Rio de Janeiro antigo, quadros de uma “cidade maravilhosa”

O Rio antigo, cidade das melindrosas e dos almofadinhas, “flaneurs” tropicais, cidade múltipla, carnavalesca, sentimental, terra de revoltas populares, de muitas alegrias e tristezas, de trabalho suado, de inclusão e exclusão social, da repressão e das conquistas populares, o Centro Político e Cultural do Brasil por quase dois séculos. Em 2015, a Cidade Maravilhosa completará quatrocentos e cincoenta anos!

Vivaldo Coaracy, um de seus maiores memorialistas, refere-se a episódios da História relacionados às lutas políticas e aos movimentos populares que os habitantes do Rio de Janeiro sustentaram nas mais diversas épocas contra o escravagismo, o colonialismo, a prepotência de usurpadores dos direitos populares e lutas por melhores condições de vida.

I- Nos tempos da Colônia

Os africanos escravizados foram trazidos pelos navios negreiros desde a sua fundação. Em 1583, o Governador Salvador Correa de Sá instituiu uma taxa por escravo trazido de África, oficializando o tráfico. Deixou ao português João Gutierrez Valério o monopólio das “carnes humanas”. As primeiras revoltas não se fizeram esperar. Os negros, primeiro de forma individual e, depois em grupos, fugiam para “os matos” em busca da liberdade. Os quilombos na Serra dos Órgãos multiplicaram-se rapidamente e, em 1625, foram considerados “um perigo público”.

A autoridade colonial instituiu prêmios para a prisão de negros fugidos, fixando taxas a serem pagas pelos proprietários dos mesmos. Uma nova profissão surgiu e prosperou na província, a dos caçadores de escravos denominados capitães-do-mato.

A Câmara Municipal decidiu, em 1640, organizar uma milícia civil armada, a primeira de tantas a serem criadas no Rio, que teria direito a dois terços do valor do escravo capturado, além de todas as “crias” que apanhasse no mocambo. O primeiro comando da milícia foi construída na fazenda dos Jesuítas, nos contrafortes da Serra dos Órgãos. Apesar de toda a repressão, a resistência quilombola permaneceria ativa e cresceria até mesmo após o treze de maio de 1888.

O Rio, cidade contestadora, assistiu em 1660 a um dos primeiros levantes populares de homens livres, também conhecido como a Revolta da Cachaça, encabeçado por Jerônimo Barbalho.

No antigo Forte da Conceição, que abrigava a Casa das Armas, trabalhavam operários na conservação e produção de artefatos militares. Em 1791, num Forte Militar ocorreria a primeira greve operária da História do Rio.

Na sequência, temos os registros das lutas pela Independência do Brasil. Não por acaso foi no Rio de Janeiro que a Inconfidência Mineira teve o seu trágico desfecho, com a execução de Tiradentes. Importa àquele que se dobra sobre a História estudar as vinculações da Inconfidência com as lutas políticas do povo carioca pela Independência. E analisar as repercursões e consequências do terror desencadeado pelos portugueses e seus acólitos  contra os brasileiros no período pós Inconfidência.

Vivaldo Coaracy,  ao contar em seu livro a História da Rua do Cano (atual Sete de Setembro), ressalta a fundação de uma Academia Literária e Científica libertária alguns anos após a execução de Tiradentes. A Academia foi fechada pelas autoridades e seus membros metidos na cadeia pública por longos meses, dentre eles o poeta Silva Alvarenga e o jovem doutor Mariano da Fonseca, que mais tarde seria o Marquês de Maricá.

Os intelectuais progressistas da época eram acusados de “propagadores da subversão”, pregadores das “nefastas ideias francesas”.

II. No Brasil independente de Portugal 

Após a proclamação da Independência, surgiu a mobilização que forçou a abdicação de D. Pedro I em 1831. Seguiram-se as rusgas do período regencial, e em seguida, as lutas pela Abolição da Escravatura e pela República.

A mais famosa greve do período foi a dos  gráficos da imprensa carioca em meados do século XIX, que durou mais de dois meses, durante os quais um único jornal diário era editado: aquele dos próprios grevistas, “para que a população não ficasse sem notícias do país e do mundo”. Em 1880, um novo e importante movimento popular contra a carestia, denominado Revolta do Vintém, trouxe milhares às ruas e o preço dos cereais foi reduzido por decreto Imperial.

Também foi no Rio de Janeiro que surgiram os primeiros Clubes Republicanos, seus jornais e manifestações.

A Proclamação da República, teve como batismo a greve dos ferroviários da Central do Brasil, nos primórdios de 1890. Logo após a mesma, entraram em greve os carroceiros e os cocheiros, num movimento que praticamente paralisou o Rio.

Depois da proclamação da República, parcela da população juntou-se à resistência de Floriano Peixoto à revolta da Armada, população esta que, após a vitória, sentiu-se traída pelo déspota no poder.

Em 1910, a  revolta gloriosa contra a Lei da Chibata, encabeçada por João Cândido, nosso imortal “Almirante Negro”, terminou com um pacto de anistia entre o poder e os revoltosos, o que não impediu que a repressão desencadeada contra os mesmos fosse a mais bárbara possível.

Num local denominado Largo do Capim, que desapareceu para a abertura da Avenida Presidente Vargas,  foram fundadas a Federação Operária e o Centro de Estudos Sociais. E neste mesmo modesto local, em 1915, organizado o Comitê Popular contra a Guerra Mundial e a favor do internacionalismo proletário. Desse mesmo Comitê partiu a iniciativa de um Congresso pela Paz, que reuniu delegados argentinos, espanhóis e portugueses.

O movimento popular carioca evoluiu para a poderosa onda grevista de 1918/ 1920, que enorme influência exerceu no movimento operário brasileiro, propiciando a formação do Partido Comunista.

Na Praça da República, esquina da Rua da Constituição, junto ao antigo Arquivo Nacional, esteve localizada a primeira sede do Partido Comunista do Brasil, nos poucos meses que antecederam ao estado de sítio decretado em decorrência da Revolta do Forte de Copacabana (o princípio do Movimento Tenentista), em 1922.  Anos mais tarde, no mesmo prédio seria instalada a primeira sede legal do Bloco Operário e Camponês.

O Largo da Carioca também guarda muita História. A Confederação Operária Brasileira e seu órgão de imprensa, “A Voz do Trabalhador”, funcionou há cem anos num edifício, na esquina das Avenidas 13 de Maio  e Almirante Barroso. Lá foi preparado o II Congresso Operário Brasileiro. De toda forma, o Largo da Carioca seria a arena de grandes eventos políticos do Rio antigo, onde ocorreram dezenas de comícios na campanha pela Constituinte em 1945, quando imensas multidões se reuniam para ouvir a palavra do líder comunista Luís Carlos Prestes.

Luís Edmundo da Costa, em suas Memórias, descreve as belezas e as feiuras da cidade abençoada pelos deuses. O Rio das duas últimas décadas do século XIX cheirava ranço colonial, com muita sujeira, febre amarela epidêmica, e, ao mesmo tempo, tinha suas principais ruas percorridas por sujeitos de sobrecasaca preta, colarinho duro e cartola, julgando-se na Europa, mas sob um calor de quarenta graus à sombra.

Ao mesmo tempo, fala-nos do Rio dos boêmios, “gente mais ou menos literata”, ao lado de sujeitos estróinas e barulhentos, que se espalhavam pelos cafés, confeitarias e jornais da Rua do Ouvidor.

O Rio, o segundo lar do maranhense Catulo da Paixão Cearense, autor do imortal O luar do sertão, que viveu despreocupado na boemia e morreu na mais negra pobreza. Parceiro de Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Francisco Braga, foi tão bem retratado pelo escritor carioca libertário, Lima Barreto, em Triste fim de Policarpo Quaresma, como o responsável pela reabilitação do violão e da “modinha” nos salões e favelas da sociedade carioca.

Aquele Rio, o de Mário Penaforte, rei de nossas valsas, parceiro de Nazaré, Eduardo Souto e Sinhô. Penaforte que acordou até mesmo Paris com suas valsas, uma Paris envolvida na Grande Guerra de 1914.

Enfim, o velho Rio de Machado de Assis que desapareceria sob os escombros de um terremoto chamado Pereira Passos.

Com a Abolição da Escravatura, a cidade passou a receber grandes contingentes de imigrantes europeus e de ex-escravos, atraídos pelas oportunidades que ali se abriam ao trabalho assalariado. Entre 1872 e 1890, sua população duplicou, passando de 274 para 522 mil habitantes.

O contingente populacional, levou ao aumento da pobreza que agravou a crise habitacional, traço constante na vida urbana da cidade desde meados do século XIX. O epicentro dessa crise era a Cidade Velha e suas adjacências, onde se multiplicavam as habitações coletivas e eclodiam as violentas epidemias de febre amarela, varíola e cólera-morbo, que conferiam à cidade a qualificação internacional de “porto sujo”.

Muitas campanhas de erradicação perpetradas pelos governos da época não foram bem recebidas pela população carioca. Houve várias revoltas populares, entre elas a Revolta da Vacina, de 1904, que também teve como causa a tomada de medidas impopulares, como as reformas urbanas do Centro.

Logo, o Rio de Janeiro foi também o de Pereira Passos e deOswaldo Cruz, renovando-se, “civilizando-se”, com a abertura da Avenida Central, a Avenida Beira-Mar, sob o “binóculo” do jornalista e escritor Figueiredo Pimentel. Nessas reformas, foram demolidos centenas de cortiços, e a população pobre, desapropriada de suas habitações, foi expulsa para as encostas dos morros, zona portuária e Caju, no princípio de todo o processo de favelização e exclusão social que se extende até os dias de hoje.

Figueiredo Pimentel manteve por mais de vinte anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Como autor vanguardista, publicou O Aborto, que o conservadorismo jamais permitiu a reimpressão. Figura destacada na cena da Belle Époque carioca, foi o autor da máxima: “O Rio civiliza-se”.

Ao lado da cidade fútil e descuidadosa, surgia um importante centro turístico de atração  mundial, a Cidade Maravilhosa. A Cidade Maravilhosa do Art Nouveau, do Movimento Modernista, do Cassino da Urca, do Teatro Municipal, das Réjanes e dos Brulés.

Cidade Maravilhosa que é ao mesmo tempo uma cidade de trabalho, de movimento operário vigoroso e de classe média revoltada, de excluídos sociais, de intelectuais e pensadores. Durante um século, a cidade farol nas lutas pela construção de um novo Brasil!

Em 1930, um movimento revolucionário levará ao poder Getúlio Vargas. O ímpeto dos movimentos grevistas que haviam sido a tônica dos anos de 1932/35,  dariam vaza ao Movimento Insurrecional de 1935.

Mas isso é outra parte da História e será assunto para nova crônica!

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