Serão duas as frases basilares com as quais o romance “Anna Karenina” se anuncia. A primeira é: “Minha é a vingança, e a recompensa” (Deuteronômio, XXVII), que a seguir é complementada: “E eu a executarei! ”
Prenúncio que, em sua essência é o mesmo de uma tragédia clássica, “Medeia”, que Eurípedes escreveu no séc. V a.C. na Grécia Antiga, com toda a sua desmedida, seu sentido ambíguo na traição e a decisão de vingança da mulher desprezada e desesperada.
Tolstói, nesse livro monumental, exerceu a mesma ambiguidade de Eurípedes, condenando a sociedade hipócrita que persegue Anna até a morte, ao mesmo tempo em que invoca as punições inexoráveis da lei moral, aos quais Medeia, entretanto, logra “subtrair-se” no dragão da loucura que a transporta até Egeu, no refúgio ateniense.
Thomas Mann, ao citar a cena inicial da recepção dos Oblonski, diz que nenhum outro romance inicia com tanta bravura e firmeza, mirando na segunda frase basilar: “As famílias felizes todas se parecem; as infelizes o são cada uma a sua maneira”.
“Anna Karenina”, a primeira verdadeira novela de Tolstói, foi finalizada em 1877. Conta-nos algumas histórias, que, pese à sua importância, são paralelas àquela que é central: uma mulher adúltera presa pelas convenções e falsidades de uma sociedade hipócrita e decadente, que toma a decisão de abandonar o próprio lar e o filho para viver com um amante bem mais jovem, o mundano Conde Vronsky, um oficial da cavalaria.
Pois seria justamente uma infidelidade trivial cometida por Stiva Oblonski, irmão de Anna Karenina, o fio detonador da trama. Ele pede que a irmã Anna venha de onde reside com marido e filho, na ortodoxa Moscou, para Petersburgo, a cidade mais ocidentalizada e moderna da Rússia. Precisa de sua ajuda para reparar seu casamento que ameaça naufragar.
A história que se desenvolverá será uma ironia, pois as discussões entre Stiva e Dolly, sua esposa, serão a faceta cômica das discussões duras e tristes que ocorrerão futuramente entre Anna e seu próprio marido, o traído e profundamente infeliz Conde Alexi Karenin, um burocrata moscovita de alto coturno.
Em Medeia, ele e Jasão viajam em “naves que voam” junto aos argonautas. No séc. XIX Tolstói possui enorme fixação pelas ferrovias, que em seu tempo abrira tantos caminhos ao homem, tornara as pessoas mais próximas e o próprio mundo se encurtara ao seu roncar.
A mãe de Vronski é companheira de viagem de Anna, que chega de trem naquela visita ao irmão e à cunhada. Ao descer à plataforma encontra-se com Vrosnki e Anna lhe diz: “Eu e a Condessa conversamos o tempo todo, eu do meu filho e ela do filho dela. ” Aqui se traça uma divisória que fundamentará o desenrolar da trama: Anna e Vroski não pertencem à mesma geração e daí a catástrofe do relacionamento futuro.
Neste mesmo episódio, um vigia da estrada de ferro desatento, é esmagado por um trem, um prenúncio para o final do livro, que terá Anna a suicidar-se e Vronsk, partir para a guerra da Criméia. Mas não nos adiantemos tanto. Vronski, nesse momento, não tão modestamente que não pudesse ser visto por Anna, estende dinheiro para ajudar a viúva do vigia morto, ele deseja que seu gesto seja observado.
Anna é linda e possui o esplendor da mulher madura. Ela incentivará a jovem Kitty, irmã de sua cunhada, em relação ao jovem oficial Vronski, e, então, quando ocorre um grande baile elas irão juntas. Entretanto, quem brilhará no salão, tal qual Helena de Menelau na Ilíada e Medeia na Cólquida, será Anna, pois a beleza madura costuma ser sempre mais astuta e cruel que a beleza ingênua: a formosura sensual de Anna farão Vronski ceder a seus encantos! Ele desconhecerá Kitty e esta reagirá com ódio à Anna, crendo-se, por seu turno, apaixonada por rapaz.
Tolstói não desperdiçava palavras e, por isso, jamais em “Anna Karenina” o namoro ou mesmo a simples paquera, é apenas passatempo banal. Ou surge como uma espécie de prelúdio ao autoconhecimento, o que ocorrerá com Kitty após o impacto do baile, ou, em determinadas circunstâncias, será o preâmbulo de uma paixão avassaladora, tal qual se desenvolverá entre o Conde Vronki e Anna, paixão total e demoníaca que impele os homens à irreflexão e ao desastre.
Medeia apaixonada por Jasão traiu seu pai e sacrificou, na fuga, a vida de um irmão!
Naquele mundo de seres superficiais e mundanos, tais quais Anna, Stiva, Kitty e Dolly, Tolstói planta um herói e este é Kosntantin Lievin, antigo amigo do irmão de Dolly. Lievin é um homem forte como a natureza dos campos onde vive, é contrário à reforma agronômica que o oficialismo inspirado no ocidente quer impor aos proprietários rurais e rejeita a convivência e a cultura urbana de Petersburgo.
Lievin também ama Kitty, a cunhada de Oblonski. Kitty e Lievin são ainda somente amigos, mas quando patinam juntos ocorre o envolvimento mútuo, de tão forte que até a luz incide de modo resplendente sobre o pátio de patinação no gelo. E quando Lievin a pede em casamento, Kitty sentirá o desabrochar da felicidade, e algum tempo após ela adquirirá o autoconhecimento suficiente para amá-lo.
Lievin, por seu turno, é profundamente monogâmico e “repugnam-lhe as mulheres decaídas”. Possui sentimentos profundos por saber perdoar e exercer a compaixão pelo próximo. No futuro, será nele que Anna encontrará um apoio seguro em seu desespero.
Pois muito de “Anna Karenina” esteja centrado no dilema do conflito entre monogamia e liberdade sexual, nas inconsistências entre os ideais pessoais e o comportamento interpessoal, a inserção basilar é a das pessoas na vida preconceituosa e cínica da vida em sociedade.
Ao encerrar-se a primeira parte do livro, Anna consegue interferir e apaziguar o conflito conjugal entre o irmão e a cunhada. Como um presságio do que virá, diz a Dolly em confidência: “Todos temos os nossos segredos na alma, como dizem os ingleses…”
Quando retorna a Petersburgo, Anna é seguida por Vronski no mesmo trem; numa parada do comboio escuta o que seu coração desejava, mas que lhe repugnava à razão: a paixão urgente do Conde por ela.
Chegando a Petersburgo, o marido está à sua espera. Ela observa as orelhas feias que ornamentam a cabeça de um homem bem maduro. Jamais reparara nelas anteriormente! Ao chegar à sua casa, o filho já não lhe parece tão encantador. Mas Anna se contém e retorna à vida doméstica.
Uma cena marcante é a de Alexi Karenin indo até o quarto da mulher que chega de viagem; ele carrega um livro em baixo do braço; a hora de entrada e a da saída é precisa e o autor nos conduz à monotonia essencial da relação sexual vivida pelo casal.
Por seu lado, Vronski retorna ao quartel e à frivolidade de um ambicioso oficial, que é o que ele realmente era. Buscará, entretanto, na sua paixão não saciada, todos os modos de reencontrar Anna, primeiro em sociedade, depois em particular. Como frequentam os mesmos círculos aristocráticos os dois se reencontram e terminam por se apaixonar mutuamente.
E a paixão que se desencadeia é poderosa! O marido a princípio tenta se ocultar na cegueira voluntária, mas chega um ponto em que Anna torna tudo muito evidente socialmente.
Alexi é generoso e nada o horroriza mais que o escândalo. Ele estaria disposto a perdoá-la, mas a mulher não deseja perdão, quer amar e ser amada! Não mais lhe atrai a comodidade do lar. Alexi faz, então, com que ela renegue ao próprio filho e ela o faz.
Ele confessa a uma única e velha amiga que possuía: “Não posso nem sequer perdoar! Considero isso injusto. Fiz tudo por essa mulher e ela tudo jogou na lama, onde se sente feliz. Não sou um mau homem, nunca odiei ninguém. Mas a ela odeio com todas as forças e nem sequer posso perdoá-la, pois a odeio pelo mal que me causou. ”
Anna passa a viver com o Conde, primeiramente no exterior. A sociedade hipócrita a evita por ter assumido um relacionamento perfeitamente aceitável e corriqueiro, caso se mantivesse encoberto.
O jovem Vronski, de certo modo, sente-se responsável e acorrentado pelo amor possessivo de Anna. Mas o casal, findo um tempo, retorna à Rússia, ele retoma suas amizades. Vronski se manterá fiel à amante, pois a ama e respeita. Mas em breve, o ciúme passa a corroer a relação, na medida em que Anna se sente mais velha.
Anna somente consegue se avistar com o próprio filho mediante enganos, mas mesmo o menino já se lhe distancia dela. Isolada do filho, insegura, só socialmente, ela termina por adoecer e se vicia no uso do ópio.
“Pode salvar-se uma pessoa que não quer perecer, mas quando a natureza está tão deformada e pervertida que só a própria perdição se lhe afigura a salvação, o que podemos fazer?”, pergunta-se o narrador.
Por outro lado, Ketty e Lievin se reencontram e descobrem o amor e o respeito mútuo, residindo no campo em contato íntimo e harmônico com a natureza e com os mujiques da propriedade do marido.
Anna se desespera, passa a seguir o amante e, no desvario, buscará a fuga à sua triste realidade no suicídio, atirando-se à frente de um comboio na linha férrea. Vronski, que lhe era sincero em seu amor, no ato final, parte como voluntário para a guerra no Cáucaso.
Torna-se meridianamente claro que, mesmo num romance de profundo cunho social da segunda metade do século XIX, a afinidade entre os pontos de vistas de Tolstói e de Eurípedes é impressionante!
Steiner traça as comparações entre o cenário arcaico e pastoril, a poesia de guerra e da agricultura, a primazia dos sentidos e do gesto físico, o pano de fundo luminoso que harmoniza os ciclos da natureza; o reconhecimento de que a energia e a vida são por si mesmas sagradas; a aceitação de uma corrente de existência que une as estrelas ao lugar que cada homem possui; a determinação de seguir a longa estrada da vida.
Tudo isto e muito mais está em num romance que despertou, desperta e despertará a comoção de milhões de seres humanos, em todos os continentes, e ao final, os leitores terão enorme compaixão por Anna, assim como pela loucura e perversidade de Medeia.
Também louvarão o amor de Lievin e Kitty, num processo de autoconhecimento e aceitação dos diferentes.