, a jovem e o marido. Qual será minha arma? … O veneno, e, depois, precisarei de algum refúgio seguro. Que lugar me abrigará? ”

Jasão debita aos deuses e a Eros seus êxitos na Cóquita mais que à devoção de Medeia.

A ingratidão, imoralidade dos ingratos, faz de Jasão um hipócrita. Mente, casa-se pelo poder e para não sofrer agruras na velhice.

Entra em cena Egeu, rei de Atenas, tal qual um deus “ex-machine”. Ouve de Medeia todas as suas desditas com Jasão, assim como a sua expulsão de Corinto. Ela implora que se apiede e lhe dê abrigo. Promete-lhe filtros poderosos para curar-lhe a impotência, feiticeira famosa que é. Egeu, sem conhecer seus planos de vingança, jura pelos deuses dar-lhe hospitalidade e segue seu caminho.

Medeia estabelece, então, um plano de ação, tendo a fuga assegurada. Com astúcia atrairá Jasão para sua arapuca. Pedirá que os filhos permaneçam no país com o pai e por eles enviará um presente à noiva como forma de ser grata: um lindo véu com coroa, impregnado com venenos que a matarão e a todos que a tocarem. Finalmente, aos filhos assassinará para que nenhuma família reste a Jasão.

Pobre Creusa, filha de Creonte, ainda demasiadamente jovem para entender até que ponto pode chegar o ódio de uma mulher ultrajada. Ela vestir-se-á de noiva, porém irá oferecer sua virgindade não ao noivo, mas ao deus Hades.

Medeia recebe os filhos quando retornam. Debate-se entre a própria dor e a culpa pelos crimes que ainda praticará.

Medeia criatura trágica, provoca sentimentos de compaixão na plateia.

Chega à cena um mensageiro e traz a novidade de que Creonte e Creusa, sua filha, morreram abraçados, vítimas do veneno contido no véu e na coroa.

Ela dirige-se ao coro em paranoia: “Matarei imediatamente meus filhos para que outro não o faça com mão muito mais cruel. Matá-los-ei e verdadeiramente eu os amo, sou uma filha da desdita! ”

Chega Jasão preocupado em salvar os filhos da fúria dos parentes de Creonte. Sai Medeia enfeitada: “Parto para as terras de Egeu e levo comigo os cadáveres de nossos filhos para que tenham um sepultamento digno”.

Segue-se um diálogo desesperado e final entre um Jasão abatido em sua empáfia, vendo destruído seus sonhos de poder e Medeia, enlouquecida, tomada pela loucura, pela deusa Lissa (detestada pelos homens e pelos deuses).

A vingança perpetrada em momento algum conduz a uma nova ordem, mas sim, estabelece o caos, representado pelo próprio escárnio de quem, num dragão, força obscura aparentada com o monstro Tifão, partirá para um exílio seguro, obtido à custa de um juramento ingênuo feito por Egeu.

A tragédia Medeia foi apresentada no Teatro Odeon de Atenas no auge da carreira de Eurípedes, tendo sido assistida pelo próprio Sócrates, num momento político delicado de decadência, de corrupção e de questionamento dos valores cívicos da democracia ateniense.

Eurípedes não trabalha com ideais, heróis, boas atitudes, reverência aos deuses e aos costumes. Apenas apresenta o ser humano como ele é, com suas desmedidas, loucuras e falta de caráter, dentro de um destino selvagem, que é trágico.

“Mulheres que correm com os lobos”, resgata o arquétipo da mulher e o seu lado selvagem em diferentes circunstâncias. Trabalha uma parte inerente de sua natureza interna que não pode ser apagada, o seu lado primitivo. A mulher que abraça sua parte primitiva para encontrar harmonia e tocar as raízes evolutivas do seu ser.

Psiquicamente, para a autora as mulheres são criaturas selvagens que se mantêm na busca por encontrar sua liberdade ancestral. Isso porque não negam a si mesmas o desejo pela vida e a sua verdadeira posição na existência.

A psique profunda, o seu arquétipo selvagem, acaba por resgatar sua origem distante. Por meio desse retorno às raízes que as amarram vão sendo desfeitas e a verdadeira face mostrada.

O mito de Medeia e a tragédia “Medeia” de Eurípedes, assim como o trabalho de Estés nos desvendam aspectos essenciais do que seja a alma feminina.

Do ponto de vista da psicologia arquetípica, bem como pela tradição das contadoras de histórias, ela, a alma feminina é a Mulher Selvagem. No entanto, ela é mais do que isso. É a própria origem da rebeldia feminina frente ao patriarcalismo.

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