Tesouros ocultos por Proust em “Em busca do Tempo Perdido”.

“Os belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira.” (Proust)

Pouco mais de cem anos nos separam da primeira parte da publicação de “Em Busca do Tempo Perdido”, livro inicialmente recusado por editoras, inclusive de vanguarda. Marcel Proust não somente pagou do próprio bolso a impressão de “A Caminho de Swann” como realizou, em elegantes pacotes, a primeira distribuição a amigos e conhecidos.

No entanto, ao impacto inicial causado pelo absolutamente “novo” seguiu-se tanto o sucesso e o reconhecimento devidos, quanto esperadas reações de desconforto e repulsa provocada nas mentes mais conservadoras e convencionais.

De todo modo, “A Caminho de Swann”, rompeu as fronteiras da França, conquistou as Américas e parcela da intelectualidade europeia. De tal forma que poucos anos após a morte de seu autor, em 1922, o século XX considerou Marcel Proust um dos maiores romancistas da modernidade e, mesmo, de todos os tempos. E, talvez exatamente por ser moderno e diferente “Em Busca do Tempo Perdido”, seja em comparação a outros romances considerados “clássicos”, um dos menos lidos, embora altamente admirado!

E no século XXI ainda nos encantamos com os Tesouros com que a leitura de Proust nos enriquece!

Como tantos, confesso haver tentado, desde muito jovem, penetrar no mundo de Proust; no entanto, todas as tentativas de leitura, invariavelmente, foram interrompidas já nas primeiras quarenta ou cinquenta páginas, no primeiro dos sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”. No entanto, cada livro que decido ler e não o consigo, sempre fez com que eu me interrogasse sobre o sabor de uma “derrota”. Teria ocorrido uma escolha inadequada do objeto, ou fora a minha incapacidade de compreensão do texto? Perguntei-me sobre o que acontecia entre mim e Proust.

Encontrei, então, algumas respostas: uma leitura inicialmente difícil, graças ao ritmo lento de um texto composto por frases quilométricas, com excesso de vírgulas e ausência de pontos finais; a intercorrência de raciocínios colocados dentro de parênteses me fazia, inevitavelmente, sempre retornar para não perder a meada da narrativa, o que tornava a minha leitura cansativa. Então, logo às primeiras páginas, sentia-me numa espécie de labirinto, aborrecia-me e fechava o livro.

Ocorria uma espécie de dissintonia entre o Narrador e seu leitor. Existia algo que me mantinha atraído a Proust, e que me obrigava o retorno após tantas iniciativas frustradas. Mas o quê? Por um bom tempo não tive resposta.

No entanto, a vida nos prepara a cada passo surpresas; o fado nos atropela e da harmonia aparente em que vivemos, ressurge perante nós com toda força avassaladora o caos. Pois que, de repente, a vida atravessa um vendaval que acarreta um processo de culpas e de tristezas, de rupturas e de perdas. Foi num momento desses, de enorme melancolia e insegurança, que folheando livros, como que por magia, acabei me entretendo com “A Fugitiva”, o penúltimo da série editada de “Em Busca do Tempo Perdido”. Recordo ter-me sentido tão atraído pela leitura que me sentei numa poltrona da livraria onde estava e somente depois de umas duas horas consegui desprender-me, pagar o livro e voltar para meu refúgio carregando-o a tiracolo.

Sem que eu o houvesse planejado, quebrara-se o encanto. Ao ler “A Fugitiva”, consegui penetrar no estilo de Proust e, como por um milagre, senti que lia a mim mesmo em suas reflexões. A resposta tanto procurada do que afinal atraía-me nele, quase por um acaso a encontrara. O seu estilo adquiriu, então, aos meus ouvidos uma nova coloratura; as frases enchiam-se de sonoridade e harmonia. É verdade que permaneciam, como antes, muitas vezes escritas em ordem inversa, longuíssimas, enroscando-se entremeadas de parênteses, com idas e vindas, repletas de adjetivação. Mas para mim, ao invés de difícil, Proust tornara-se simplesmente diferente. Aceitei mergulhar num mundo desconhecido, que por vezes chegou a me aturdir; mas a recompensa que obtive foi uma deliciosa sensação de liberdade, de comunhão, o sentir-se enredado em uma teia em que, como num caleidoscópio, eu visitava as múltiplas imagens de mim mesmo.

Com sofreguidão, em um par de meses, realizei duas leituras consecutivas daquela parcela do grande romance. O velho exemplar de “A Caminho de Swann” foi resgatado da prateleira e nem me dei conta que, já na segunda noite, vencera as primeiras páginas fatídicas; que, dispensada Ariadne, não necessitava mais novelo de lã algum para conduzir-me, pois o próprio labirinto desaparecera e o estilo de Proust, pese a ser único- afinal qual gênio não possui aquele que lhe é próprio- tornara-se meu aliado e amigo, e tal qual nos quadros de Watteau que ele tanto apreciava, foi o meu companheiro e condutor para o embarque à fabulosa Cítera, “ilha dos corações e das festas do amor”, “aquela que está dentro de cada um de nós”.

A descoberta de Tesouros!

A descoberta apoderou-se de mim como um vício. Não mais me contentei em ler, reler e anotar as mais significativas passagens e realizar minhas observações dos longos volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”. O fascínio do romance de Proust, nos alerta Edmund Wilson, é tão grande que, enquanto o estamos lendo, tendemos a aceitá-lo “in totum”; Proust nos contagia com seu ponto de vista, mesmo onde tal ponto “lhe falsificou a pintura da vida”.

“Em Busca do Tempo Perdido” insere-se numa corrente artística modernista de inigualável beleza estética: O Impressionismo!

Proust tinha três anos de idade quando Claude Monet, em 1874, expôs uma pintura “Impression, Soleil Levant”. Nela, surgia uma nova forma de simbolizar os objetos- homens e natureza – a partir do ponto de vista da percepção causada no seu autor. Uma manifestação insólita de um grupo de pintores, que, rompendo com o tradicional, opôs-se ao academicismo oficial, negando-se a considerar os objetos da pintura como imutáveis. Os homens, as paisagens e a natureza perdiam para eles o seu colorido e sua materialidade intrínsecas, variando em função do tempo e da luz incidente. As formas antes padronizadas e estáticas tornavam-se mutantes e dinâmicas.

Para Proust o impressionismo não constituía tão somente uma técnica pictórica, seus conceitos centrais poder-se-iam estender a outros campos de expressão artística, à literatura e à música.

Proust, que tinha convicção da transitoriedade das associações entre os homens, de suas personalidades e das intermitências de nossos corações, no desenvolvimento de sua obra lançou mão dessa técnica, através da qual descrevia ou rememorava justamente os instantâneos a serem figurados através da escrita, num universo físico e psicológico sempre em mudança. De tal maneira que, pela primeira vez, para a compreensão de uma obra de arte, tornava-se necessário que o leitor ou espectador se sentisse por ela penetrado e possuído, caminhasse com o autor, ou, no dizer de Proust, transformasse-se em o “leitor de si mesmo”.

E esse é um incrível Tesouro!

Anos antes de iniciar o “seu romance”, Proust havia enveredado pela crítica literária, quer como jornalista, quer na preparação um tratado de crítica ao mestre de sua época: Saint-Beuve.

Pois bem, todo o conhecimento adquirido em anos de leitura, anotações e pesquisas, ele o transpôs para “Em Busca do Tempo Perdido”. De tal modo que a leitura de Proust nos encaminha para uma visão panorâmica da literatura, do teatro e das correntes filosóficas francesas do século XVII ao XX. Ao mesmo tempo ele não descuida nem dos clássicos e muito menos de seus contemporâneos de outras nacionalidades com os alemães, os eslavos, nórdicos, e seus favoritos, aqueles escritores de fala inglesa.

Mais de uma centena de trabalhos são por ele citados, de tal modo que nos sentimos como percorrendo uma enorme Biblioteca, onde possuem seu lugar o poeta, o fabulista, o teatrólogo, o comediante, o memorialista, o novelista e o romancista; livros enobrecidos, suas molduras e margens são diferentes correntes filosóficas.

E estes são outros inestimáveis Tesouros aos quais a leitura de Proust nos concede o acesso!

Quem dentre tantos poderiam ser citados neste curto ensaio? Talvez apenas aqueles que mais tenham influenciado seu pensar: os franceses Balzac, Stendhal, Racine, Baudelaire, Méllarmé, Nerval, Flaubert, senhora de Sevigné, Bergson e Pascal; os alemães Nietzsche, Shopenhauer, Kant, Schiller e Goethe; os russos Tolstoy e Dostoievski; nórdicos como Ibsen e aqueleles dos países baixos, como Spinoza; ingleses como Ruskin, Shakespeare, Hardy, Huxley e Eliot, e norte-americanos como Emerson e Poe.

No entanto, a profunda erudição de Proust, não se restringia à literatura, ao teatro e à filosofia. Envolvia a historiografia musical; em seu trabalho, são dedicadas páginas e mais páginas à análise da música wagneriana, assim como aos “poemas musicais”, aos quais dedicava um carinho todo especial; as páginas de seu livro são recheadas por concertos, sonatas, balés, óperas, sinfonias e músicas sacras, que se iniciam na “Contra-Reforma” simbolizada por Palestrina, caminham pelo Barroco com Scarlatti e Bach, passam pelo rococó de Rameau, chegam ao Classissismo de Mozart, de Mendelssohn, ao tradicionalismo do folclore nacional de Mussorgsky, Borodin e Lizst, percorrem o Romantismo de Beethoven, Schumann, Schubert, Chopin e Verdi, chegando ao neo-romantismo de Wagner, de Frank e Fauré, ao poema sinfônico de Saenz, e, finalmente, aportam ao Modernismo de Debussy, dos ballets russos e de Stravinsky.

Apreciador e conhecedor da pintura, sua obra guarda profunda influência do simbolismo de um Moreau e do psiquismo de um Rembrandt. Por isso mesmo, a cada página sentimo-nos caminhar por uma maravilhosa Galeria de Arte, onde os góticos como Fra Angélico e Giotto precedem os renascentistas como Durer, Bellini, Boticelli, Carpaccio, Fra Bartolomeu, Da Vinci, Giorgioni, Rafael, Veronese, Ticiano, Michelangelo, Mantegna. A esses se sucedem o maneirismo de um El Greco, Tintoretto, Bruegel, Hals. Na ala dedicada aos barrocos encontramos Rembrandt, Chardin, Mignard, Rubens, Velazquez, Veermer ; a esses seguem os rococós de Boucher, Fragonard, Tiepolo e Watteau. Por um corredor lateral chegamos aos românticos, e temos Turner, Delacroix, Gerard, Goya. Subimos um lance de escada e nos deparamos com os classicistas David, Decamps, Reynolds e Poussin. Seguimos ainda e nos defrontamos com o realismo de Corot, Fromentin e Millet. Novo corredor e lá estão Chaplin, Ingrès e Cot, os academicistas. Finalmente, em uma ala especial, encontramos os simbolistas e dentre eles, Moreau e Rousseau; os impressionistas e pós- impressionistas: Degas, Fantin-Latour, Tissot, Manet, Monet, Renoir e Whistler; Rossetti, Guys e Redon.

Esse é o universo deste escritor único, detentor de uma sensibilidade refinada, de erudição e memórias privilegiadas e que possuiu o dom de transformar seu romance numa verdadeira epopeia da alma; em suas páginas viajaremos pelos mais diversos oceanos da existência, mesmo porque por todos Proust navega: temos o Proust romancista, o moralista, o naturalista, o crítico de arte, o filósofo, o poeta, o memorialista, o caricaturista e o crítico social.

Como poucos, sob todas essas “personnas”, Proust é um subversivo, um revoltado com o meio esnobe que frequentara um dia, revoltado para consigo mesmo e para com a realidade em que vivia. Utiliza, entretanto, nessa revolta um perigoso gênio cômico, empregado a destruir uma a uma, todas as máximas e preconceitos sociais de seu tempo e que, em seu cerne, é composta pela mesma humanidade da qual fazemos parte, onde os antigos preconceitos ou se transformaram ou assumiram novas roupagens.

E esse talvez seja o mais importante Tesouro de toda sua majestosa obra!

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