A Psicologia Histórica e Meyerson

Quem concebeu e desenvolveu pela primeira vez o conceito de Psicologia Histórica foi Ignace Meyerson, polonês de origem judaica que imigrou para a França quando as tropas russas czaristas, em 1905, atacaram a Polônia revoltada. Concluiu Medicina em Paris, com residência em hospitais psiquiátricos.

O ano de 1912 encontra Meyerson dedicado à pesquisa científica no laboratório experimental de neurofisiologia de Lapicque. Somente em 1920 retorna à Psicologia propriamente dita, tendo sido o primeiro secretário da Sociedade Francesa de Psicologia recém formada. O Jornal de Psicologia Normal e Psicopatologia, fundado por Janet e Dumas, passa tê-lo como organizador, e, em 1938, seu Presidente. Meyerson dirigiu uma das maiores revistas científicas da área de psicologia até 1962- durante 63 anos. O Jornal foi um fórum de debates constantes entre as diversas disciplinas humanas, englobando diferentes abordagens na perspectiva do comportamento humano- agrupando a colaboração de historiadores, sociólogos, antropólogos, lingüistas e estudiosos da estética.

Com o advento da Segunda Guerra e a invasão de Paris, Meyerson deixou a Sorbonne, onde substituíra Delacroix na cadeira de Psicologia e incorporou-se a Universidade de Toulouse. Entretanto, esta fase teve curta duração, tendo sido proibido de lecionar por ser judeu. Mesmo assim, fundou com enorme coragem pessoal a Sociedade Toulusiana de Psicologia Comparativa em 1942.

Quando em novembro de 1942, os alemães vieram buscá-lo para envio aos campos de concentração ele já desaparecera. Aos 54 anos incorporara-se ao Exército de Libertação da França, e no dia da libertação de Paris, o Tenente-Coronel Monfort despiu seu uniforme, rasgou sua identidade falsa e negou-se a receber qualquer condecoração ou pensão; voltara a ser Meyerson o professor e estudioso.

Em 1948, aos 60 anos, para assumir a cátedra da Sorbonne, teve que escrever às pressas o seu único livro, “Les Fonctios psychologiques et les ouvres”, sua tese de livre-docência, a base teórica da Psicologia Histórica.

O conceito central da mesma é que o homem deve ser estudado nos pontos em que colocou mais de si mesmo: naquilo que fabricou, no que construiu, nas instituições que ergueu, em suas contínuas criações, período a período da história, século após século, terminando por edificar  este mundo humano em que vivemos e que constitui o nosso verdadeiro ambiente natural.

A psique humana incorpora-se naquilo que, continuamente, per “seculo seculorum”, construiu, conservou, transmitiu: ferramentas e técnicas, línguas, religiões, instituições sociais, sistema de ciências, de artes. Nesse sentido, torna-se impossível continuar a se postular, por trás das transformações de condutas e das obras humanas, um espírito imutável, assim como funções psicológicas permanentes ou um sujeito fixo interior. Forçoso foi reconhecer que o homem é, dentro de si, o lugar de uma história. E a tarefa central da psicologia histórica foi reconstruir seu percurso.

A psicologia histórica, em relação à tradicional, desloca o ângulo de abordagem do estudo dos comportamentos humanos para a análise das obras, que, por meio da concretude histórica, expessaram e moldaram mais facilmente o psiquismo humano.

Nossos atos são linguagem e sempre manifestam uma atividade mental. Já os comportamentos humanos, frutos e agentes da civilização com seus conteúdos espirituais são aspectos de uma mesma realidade concreta.

Logo, para a Psicologia Histórica, entre a psicologia e outras ciências do homem não há uma diferença de objeto e sim, um diferença de perspectiva. Nos fatos da civilização que o historiador estuda, quer seja o das religiões, do direito, da arte, ou o linguista, etc., o psicólogo esforça-se em perceber o comportamento do espírito.

Em decorrência, não existe razão alguma para nos limitarmos aos comportamentos presentes dos homens, na medida em que aqueles do passado não possuem menor valor. Conservados em obras e documentos eles têm a vantagem, inclusive, de se prestar mais facilmente à leitura e a comparações.

Logo, não existe realidade espiritual fora dos atos, das operações do homem sobre a natureza e sobre os outros homens. Resta à Psicologia acrescentar ao seu objeto uma nova dimensão: a histórica. História cuja sonda vai mais fundo: toca os acontecimentos, as instituições e as civilizações.

Entretanto não apenas as transformações psicológicas ocorrem no decorrer dos tempos. Elas são sempre “vítimas” de um “inacabamento”, caráter essencial das funções mentais. Meyerson dizia que se transformava a cada novo livro que lia. Inacabadas, as funções psicológicas são também inacabáveis. Não podemos determinar um fim para sua transformação. E como sua história não realiza nenhum modelo prévio de perfeição, trata-se sempre de uma história interrompida, complexa, feitas de idas e vindas e de direções imprevisíveis, estas todas as sendas do espírito humano.

Nada é definitivo: na história do espírito cada um de nós é responsável pelo esforço desenvolvido, por sua continuação e por sua renovação.  Mas ela não é uma história puramente individual, nem uma história no ar. Tem suas raízes muito bem fincadas na vida material e social dos homens. Isto exclui tanto o acaso quanto a predestinação.

Assim como não existe um campo psicológico puro, não existe tão pouco um campo social puro. Todos os fatos humanos – atos, obras, instituições, civilizações- são ao mesmo tempo psicológicos e sociais e, nesse sentido, o social nunca pode ser o princípio de explicação do psicológico e vice-versa. Os elos são complexos, dado a estrutura social depender de outras estruturas  e as formatações mentais de outras formas. Entre umas e outras não existe causalidade unilateral e sim, sempre, ações recíprocas.

Assim temos em Meyerson a compreensão que a História social é uma obra humana, elaborada pelos homens com suas paixões, seus interesses e suas representações. E, reciprocamente, por meio desta mesma História, os comportamentos humanos se transformam e o homem, por sua vez, elabora a si mesmo. É essa história complexa e fascinante do espírito humano que a psicologia comparativa nos mostra.

Ignace Meyerson não definiu apenas claramente seu método e objeto. Ao aplicá-lo ao espírito, mostrou toda a fecundidade da Psicologia Histórica; ao mostrar que o homem fabrica e fabricou a si mesmo, ela nos diz que ele é responsável por seu destino espiritual, assim como pelo social. O homem constrói, como agente e paciente, os dois ao mesmo tempo.

Meyerson foi nomeado Diretor de Pesquisas, em 1951 da Escola de Autos estudos Sociais. Militante político e social ativo, participou aos 80 anos, como um jovem, do Movimento de 1968, tanto na Universidade quanto ao lado dos estudantes nas barricadas. Faleceu em 1993, aos 95 anos de idade, em plena lucidez, momentos após proferir seu último seminário.

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