Desde que Trump sagrou-se vitorioso nas eleições americanas, no início da última semana, muito já foi dito. Não vou aqui repetir os argumentos, alarmantes, que prenunciam um mundo ainda mais caótico a partir de quando ele assumir o governo, em janeiro de 2025. Preocupa-me muito mais, neste momento, a dificuldade do governo brasileiro de entender o significado da vitória de Trump. Nesse sentido, vou tomar emprestada uma frase de Bernie Sanders, democrata de tonalidade mais à esquerda, que tentou concorrer ao posto de presidente americano em 2016, mas foi derrotado pela candidata Hillary Clinton, mais bem aceita pelo “establishment”. Disse Sanders, após a vitória de Trump, na sua página no X (antigo Twitter): “Não deveria nos surpreender tanto que um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descubra que a classe trabalhadora o abandonou”.
Sugiro que Lula leia e reflita sobre essa mensagem de Sanders, se ainda não o fez.
Aqui no Brasil, Lula precisa deixar de tentar ser um representante do mundo para ser um legítimo representante do povo brasileiro. De fato, se por um lado Lula ainda estabelece barreiras para o desmonte ultraliberal que seu Ministro da Fazenda, Fernando Haddad está tentando impor ao país, sob o argumento de acalmar os humores do “mercado” – exemplo disso foi a alarmante tentativa de convencer o Presidente da República a aceitar a diminuição dos recursos a serem destinados às principais áreas sociais do país, notadamente Saúde e Educação -, por outro lado ele tem se omitido sistematicamente em relação àquela política miúda, diária, corpo a corpo, que precisa ser desenvolvida junto à população menos favorecida.
O fiasco do PT nas eleições deste ano é um sinal mais que amarelo, talvez laranja, para as eleições de 2026, que abarcarão os cargos políticos mais importantes do país.
Por conseguinte, é fundamental que Lula assuma as rédeas do governo brasileiro, no sentido da política nacional, não mais valide as políticas negativas de seus comandados mais diretos e ponha fim nos acordos espúrios que estão sendo firmados com os bolsonaristas do Congresso Nacional, especialmente com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Está mais do que claro que o governo Biden foi reprovado, em grande parte, pelo pouco impacto de suas políticas sociais para a grande classe média americana. É claro que não foi só isso! As fake news sobre os imigrantes e os apelos fundamentalistas também foram importantes no processo de desconstrução do governo Biden.
No cenário nacional, em que a classe média tem sido reduzida sistematicamente ao longo das últimas décadas neoliberais, torna-se ainda mais urgente que Lula volte a sua atenção para a grande massa de pessoas que sofreram algum tipo de retrocesso econômico desde o golpe parlamentar de 2016, sem olvidar da necessidade de cuidar das demandas dos que foram esquecidos durante os 13 anos de governo petista.
Ora, basta uma olhada rápida para perceber que os números econômicos do governo Trump foram melhores do que o do governo Biden, mesmo considerando a pandemia que o primeiro enfrentou. Com efeito, a inflação, tão sensível para os estadunidenses, aumentou consideravelmente no governo Biden. E os salários médios não acompanharam o aumento dos preços. Se no governo Trump a economia sofreu uma queda abrupta no período mais intenso da pandemia, ela logo se recuperou fortemente no período posterior. Em contraste, o governo Biden foi caracterizado por um crescimento da economia relativamente estável, mas baixo para as necessidades de consumo do país mais poderoso do mundo. Por outro lado, se o crescimento do emprego foi significativo no governo Biden, ele já dava sinais de desaceleração desde o meio desse ano, ocasionando temores de uma desaceleração da economia americana para o próximo ano.
Aqui, a economia brasileira melhorou com o terceiro governo Lula, em relação ao período Temer-Bolsonaro. Penso que isso não tem discussão. Contudo, a melhora da economia brasileira está muito distante do cidadão comum. Com efeito, o PIB tem crescido acima do esperado, mas as expectativas para as contas públicas não são boas, especialmente por conta da desastrosa política monetária praticada pelo Banco Central, capitaneado pelo bolsonarista Campos Neto. Assim, o risco fiscal é uma narrativa mantida pelo Bacen com o intuito de aprisionar a nossa sociedade sob a eterna necessidade de reduzir as despesas públicas, para que sobre mais receita para o rentismo.
O mesmo tipo de narrativa falsa foi dado, no passado, para os ajustes monetários para o controle dos índices de preços que nunca funcionaram a contento no Brasil, por uma série de variáveis para além do mero ajuste fiscal. Por exemplo, a inflação inercial que o país viveu na década perdida dos anos 1980 não era uma inflação de demanda, como os organismos internacionais, preferencialmente o FMI, denunciavam, com o apoio maciço dos principais meios de comunicação, mas, ao contrário, era causada por uma escassez crônica de oferta, em uma economia que lutava ingloriamente para se industrializar tardiamente.
Da mesma forma, a situação preocupante que o “mercado” atualmente sinaliza para a economia brasileira nada tem a ver com os reais termômetros que a nossa economia apresenta. Na verdade, se o Brasil conseguisse reduzir a alta carga de espoliação financeira a que está submetido para pagamento dos juros da dívida pública – que nos 12 meses que antecederam agosto de 2024, acumulou R$ 855,00 bilhões, o que corresponde a 7,55% do PIB -, certamente não teria problemas para financiar o seu próprio crescimento. Se tomarmos outros parâmetros econômicos, como o saldo da balança comercial, o aumento das reservas internacionais, a queda da taxa básica de juros (sic) e a manutenção da meta de inflação, ainda que hoje ela esteja bem no limite, podemos perceber que o problema brasileiro sempre foi muito mais político do que econômico.
Por isso, torço para que as pessoas mais próximas de Lula – os seus familiares, seus amigos mais ferrenhos e seus ministros mais basilares -, para que busquem atenuar seus arroubos claramente megalomaníacos, de se considerar um líder de dimensões internacionais, com poder de fato para interferir nas questões mais sensíveis mundo afora, e trazê-lo de volta para as questões mais comezinhas da nossa realidade social, pois, certamente, está se esgotando o tempo de que ele dispõe para, de fato, escrever o seu nome na história como o maior político que o país já teve. E aqui estou considerando que Lula terá saúde e força para mais uma vez concorrer e ser reeleito.
Viabilizar que o povo possa comer 1 kg de carne para churrasco e beber uma grade de cerveja por mês não significaria a resolução dos nossos problemas sociais. Existe ainda muito trabalho a ser feito em termos de reforma educacional, reforma agrária, reforma no sistema habitacional, reforma no sistema financeiro etc! Percebe, Lula?
Por favor, tente ser menos o príncipe encantado dos bailes da ONU e mais o sapo barbudo das eleições de 1989. O país agradece!
Obs.:*André Márcio Neves Soares é doutor pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL.
3 respostas
Muito boa analise.
Observação periférica ao bom artigo: A política de globalização da economia mundial além de prejudicar o mundo todo, também contribuiu para a desindustrialização dos EUA, com a respectiva crise de emprego e remuneração média.
Ou seja, o relativo equilíbrio da economia sob Biden não alterou a sensação de destruição que o povo tem de perda em relação ao século passado. A região da ferrugem principalmente.
E isso desenquadra a comparação com o Brasil.
O Sanders foi modesto na crítica. O governo americano é protagonista das guerras localizadas, do fortalecimento do neoliberalismo, da condescendência com o nazifascismo e a tentativa aterrorizadora de provocar uma hecatombe mundial.
Ou seja, os democratas e o Biden são muito diferentes do PT e do Lula, sem com isso tentar atenuar a culpa dos conterrâneos. E tampouco deixar de concordar que por aqui houve abandono das bases sociais, da democracia interna e partidária, e de que se ignora a luta e a formaçao politica e ideológica. Estamos perdendo a guerra cultural.
E a correção de rumos não pede decisões sectárias, aventureiras, mesmo porque o contexto esclarece que o capitalismo atual é decadente e provavelmente suicida.
Temos que construir o pós capitalismo, deste financeiro, oligopolista, “feudal” etc
Este bom artigo sugere uma análise aprofundada das mudanças radicais que a dita “classe trabalhadora” vem sofrendo na chamada “4a. revolução industrial” . Dois pontos principais desta mudança são a queda vertiginosa no número de empregos e as continuas (e alucinadas, diria eu) transformaçoes tecnológicas. Por isso as camadas mais pobres da população devem ser sub-divididas em trabalhadores empregados, trabalhadores que trabalham por conta própria, trabalhadores com algum conhecimento computacional, trabalhadores sem nenhum conhecimento computacional, etc.