O Carnaval, Ruth Landes e “A cidade das mulheres”.

Paolla Oliveira foi a sensação de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Rainha de bateria da Grande Rio, a intérprete se vestiu de branco e apostou em acessórios com búzios para gravar o clipe da escola de samba em homenagem ao falecido pai de santo Joãozinho da Gomeia.

A ideia da Escola de Samba é levar ao Sambódromo, em 2020, o debate sobre a intolerância racial e a perseguição religiosa nos tempos de Bolsonaro, quando terreiros da Baixada Fluminense têm sofrido ataques e depredações criminosas quase diuturnas.

O temático candomblé e os cultos de origem africana nos remetem a Ruth Landes, uma antropóloga norte-americana que, em princípios de 1938, obteve um contrato de pesquisa para estudar as relações raciais no Brasil. Esteve no Rio de Janeiro e, depois, na Bahia, onde conheceu o intelectual Édson Carneiro, que a introduziu nos cultos afro-brasileiros. Em 1939, durante seu trabalho de campo, foi expulsa do Brasil pelo Estado Novo, pois pairavam sobre ela suspeitas de filiação ao comunismo e muitas “relações com coisas que maculavam a pureza da verdadeira raça brasileira” (Ministro Chefe do DIP- Lourival Fontes).

Somente após a Guerra, em 1947, Landes conseguiu publicar os resultados de sua pesquisa no livro intitulado “A Cidade das Mulheres”. Contradizendo os padrões da antropologia de sua época, recusou-se a produzir um retrato etnográfico do candomblé e da cultura afro-brasileira como homogêneos integrados e estáticos; descreveu os conflitos internos, diálogos e contestações do significado do candomblé em um contexto de mudança e fluidez, situando historicamente a riqueza da cultura afro-brasileira.

Nesse sentido, Ruth Landes antecipou um estilo de antropologia reflexiva, dialógica e experimental, em que a alteridade é pensada enquanto construção, e assim como a subjetividade, desempenha um papel central, a qual iria encontrar sua mais larga expressão em Edgar Morin, dezenas de anos após.

Com uma percepção fina e sensível, ela foi capaz de apontar algumas singularidades do candomblé baiano como, por exemplo, a tendência ao aumento gradual do poder feminino sobre o masculino, assim como o aumento do número de mães-de-santo em relação a pais- de- santo nos candomblés mais tradicionais. Ainda na primeira metade do século XX, teve a coragem de identificar a influência do “homossexualismo passivo” nos candomblés de caboclo.

Em “A cidade das mulheres”, Ruth refere-se especificamente ao pai de santo a ser homenageado pela Grande Rio: “Há um simpático e jovem pai Congo, chamado João (Joãozinho da Gomeia), que quase nada sabe e que ninguém na sociedade branca o leva a sério(…); mas é excelente dançarino e tem muito encanto. Todos sabem que é homossexual, pois espicha os cabelos compridos e duros e isso é blasfemo. – Qual! Como se pode deixar que um ferro quente toque a cabeça onde habita um santo! ” Outra polêmica levantada por Landes é que João “recebia” um caboclo. Os caboclos não são Orixás, mas espíritos encantados, originários das religiões indígenas, sem relação com a África.

Acontece que esses candomblés de caboclo eram alvo do desprezo do povo-de-keto, zelosos de sua “pureza” africana porque, nessa época, havia um empenho por parte de influentes intelectuais comandados por Arthur Ramos e Edison Carneiro em firmar a ideia de que havia nos terreiros keto uma “pureza” com relação às raízes africanas.

O certo é que João foi um homem não só adiante de seu tempo como também dono de um projeto particular de ascensão social e religiosa, buscando a diferença como dado de divulgação de si mesmo e sua “roça”: um negro que ousava alisar os cabelos por vaidade, sem se preocupar com a polêmica de poder ou não colocar ferro quente na cabeça de um iniciado; um homem que não se envergonhava de ser homossexual na Bahia de meados do século XX; um pai-de-santo que afrontava os princípios de que homens não podiam “receber” o Orixá em público!

Dentre seus filhos iniciados na Bahia, destacam-se a Mãe Mirinha herdeira do axé e fundadora do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia e o Babalorixá José Ferreira do Nascimento ( Pai Zé Baiano), fundador da Irmandade Senhor Ogum em Formosa no estado de Goiás, também no ano de 1971.

E Ruth Landes o admira, pois considera o candomblé “uma força criadora” e, especialmente, os lugares das mães-de-santo na sociedade baiana a impressionaram. É a partir dessas mulheres que ela passa a refletir sobre a condição feminina, fazendo uma leitura sensível do poder que detinham. “Dá às pessoas coragem e confiança e faz com que se concentrem na solução dos problemas desta vida, e não na paz do outro mundo. Não sei onde estariam os negros sem o candomblé!”

Por outro lado, em “A cidade das mulheres” o que está em jogo é muito mais a narrativa de um “lugar de encontro” do que um retrato que se pretenda “objetivo” de uma “realidade social”. Sua proposta foi viver o trabalho de campo como uma experiência que alterasse sua própria vida. Aos poucos, vamos compartilhando com essa antropóloga incomum suas descobertas. Uma verdadeira metamorfose vai se processando durante uma viagem narrada em detalhes. O encontro com Mãe Menininha no Terreiro do Gantois, ao qual é conduzida por Carneiro e Jorge Amado, é um dos ápices de sua experiência, em que ela descobre uma mulher independente, admirada, dona de si.

Ruth Landes também explora a diferença do modo de pensar entre americanos e brasileiros. Por exemplo, relatando uma discussão acalorada com Édson Carneiro, em que este afirma que os norte-americanos importavam-se apenas com o “vil metal”, desprezando a cultura, Landes retruca: “Os norte-americanos pensam em termos de raça. Um preto é inferior a um branco por causa da sua raça. Não se imagina que um negro tenha cultura alguma, a não ser a que lhe vem do branco”.

Termina seu livro tecendo um elogio às mulheres baianas do candomblé e comparando-as com as norte-americanas: “Penso que as negras baianas ajudam a engrandecer o Brasil. Acreditarão os americanos que haja um país em que mulheres gostem realmente dos homens, sentem-se seguras e à vontade com eles e não os temem?”

Entretanto, pese seu ineditismo e vanguardismo somente em 1967, portanto, vinte anos após a edição em inglês e graças ao empenho de Édson Carneiro, “A cidade das mulheres” foi traduzido e editado pela Editora Civilização Brasileira. Ainda é encontrado nas melhores bibliotecas e em sebos de nosso Brasil.

Se Ruth ainda estivesse viva ela diria: Parabéns Grande Rio!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Artigos em destaque

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on skype
Share on telegram
Share on whatsapp
Share on email

Cadastre-se para receber novidades

Receba as novidades do site em seu e-mail

© 2022 por Carlos Russo Jr – Todos os direitos reservados