Quem me conhece socialmente não pode imaginar o rio de desencanto e perversão que correm juntos por minhas veias, num sangue feito fel, que nada mais faz que transportar o desalento de uma vida que se arrasta, se arrasta…
Sou afável, conversador, e os que me encontram pelas ruas do mundo até julgam descobrir em mim alguém de certo humor, na têmpera do viver. E talvez eu seja assim porque alguém como eu tem que buscar atrair alguma simpatia ou, quem sabe, o olhar comparsa de outro ser que se me assemelhe nos vícios, na canalhice e no desalento. Afinal, todo decadente precisa ainda assim de certo amparo, e somente o logra encontrar quando da compania de pessoas ingênuas ou, então, de seres que se lhe pareçam, para os quais a torpeza e o desalento sejam o pão e a carne de todo dia.
Confesso ser um tipo muito perspicaz, mesmo porque não se pode ser canalha sem argúcia e eu lhes garanto que somente quem se fixar no meu modo de olhar oblíquo com habilidade, poderá encontra alguma pista real de minha personalidade.
Mas não se vá pensar que eu tenha sido sempre assim. Não, isto não é verdade! Pois, creiam-me, já tive até mesmo dias de glória, de prazer, de muita companhia. Afinal, fui jóvem, promissor, amado, competente…Até o dia em que eu simplesmente preferi nada fazer.
Do dito, não se vá imaginar que em algum momento do meu passado, eu tenha compartilhado da felicidade idiotizada dos simplórios e dos ingênuos; apenas que, na juventude, deles também necessitava para respirar. Afinal, engolir o purgante da idiotice, da credulidade e da vulgaridade era uma maneira de conviver com aqueles por quem eu nutria o mais amargo desprezo. Era em seu meio que meu egocentrismo podia se espalhar e a minha vaidade podia se nutrir da estupidez daqueles parvos e onde a minha soberbia tornava-se intocável.
Enfim, como já disse, teve um momento em que toda a minha vida ativa de homem prático, por ser destituída de qualquer sentido, chegou ao fim e eu preferi nada fazer. Foi então que num de meus passeios encontrei-me com alguém que, apesar de há muito tempo não ver, sempre se me assemelhou no meu sentir. Meu amigo Melville.
Escritor afamado no seu então, ele me aconselhou a que eu me ocupasse em escrever, pois, no seu dizer, “a vida se arrastaria menos devagar, e, talvez, aí sim, com certa dose de parcimônia, você poderia filtrar um pouco de seu desalento, destilar em gotas o fel que lhe consome…” Mas qual, eu disse ao meu amigo, “eu prefiro não fazer…e escrever para quem, para que, e onde encontrar um editor tão estúpido que concorde em editar o que eu teria para por no papel? Não, Melville, eu prefiro, realmente, não fazer”.
Foi então que meu amigo me falou de um tal de Bartleby, um escrevente como tantos que povoavam nossos cartórios, como alguém que, de repente, como eu, “preferia nada fazer”. Meu amigo conheceu-o naquela época em que os correios não possuiam a concorrência arrazadora dos “e-mails”, aliás meu interlocutor mostrou-se muito curiososo para saber como isto funciona, mas esta já é outra história que um dia ainda contarei.
Voltemos ao senhor Bartleby, o copista. Ele trabalhara num departamento do correio, o de cartas devolvidas. Disse-me Melville: “Cartas mortas, isto não soa como homens mortos? Imagine um homem que por natureza tem a tendência a uma insidiosa desesperança. Alguma atividade pode ser mais apropriada para aguçar essa desesperança do que manipular cartas mortas e separá-las para o fogo? Com mensagens de vida, essas cartas caminhavam para a morte”. E aduziu: “É meu amigo, Bartleby era um escrevente já sem alma, ela toda se consumira nos milhares de cartas com mensagens vivas que se destruíram no fogo. Por isso ele dizia que a tudo “preferia nada fazer…”
Eu entendi perfeitamente a mensagem que, com Bartleby, meu amigo me passara. Chegando a minha casa, puz-me a escrever, eu “que preferia não fazer…”.