Trata-se de um dos romances mais curtos da maturidade de Dostoiévski, escrito em apenas três meses, vindo à luz em 1870. Muitos dos temas mais caros ao autor estão nele referidos de uma maneira compacta: o mau trato a crianças no interior dos lares, o tormento psicológico carregado de culpas, as figuras jocosas e ao mesmo tempo trágicas de um “eterno marido”, daqueles que chegam ao extremo da degradação humana sem conseguir “curarem-se”.
Em poucos de seus tantos escritos, observamos um Dostoiévski mais livre, sarcástico, irônico e por que não, bem humorado. Ele vivia uma realidade pessoal de todo modo nova: seu casamento com Ana Grigorievna era harmonioso e ela engravidara pela segunda vez; sentia saudades da Pátria, pois residia em Dresden (fugira da Rússia devido às dívidas que poderiam levá-lo à cadeia), mas em compensação nem os credores, nem os censores oficiais lhe batiam à porta. Há algum tempo também deixara as roletas e os baralhos, considerando-se curado do antigo vício do jogo.
O Eterno Marido insere-se num ambiente de costumes sociais e literários em mutação.
O “eterno marido” é aquele que complementa a mulher, numa inversão da moral corrente da mulher submissa, a esposa socialmente aceita.
A grande Revolução Francesa de 1789 erguera a mulher-cidadã ao mesmo patamar do homem-cidadão. A Restauração pós-napoleônica, entretanto, fizera a condição feminina retroagir a antes da revolução burguesa: submissão ao marido, mulher objeto, esposa decorativa e procriadora. Somente após 1830, ao mesmo tempo em que na Europa ocorre um abrandamento da repressão política, gradualmente, a mulher irá reiniciar um longo processo de reconquista de seus direitos.
Na literatura, Balzac, idolatrado por Dostoiévski, foi entre os anos 1830/ 1840 o primeiro a romper com as cortinas da hipocrisia. O “ciclo de Vautrin”, nas Ilusões Perdidas, apodera-se da homossexualidade masculina e define um perfil de mulher que se torna independente do machismo dominante. Em Pai Goriot a mulher busca seu futuro à custa do antigo terror familiar – um “eterno pai” tornado “manso” e escravizado pela ambição filial. Em A menina dos olhos de ouro, Balzac expõe a homossexualidade feminina, no que é seguido, em 1850, pelo próprio Dostoiévski com Nietochka Nezvanova.
Flaubert, em 1857, rompe radicalmente com os preconceitos e padrões sociais e Madame Bovary, durante dez anos censurado na França, é a mulher que escolhe seus amantes. Carlos Bovary prenuncia o “eterno marido” de Dostoiévski, com treze anos de antecipação.
Do outro lado do mundo, em Norte América, Hawthorne publica A letra escarlate, ou a mulher que ousa ter um filho fora do casamento, acoberta o amante e cria a criança, enfrentando todo o puritanismo do século anterior, mesmo às custas da letra A, de adúltera, bordada em vermelho sobre a camisa (vide A letra escarlate http://proust.net.br/blog/?p=349).
Após O Eterno Marido, Tolstói, em 1877, tornará o mundo estupefato com Anna Karenina, a mulher que não somente escolhe seu amante, como se separa do marido, obrigada a deixar-lhe o filho amado, busca na droga um refúgio ao seu desespero e, finalmente, exerce a suprema liberdade do suicídio.
O Eterno Marido transfere às suas mulheres dons tidos como masculinos. O caráter decidido e dominador de sua esposa faz com que as infidelidades femininas jamais pesem na consciência dela. A esposa do “eterno marido” o trai com os amigos em comum, estando sempre pronta a “denunciar a depravação dos costumes, jamais a sua própria”.
O Eterno Marido carrega alguns traços biográficos de seu autor.
Quando condenado pelo czarismo a trabalhos forçados na Sibéria, ele realizara um primeiro casamento com a viúva de um amigo, Maria Dmitrievna, construindo um relacionamento conflituoso. Na própria noite de núpcias Dostoiévski fora acometido por ataque epilético que, desde então, o perseguiria por toda a vida. Infeliz na relação, ele apaixonou-se por Suslova, uma estudante de dezesseis anos e enveredou pelo mundo do jogo. Suslova logo o trocou por outro amante e ele voltou para Maria Dmitrievna, uma agonizante pela tísica. Em seu leito de morte, com muito ódio, confessa-lhe que sempre o havia traído, até mesmo na noite de núpcias que não chegara a se consumar.
Desde a morte da esposa, Dostoiévski agita-se na degradação espiritual das salas de jogo onde todo o dinheiro que consegue com seus livros, perde nas cartas ou é extorquido por seus parentes. Somente anos após, aos quarenta e quatro anos de idade, conhecerá Anna Grigorievna, a estenógrafa, por quem se apaixonará e que desposará, redimindo-se do inferno das jogatinas.
A mulher de Trusotski, O Eterno Marido, sempre o traíra. Será após sua morte, por tísica, que o marido descobrirá um pequeno cofrinho (um substituto do coração de Maria Dmitrievna) e nele as correspondências trocadas entre ela e os seus ex-amantes. Também fará a tremenda descoberta de que Lisa, a filha que tanto amava, não era biologicamente sua, mas de Vielthananinov, ex-amante da falecida e amigo do pobre Trusotski.
Desde então, ao saber que seu lar alicerçava-se na mentira, o “eterno marido” desmorona em vícios. Abandona suas posses (era um homem rico) e sua cidade – que o autor chama de “A Mentira” e vai residir em um pardieiro de Petersburgo, numa das famosas “dvorniks” presentes em todas as obras de Dostoiévski. Entrega-se ao alcoolismo, busca aventuras com as prostitutas que estejam ao seu alcance, passa a atormentar a pobre criança que trouxera consigo, desejando destruí-la numa contrapartida de sua própria degradação. Torna-se, enfim, um homem sórdido.
Numa atitude ambígua, anseia por encontrar e conviver com os amantes de sua falecida mulher. Veltchaninov é um homem bonito em seus quarenta anos, hipocondríaco, niilista, que leva uma vida de esbanjamento e desregramentos. Está ao alcance de embolsar uma terceira herança quando Trusotski volta à sua vida, depois de dez anos. No “dvornik” onde estão hospedados pai e Lisa, Veltchaninov tem a certeza de que a menina é sua filha. Ele se encanta com a garota e encontra um objetivo para viver. Ainda nesse reencontro, percebe que Lisa está atormentada e propõe a Pavel Trusotski que a deixe com uma família conhecida sua para que ela se recomponha. Isso não impedirá a morte da criança, vítima de uma febre desconhecida.
Após a morte da criança, Trusotski, com seus sessenta anos, volta à casa de Veltchaninov e anuncia que vai se casar com uma jovem de quinze anos e convida o amigo para acompanhá-lo à casa da noiva. Prepara-se para encenar pela segunda vez o “eterno marido”. Mas a tentativa soçobra.
Passam-se dois anos e eles se reencontram, agora, num trem. Veltchaninov, curado de sua hipocondria, defende uma jovem e atraente mulher de uma humilhação. Os dois conversam e ela o convida para uma visita em sua casa. Nesse momento, ela apresenta seu marido, ninguém menos que Trusotski. Espantado ao ver o ex-amante de sua primeira esposa, e pela maneira doce com que sua atual mulher trata um estranho, ele se sente ameaçado novamente pelo antigo conhecido. Mas para Veltchaninov não lhe interessa a reprise de uma tragicomédia conhecida.
Chaves para a compreensão de “O Eterno Marido”.
Primeira: A Vielthananinov, Trusotski reproduz Homero quando diz na Ilíada:
“Acabou Pátroclo, o vil Tersites ainda vive”.
O belo Pátroclo, o nobre, o amante de Aquiles, foi morto em luta franca com Heitor, às portas de Troia. Teve, portanto, uma “kallos thanatoi”, uma bela morte, a mesma de Bagautov, outro amante de sua falecida esposa.
Tersites não tinha “aristoi”, era plebeu, feio, envelhecido, será espancado por Agamêmnon e implorará pela vida. Sofrerá uma morte degradante estrangulado pelas mãos de Aquiles. O grande herói grego será flagrado por Tersites justamente na hora em que tem uma relação necrófila com o cadáver de Pentisileia, pelo próprio Aquiles morta em batalha. Tersites perde a crença na “aristoi” e ri, motivo suficiente para provocar o assassinato.
Trusotski, o Tersites Dostoiévskiano, sente-se vil, degradara-se a ponto de tentar a morte numa forca improvisada, mas que desmorona.
A degradação moral tanto em Dostoiévski, quanto em Shakespeare, ocorre quando se perde a crença, quer seja numa ideologia, numa pessoa ou numa instituição como o casamento. Otelo não assassina Desdêmona por ciúmes, mas pela quebra de uma crença, de um ideal. Dostoiéviski ao nos expor seu “eterno marido” o apresenta não como um ciumento, mas como um homem que perdera a crença.
O Tersites de Dostoiévski não satisfeito com a primeira experiência de desposar mulheres bonitas e sem dotes financeiros, extremamente mais jovens que ele mesmo, ainda voltará a casar-se e experimentará a “cegueira” de seguir não vendo ao seu lado os amantes de sua futura mulher.
Segunda: Vielthananinov sofre a culpa de ter deixado a amante grávida, mas seu sofrimento caracterizado pela depressão e pela hipocondríase são inconscientes. O niilismo que o invade possui sua chave na citação realizada pelo autor sobre Turguêniev ( autor de Pais e Filhos http://proust.net.br/blog/?p=648).
Apenas quando toma conhecimento da existência da pequena Lisa, que é torturada por quem ela crê ser seu pai, é que se inicia a sua “katarsis”. Novamente, a aquisição da consciência ocorre através da dor. Depois de retirá-la das mãos do padrasto e levá-la para um lugar seguro, Vielthananinov se sentirá renascer somente após toda a dor que lhe trás a morte da pequena filha que jamais soube que ele era o seu pai.
Terceira: O beijo e a navalha. Trusotski aproxima-se do ex-amante da mulher e pai de Lisa buscando encontrar aquele que se fizera amar por sua falecida esposa, de certa forma admira-o porque Vielthananinov jamais se sujeitaria cumprir um papel de “eterno marido”. Por esse motivo o beija na mesma noite em que, com uma navalha improvisada, tentará assassiná-lo. O assassinato estava no subconsciente de Trusotski e ele só o descobriu quando se aproximava do rival que dormia. A tentativa de assassinato faz com que Vielthananinov sinta-se redimido de suas culpas.
Quarta: O “eterno marido” é como “o cão que guarda o feno”. Não come e não quer conscientemente permitir que outros o façam, mas no que é traído por seu subconsciente. Ele permite à mulher uma vida socialmente cômoda, assim como a aproximação de rapazes mais jovens, mas mantém-se vigilante quanto ao feno.
Quinta: A música de Glinka. Na festa de Nádia, a pretensa noiva de quinze anos de Trusotski, ela canta Glinka, principal representante da música folclórica russa. Glinka, o autor da ópera “A vida pelo Czar”, expressa o eslavismo de Dostoiévski e manifesta a nostalgia do exílio em que vivia.
Conclusão: O Eterno Marido é um romance extremamente envolvente e que nos surpreende a cada momento. É uma pequena obra-prima que muitos críticos, como André Gide, consideram um dos mais bem acabados romances curtos de Dostoiévski.