Memórias de um Subversivo (nono episódio)

“Entre- Grades”

“Quando a alma dilacerada não mais encontra um motivo para viver”

Alexandrino conhecera aquele militante ainda em liberdade, dentro da organização revolucionária a que ambos pertenciam. De estatura baixa mas de compleição atlética, tinha um sotaque nordestino que denotava facilmente sua origem cearense. Um bigode vistoso que encimava o lábio fino, o que lhe conferia um quê de seriedade e disciplina, e ele as levava extremamente a sério.

Alprim tinha uma origem humilde, veio para São Paulo só, quando ainda adolescente, aos quatorze anos de idade. Trabalhou duro como operário, na luta pela subsistência. Mais tarde, casou-se, teve dois filhos e passou a viver numa modesta mas dígna residência na zona sul de São Paulo. Muito cedo filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, tendo-o deixado juntamente com os companheiros da Dissidência Comunista de São Paulo, que logo a seguir transformou-se na Aliança Libertadora Nacional, buscando na luta armada uma alternativa revolucionária. Na intimidade sempre soltou o riso largo, a ternura e o orgulho de pertencer ao “proletariado”.

Em tantos compromissos realizados juntos, Alexandrino, tornando-se também um porta voz de outros companheiros, recorda-se de jamais ter ocorrido um atraso em ponto de encontro com aquele militante, falha alguma em sua militância, qualquer tipo de tarefa que lhe fora proposta e que ele não cumprira. Apesar de não fazer parte do GTA, grupo tático voltado às ações armadas, participara de uma ou duas ações, dentre elas a expropriação de dinamite da Rochester, segundo ele, “para fortalecer seu espírito revolucionário”.

Em um de seus encontros com Alprim, um detalhe chamou a atenção de Pedro Alexandrino. Mister X, pois esse era o seu “nome de guerra” na organização, possuía unhas nos dedos das mãos pouco aparadas, apesar de tratadas. A unha do dedo mindinho, em seu tamanho, chamava atenção. Pensou Alexandrino com seus botões: “Deve ser tocador de viola”. Muito tempo depois, já na prisão, ele soube que Mister X era um exímio músico, daquela estirpe dos poucos privilegiados pela natureza, como o nosso Patápio Silva. Músico da melhor qualidade, quase um auto-didata, tocava ao violão clássico Radamés, Mignone, Flausino, Garoto. Também gostava e dedilhava com perfeição música popular brasileira.

Mister X foi preso em fins de 1969 ou nos primeiros dias de 1970, devido às informações de outro companheiro que não suportara a tortura. Quando preso, dado seu porte atlético, desconheceu os torturadores, chegou mesmo a desafiá-los a que o fizessem falar. Foi, então, barbaramente torturado dias após dias, noites após noites na famigerada Operação Bandeirantes. Os policiais, ao final, conseguiram quebrar sua resistência. Ele forneceu-lhes o endereço de um operário que participava do seu grupo e era seu velho conhecido de lutas nas fábricas.

Esse operário não se encontrava em casa quando o aparato policial chegou trazendo Alprim. Relatou a Alexandrino, tempos depois: “Estava a minha mãe em casa, e os policiais para amendrontarem-na trouxeram Alprim arrastado, pois não conseguia se manter em pé. Semi nu, seu corpo era uma chaga só, todo arrebentado, e coberto de sangue. Jogaram-no aos pés de minha mãe dizendo que assim eu iria ficar quando me pegassem. Ameaçaram-na e foram embora levando-o de volta, enquanto prosseguiam com o espancamento”.

Alprim, quando em liberdade, havia sido encarregado de abrigar um companheiro, jornalista, vindo do Rio de Janeiro, já identificado pela repressão. Ele era muito procurado. Alprin, oito dias após sua prisão não mais resistiu e terminou por indicar aos torturadores a localização do abrigo. Quando a polícia chegou ao local, o jornalista acabou baleado e preso ao tentar fugir, saltando um muro da residência.

É importante também consignar-se que Alprim possuía muitas referências de todos os movimentos e organizações de que participou. Se ele tivesse fornecido mais informações para a repressão, seguramente o prejuízo teria sido muito maior tanto para os operários organizados como para a esquerda armada.

Após passar pela OBAN, foi transferido para o DOPS e as equipes dos delegados Fleury, Milton Dias e Cuoco retomaram as torturas. Ser operário, por si só, estimulava ainda mais o ódio dos algozes.

Um mês depois foi transferido para o presídio Tiradentes. Lá, aparentemente refeito, conviveu na mesma cela que Alexandrino. Adaptou-se à rotina da cadeia: estudava português e matemática, debatia política, lia e trabalhava com os companheiros de cela em artesanato, auxiliando a manutenção da própria família.

Foi libertado ao final de dois anos e meio, sendo amparado pela família que jamais o abandonou. Trabalhava com produtos químicos que manipulava e vendia para o sustento do lar.

Mas Alprim já não era mais a mesma pessoa; seu sorriso aberto desaparecera, seu violão estava mudo. Perseguiam-lhe os pesadelos, em que sempre estavam presentes as figuras de seu martírio: os companheiros que ele abrira sob tortura. Quando acordado, sobrevinham delírios, sentia-se perseguido, desconfiava de todos os que o cercavam, acreditava que algozes que haviam ferido de morte sua alma nobre, ainda o buscavam . Alprim não voltou a encontrava paz.

Um dia, com os mesmos fios que teceram a corda com que Frei Tito Alencar se enforcou, Alprim preparou uma poção de veneno e suicidou-se. Com sua destruição e morte a ditadura vencera mais uma vez, pois ferira de morte a auto-estima e dilacerara uma alma, o ódio suplantara a solidariedade humana. Alprim foi enterrado num cemitério simples, cemitério reservado aos pobres, num caixão básico, desses fornecidos pelo Serviço Público Municipal; ademais dos familiares, um ou outro de seus ex-companheiros de militância estiveram presentes. Sem discursos, sem homenagens, sem memoriais.

Alexandrino dedica-lhe uma poesia de Oscar Wilde, escrito nos subterrâneos de uma prisão da Inglaterra vitoriana : “Lágrimas na pétala de uma rosa”, que eu tenho a honra de transcrever:

“A sociedade, tal como a constituímos, não terá mais lugar para mim, nem me oferecerá nenhum. Mas a Natureza, cujas chuvas tão doces caem tanto sobre os justos quanto sobre os injustos, terá nas rochas algum esconderijo onde possa me ocultar, e me oferecerá vales secretos em cujo silêncio poderei chorar sem que me perturbem. Ela fará resplandecer as estrelas na escuridão para que eu não tropece nas trevas; fará soprar o vento sobre o rastro de meus passos, para que ninguém me persiga na morte; lavar-me-á com suas abundantes águas, e curar-me-á com suas ervas amargas.” (De Profundis).

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