Ulisses e a primeira Utopia na reinvenção do mundo.

O processo civilizatório é sempre uma operação de libertação e de conquista.

A segunda epopeia grega que nos chegou como sendo de autoria do poeta Homero, ilustra uma das mais importantes dessas conquistas: aquela que o povo grego fez do mar à força de audácia, da paciência e da inteligência.

E Ulisses, no poema, é o herói dessa Conquista!

Os povos dóricos, quando chegaram à Grécia, eram povos terrestres; aprenderam a arte náutica com os antigos Egeus e somente então, “descobriram os caminhos do mar”.

Acontece que para um povo conquistador e predador, os minérios não eram a abundantes na região e foi a necessidade de metais a contribuir, mais que qualquer outra coisa, para impelir os gregos para o mar.

Se o ferro era raro, sobretudo o estanho faltava totalmente, tanto na Grécia como nos países vizinhos. Deste metal juntamente com o obtinha-se o bronze.

Mesmo tendo sido a espada de ferro fundamental na invasão dos dóricos, permitindo-lhes o triunfo sobre o punhal de bronze dos egeus, é ainda o bronze que continua a ser, no século VIII e mesmo tarde, o metal por excelência da armadura defensiva do soldado: elmo, couraça dos ombros, perneiras e escudo de braço.

Foram os aristocratas invasores que, ousados, tomaram o comando das primeiras expedições de comércio, mesmo porque somente eles tinham meios para mandar construir e equipar barcos e empregar homens de equipagem. A massa dos sem- terra e dos sem trabalho que pululavam na Grécia, mão de obra cujo o custo era exclusivamente a alimentação, foi o núcleo das suas lucrativas expedições comerciais.

O estanho era abundante na Etrúria, a Itália dos dias de hoje. E será a Etrúria a rota marítima ocidental, passando pelo Estreito de Messina e pelas costas da Itália, a rota de Ulisses, rota esta que foi como uma vanguarda na sua partida de Troia até a ilha de Ítaca, uma vanguarda poética a assinalar a multidão de marinheiros, mercadores e de aristocratas na vida real!

Ulisses na luta de conquista e rapina de Troia fora um bom soldado, esperto e intuitivo orador, diplomata. No retorno de Troia, o “habilidoso” se torna um marinheiro que se aventura por todos os lugares.

Na essência, ele é o herói do retorno do esposo à Pátria. Mas será que a esposa lhe seria fiel e ao menos o reconheceria após tanto tempo, vinte anos de ausência?

O Ulisses envelhecido no retorno ao lar, só será reconhecido por três sinais: o ato de esticar o arco que possuía e que, com sua exímia pontaria, mataria o principal pretendente a sucedê-lo perante a mulher, saber onde o seu próprio leito nupcial fora construído, e a cicatriz de infância que a mordida de um porco lhe deixara, e que somente própria esposa e a escrava Euricleia conheciam.

No retorno de Troia a Ítaca, uma tempestade atira o navio para os mares do ocidente, na direção da Sicília, da Sardenha e da África do Norte, terras então desconhecidas, assustadoras, povoadas de monstros para o povo ático.

A tempestade quase destrói o frágil barco o e os navegadores, um barco que nem ao menos possuia cobertura, apenas uma vela à polpa e remos, feito apenas para navegar bordeando a costa.

Ulisses e sua tripulação, avançam então por locais cheios de perigos fantásticos, locais estes que, posteriormente serão colonizados pelos gregos, sempre duplicados pela imaginação popular.

Silas e Caríbdis significam os perigos que o estreito de Messina representava para os pequenos barcos e que na epopeia se humanizam.

Nas costas da Itália a tripulação se defrontará tanto com os mais antigos drogados, “os comedores de lotófagos”, quanto enfrentará antropófagos e também gigantes de um só olho na testa, os Ciclopes.

Nas ilhas do mar, encontrarão deusas-fadas que retém os navegantes nas delícias e armadilhas de seus amores. E dentre elas, a belíssima Circe, aquela que, quando desejada, toca os homens com uma varinha e os transforma em animais, ainda uma lembrança do matriarcado das sociedades egeias (minoicas). Um prazer adicional a compraz ao transformar os excitados companheiros de Ulisses em porcos.

Mas Ulisses é esperto e percebe que, por ele, Circe está apaixonada. Após fazer-lhe amor, com ajuda do deus Hermes, arranca-lhe o segredo para desencantar seus homens.

E ele a deixa ao partir.

A Ninfa Calipso, cujo nome significa “aquele que se esconde”, salvou nosso herói de um naufrágio e levou-o para sua moradia na ilha de Ogygia. Lá, em uma gruta mágica, ela apareceu para ele em toda sua glória, e ofereceu-se como esposa. Ulisses passou na ilha longos de sete anos.

Calypso não queria deixá-lo partir, e todas as noites o entretinha com danças e cantos, na esperança de apagar as memórias de Ítaca. Apenas por ordem de Zeus, que ouve as súplicas de Ulisses, esta fornecerá ao amante ferramentas para construir uma jangada e voltar ao mar.

Mas as aventuras não se esgotam.

Em outra ilha surgirão as sereias, mulheres-aves fadas cuja voz é mágica, que atraem os marinheiros para os devorarem. E só se resiste ao apelo ou estando acorrentado, ou se tampando os ouvidos. Ulisses faz-se acorrentar, tudo deseja ver, sentir.

No entanto, além do ver e do sentir, Ulisses perante cada obstáculo é o homem que medita. Antes de agir reflete Ulisses, “o de muitos ardis” como no caso de Polifemo, o gigante ciclope que o aprisiona com os companheiros numa caverna fechada para devorá-los. Ele lhe oferece bebida, o embriaga e o cega. Para que não se socorra com outros ciclopes, diz chamar-se “Ninguém”. E utilizam-se da lã dos carneiros do rebanho do gigante para fugir!

Ulisses enquanto navega sonha com sua terra, suas construções, seus portos, com os métodos de plantio que os povos um dia irão realizar. O mar o atrai, mesmo que ele o tema, pois seu

desejo é devassar e conhecer esses mundos ocultos, dominá-los e tornar-se senhor da Natureza: nisto tudo, Ulisses é um homem civilizado.

Depois, novo naufrágio ainda ocorrerá e Ulisses prefere confiar em um pedaço de madeira e nos próprios braços, próprias forças, para nadar por dois dias até chegar à praia dos Feaces.

A reinvenção do mundo, a primeira Utopia.

Quem são esses Feaces? Inútil procura-los nos mapas!

Eles são um povo de homens felizes, que habitam no seio do mar em fim “domado”, numa terra maravilhosamente fértil, onde vivem em sabedoria e em simplicidade.

A terra dos Feaces, que se chama Esquéria, é um Eldorado, é uma ilhota da Idade de Ouro de um Hesíodo, poupada pelo tempo. Ali, a natureza e a arte rivalizam ali em beleza, em esplendor, em virtudes.

O grande pomar do nobre rei Alcinoo rebrilha com uma luz que parece vir do Sol e da Lua. Ouro, prata e bronze ali resplandecem. Cães de ouro, mais vivos que outras obras-primas do deus Hefesto, guardam as suas portas.

É como um conto de fadas este Palácio neste Eldorado.

Mas os comportamentos, os costumes são também de ouro; o coração da princesa Nausica também é de ouro e toda a sua família é digna do primeiro Paraíso terrestre, descrito no século VIII a. C..

Até a navegação feace ficou na cidade de Ouro. Imaginemos os infelizes marinheiros que remam contra ventos e vagas grossas em barcos sem nem mesmo cobertura! Mas as naves feaces são barcos inteligentes, conduzem o marinheiro onde ele quer ir sem temer avarias ou desastres entre as ondas do mar.

E a terra em que Ulisses aportou nadando é, além disso tudo, a pátria dança e do canto. Sem dúvida, parte de sonho, de um conto de fadas. Mas há também no engenho do povo grego, a ideia confusa, a imaginação clara de que os homens poderiam um dia fazer da terra um jardim maravilhoso, um lugar de paz e de sabedoria, no qual levaria uma vida de felicidade.

E a aventura de Ulisses se completa no amor que ele faz brotar em Nausica.

A deusa Atenas se mete no jogo e da entender à moça Nausica que a esperam novidades na praia. E ela parte no carro do pai, leva com suas amigas roupas para lavar e jogam bola ao lado de onde Ulisses, náufrago, repousa.

E ele com apenas a proteção de um ramo de planta se apresenta à moça e ela a leva com esperanças ardentes no coração até o palácio do pai.

Lá, Ulisses conta toda sua história. Nausica chora sua decepção, não ocorrerá agora seu himeneu! Serão os Feaceos em seus incríveis barcos que o conduzirão de volta a Ítaca.

E na sua ilha, lutara ele lutará contra os pretendentes que o espoliam a anos.

Gerações mais tarde, populações gregas estarão nos lugares cantados pelo poeta Homero; é a poesia que se liga à ação que a procede e é seu guia.

Coragem e inteligência, prática superior a ser utilizada em seu proveito, tanto no trato do homem, quanto no de coisas.

Ulisses que cria sempre “mentiras irrepreensíveis” com os sentimentos que inspira, amor em Nausica, a dedicação do filho Telêmaco, a fidelidade da mulher Penélope, a lealdade do porcariço Eumeu e da ama Ericleia.

O regresso ´de Troia a Ítaca dura 10 anos; nosso herói com auxílio de Telêmaco, o filho de vinte anos e dois serviçais, reestrutura o poder e a felicidade familiar.

O navegante Ulisses foi também um inventor máquinas, um “technos”. Ulisses, “homo faber”, foi carpinteiro, piloto, pedreiro, celeiro; dentro do próprio poema épico, também é rodeado pelas Musas, conta as histórias próprias e sabidas para os povos que o podem servir.

Ulisses simboliza a luta da inteligência para fabricar a felicidade dos homens!

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