Thomas Mann: burguês pró-Kaiser, democrata e, ao final da vida, socialista

No sentido oposto ao de muitos intelectuais do século XX, que na juventude professaram o socialismo e na maturidade abraçaram o capitalismo, Thomas Mann, tanto em seu extraordinário trabalho literário, quanto em seus ensaios e crônicas, trilhou uma jornada em que o burguês que apoiou o Império Alemão na Primeira Guerra, transformar-se-á em num democrata convicto quando da derrota alemã e, após a ascensão do nazismo ao poder, num combatente antinazista. Ao final de sua longeva vida, a desilusão com o capitalismo irá levá-lo à busca do refúgio intelectual e ideológico socialista.

Cada uma de suas obras literárias é ilustrativa das etapas que atravessou o seu pensar. De todas as formas devemos considerar que Thomas Mann não foi somente um herdeiro tardio da tradição idealista e romântica alemã, mas também um dos principais autores modernos. Era um clássico em tempos de mudanças e revoluções, conseguindo refletir de forma original o espírito de seu tempo. Em toda peça por ele escrita encontramos descrições minuciosas de um realismo psicológico, com análise exata de cada particularidade do espírito.

Pode-se dizer que o trabalho de Mann seja uma expressão estética do esforço de contrapor dois valores que lhe foram sempre essenciais, em todas suas etapas de vida: de um lado a sociedade, o senso comum, o valor da vida pública; do outro a alienação, o individualismo, o escapismo romântico, o jogo estético, que culminam na valorização do tempo, na doença e na morte. Nesta formatação de valores estéticos e humanísticos foram inegáveis, e ele jamais os ocultaria, as influências decisivas de três outros alemães: Goethe, Schopenhauer e Nietzsche. Thomas Mann nasceu em 1875, na cidade de Lubeck, ao norte da Alemanha. Seu pai pertencia a uma tradicional família de comerciantes e sua mãe era brasileira, natural de Angra dos Reis. A descendência de uma família da alta burguesia sempre será salientada por Mann e ao falar dessa classe, o autor irá se referir aos valores de uma burguesia que surge ao final da Idade Média, à “antiga tradição de que se sente profundamente imbuído, tradição de trabalho leal e minucioso, visando à perfeição absoluta nos detalhes e no todo”. Ao mesmo tempo dessa afirmação da ordem, apolínea, Mann sempre creditou ao seu viés brasileiro muito de sua capacidade criativa, da evolução espiritual que buscou no dionisíaco a libertação dos próprios sentimentos.

Entre 1896 e 1898, Thomas Mann realizou uma longa viagem a Palestrina (Itália) em visita ao seu irmão mais velho Heinrich, que se tornaria um escritor socialista famoso, muito antes que ele próprio. Dessa visita e dos passeios na Itália redundarão importantes passagens do livro “Dr. Fausto”, escrito mais de quarenta anos depois.

Retornando da viagem, apaixonou-se por Paul Ehrenberg, num amor homossexual conturbado e não correspondido, mas que ele definiria mais tarde como a “experiência central de seu coração”; é quando de sua pena surge “Tonio Kröger”.

Resolve, então, servir no exército imperial, mas se arrepende. A família intervém e corrompe um médico para conseguir afastá-lo, sob a alegação de falsos problemas de saúde. No seu último trabalho (inacabado), “Confissões do Impostor Felix Krull”, Mann incorporará essa fraude à vida de seu Felix.

O autor de “Considerações de um Apolítico” e de “Os Buddenbrooks”, no início do século XX, é um defensor do Império Constitucionalista Alemão. Em 1901, “Os Buddenbrooks” transforma Thomas Mann num escritor famoso aos vinte e cinco anos de idade. Curiosamente, seu editor, Fischer Verlag, tentou convencê-lo, em vão, a encurtar o livro. Muitos anos após, quando suas opiniões políticas já se haviam modificado, ele será agraciado pelo “Os Buddenbrooks” com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1929.

Em 1905 casa-se com Katia Pringsheim, filha de uma influente e secular família de intelectuais judeus. Nos anos seguintes nascem seus cinco filhos. Nem mesmo o tranquilo e feliz casamento com Katia conseguiria afastar Mann de seu próprio “duplo”, tão caro em toda a sua literatura. Por toda a vida manteria acesa a sua forte bissexualidade. Em 1911, concebeu a novela “Morte em Veneza”, sua “obra mais confessional”.

O tempo e a morte sempre se mantiveram próximos tanto da obra quanto da vida da família Mann: duas de suas irmãs e um de seus filhos suicidaram-se na juventude. “Morrer: isto significa realmente perder de vista o tempo, viajar para além dele, trocá-lo pela eternidade e pelo presente e, em consequência, pela vida. Pois a essência da vida é o presente e só num sentido mítico seu mistério aparece nas formas temporais do passado e do futuro”. Ele retrataria essa proximidade da morte tanto em “A Montanha Mágica” quanto em “Éramos Cinco”.

Thomas Mann acolheu com agrado a entrada da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Tomava-se por “burguês e patriota”. Defendeu a política do Kaiser Guilherme II e chegou a penhorar a casa, que possuía em Bad Tölz, a favor do esforço de guerra. Com a derrota da Alemanha, no burguês Mann se iniciará uma primeira metamorfose e dela surgirá um cidadão e um democrata e pacifista convicto; teremos, então, um arauto da República Democrática de Weimar. Estamos no tempo de “A Montanha Mágica”, concluído em 1925.

Uma novela, “Mário e o Mágico”, escrita em 1930, simboliza um engajamento político e, principalmente ético, em que o autor ” inclina-se sobre a psicologia do fascismo”. Cippola, o “moderno manipulador de massas” é moldado na figura histriônica de um Mussolini. Quando da vitória do nazismo na Alemanha, em 1933, ele que era o mais laureado escritor de língua germânica, buscará no mesmo ano asilo na Suíça, onde permanecerá até 1938, mudando-se então para os Estados Unidos. O terror nazista, por seu lado, encontrará em Mann um adversário ferrenho até o seu final, o qual coincide com a destruição política, física e moral da Alemanha.

Ele expressará seu ódio ao nazismo em “Dr. Fausto” e na citação que segue, desnuda uma das essências da transformação que os nazistas provocaram nos alemães: “Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano, originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias! Mas um patriotismo que ousasse afirmar que o Estado sanguinário, cuja agonia atualmente presenciamos, que para citar uma expressão de Lutero, “pendurou em seu pescoço” o peso de crimes incomensuráveis, e que, com seus apelos berrados, com suas proclamações aniquiladoras dos direitos do Homem, provocou nas multidões arroubos de imensa felicidade, esse Estado sob cujas bandeiras vistosas marchava nossa juventude, de olhos chispantes, altiva, radiante, firme na fé, um patriotismo, repito, que ousasse afirmar que esse regime tinha sido algo totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a ela, desprovido de raízes em seu íntimo, ia se afigurar-me mais magnânimo que consciencioso. Não foi esse despotismo, em suas palavras e em seus atos, apenas a realização distorcida, oclocrática, aviltada de mentalidades e filosofias cujo caráter autêntico cumpre reconhecer e que o cristão, o humanista constatam, não sem certo susto, nos traços dos grandes homens, nas encarnações mais imponentes da humanidade?”

Durante a Segunda Guerra, torna-se amigo do Presidente Roosevelt, e realizará programas radiofônicos diários para a BBC em alemão, exortando a revolta contra o nazismo em sua própria Pátria. Dele partiram as primeiras denúncias sobre o holocausto dos judeus e dos ciganos, assim como da repressão nazista desencadeada contra a organização de estudantes e professores, a Rosa Branca (vide http://proust.net.br/blog/?p=363).

Será o cidadão Mann, então no exílio, quem criará a tetralogia “José e seus Irmãos”, em que reporta o exílio a que José fora obrigado a viver no Egito, por força da irracionalidade e do ódio de seus irmãos. Dirá, referindo-se ao seu próprio exílio: “Quanto a mim, que agora levo a termo minha narrativa, para mergulhar voluntariamente numa aventura sem limite, não esconderei minha compreensão nativa do mal-estar do velho e de sua aversão a qualquer habitação permanente. Pois eu não conheço aquele sentimento? Não me destinaram também a mim ao desassossego? Não me foi dado também um coração que desconhece o repouso? O narrador faz várias pausas, andando e relatando, mas só habita em tendas, aguardando novas direções, e pouco depois sente que seu coração bate forte, quer de desejo, quer também de medo e angústia da carne, mas sempre como sinal de que deve tomar a estrada à cata de novas aventuras, que devem ser penosamente vividas até os seus mais remotos detalhes, de acordo com a vontade do espírito infatigável.”

Em 1944, obteve a cidadania americana. Consta que Roosevelt chegou a cotar seu nome para assumir o governo alemão no pós-guerra, no que foi dissuadido por seus colaboradores mais reacionários, porque pressentiam no Mann de pós- guerra tendências esquerdizantes.

Mann, uma vez iniciados a guerra fria e o macarthismo, e revoltado com a especial perseguição aos intelectuais emigrados, deixará decepcionado a América do Norte e, retornando à Europa, editará o seu “Dr. Fausto”. Escreverá: “A supremacia das classes inferiores se afigura a mim, como cidadão alemão, um estado ideal, quando a comparo com o domínio da escória (nazista). Ao contrário que eu saiba jamais o bolchevismo destruiu obras de arte. A revolução russa emocionou-me profundamente e a superioridade histórica de seus princípios em confronto com os das potências que dobravam nossa nuca aos seus pés, era evidente. Verdade é que certas camadas da democracia burguesa parecem merecer o que acabo de denominar de domínio da escória a fim de conservarem por mais tempo seus privilégios”.

A Alemanha que ressurge das cinzas é subdividida pelas potências mundiais, tornando-se a Pátria dos “espiões” e dos impostores. Ela já não o atrairá e o escritor voltará a estabelecer residência na Suíça, onde falecerá em 1955. “A própria Alemanha, esse país desventurado, se me tornou estranha, justamente em virtude do fato de eu ter-me abstido de seus crimes, e, seguro do fim pavoroso, haver-me abrigado na solidão.”

Parecendo prever os tempos que vivemos no século XXI, questionará: “Será compunção mórbida perguntar como, no futuro, a Alemanha, sob qualquer aspecto, poderá atrever-se a abrir a boca em assuntos concernentes à Humanidade?”

De Zurique surgirão suas derradeiras obras, o conto “A Enganada” e o romance inacabado “Confissões do Impostor Felix Krull”, onde Mann nos aporta uma visão de mundo anárquica, onde Felix, um trapaceiro oriundo de uma família burguesa decadente e sem princípios, penetrará numa sociedade de aparências, espelhando o vazio, o egoísmo, o exibicionismo e o consumismo de uma classe social instalada em privilégios mesquinhos que apenas faz reproduzir-se a si mesma e ao capital.

Num dos últimos parágrafos que ele escreveria, uma semana de seu falecimento, sintetizará a sua relação harmônica com a vida e a morte: “Anna, não diga que a natureza me traiu que é uma crueldade sarcástica. Não a diminua como eu não o faço. Eu não quero afastar-me de vocês, da vida, da primavera. Mas como haveria primavera sem morte? A morte é um grande instrumento da vida, e se ela concedeu-me a imagem da ressurreição e do prazer amoroso, isso não foi mentira, mas bondade e graça.” (“A enganada”)

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