Para onde nos poderá levar a onda nazifascista “libertária”?

O avanço mundial da nova onda nazifascista, no século XXI, não nos permite mais interpretá-la com as categorias sociológicas que temos: democracia, liberalismo, socialismo, fascismo, pois essas categorias interpretativas da política não capturam a essência deste novo processo, que se não é realmente novo ao nível enunciativo e programático, é radicalmente diferente tanto ao nível antropológico quanto psicocognitivo.

As declarações dos líderes da nova direita global não explicam a força disruptiva do movimento que ninguém parece ser capaz de deter, com algumas exceções e por algum tempo, como a Colômbia, o Brasil e a Espanha lograram fazê-lo.

Na realidade, a dinâmica tradicional da democracia parlamentar e da luta social parece ter sido superada, como se um ciclone dotado de um poder sem precedentes estivesse varrendo as defesas que a sociedade havia construído após a Segunda Guerra Mundial.

Ao supremacismo branco ocidental vem se somar movimentos liderados por países como a Índia de Modi, um exemplo de supremacismo não branco, e a Rússia de Putin, um exemplo de supremacismo não ocidental.

O objeto desta reflexão é entender a dinâmica antropológica e não meramente política que transformou as sociedades do Ocidente e a maior parte do planeta, depois de ter destruído o movimento trabalhista organizado e desativadas, uma após outra, as instituições internacionais da era liberal-democrática, começando pela ONU.

O ponto central é: o presente pode ser reduzido como um retorno do fascismo histórico?

A resposta é Não.

Se o nacionalismo fascista continua sendo a principal referência da linguagem e da mentalidade da atual classe política reacionária, ela o é porque são pessoas de nível intelectual muito baixo, sem a capacidade de encontrar conceitos e palavras que correspondam à força que a transformação da humanidade colocou à sua disposição.

Na verdade, ainda não há consciência de direita que corresponda ao poder de massas da direita!

Talvez seja porque a brutalidade, afinal de contas, não costuma ser autoconsciente. O que está surgindo é um fenômeno de proporções gigantescas, que não pode ser explicado pelas categorias da antiga política porque está enraizado na mutação tecno-antropológica pela qual a humanidade passou nas últimas quatro décadas e, principalmente, porque constitui o resultado do neoliberalismo, que fez da competição (ou seja, da guerra social) o princípio universal das relações inter-humanas.

Logo, as explicações políticas da onda de brutalidade “libertária” captam apenas aspectos marginais do fenômeno e não o explicam: a qualidade antropológica e psíquica que está por trás da adesão em massa aos movimentos ultrarreacionários.

Na verdade, o que precisa ser entendido não é o significado das declarações de Trump, Milei, Netanyahu, Norendra Modi e mesmo do decadente Bolsonaro, mas as razões pelas quais uma maioria crescente da população planetária abraça com entusiasmo a fúria destrutiva desses mercenários.

Ao contrário do nazi-fascismo histórico, que praticava a economia estatista, a onda supremacista funde os lugares-comuns do racismo, da religiosidade monetarista, e do conservadorismo cultural com uma acentuação histérica do liberalismo econômico: a liberdade das armas (tanto físicas quanto psicológicas, mediadas pelas redes sociais) para ser brutal.

No entanto, será esta novidade suficiente para explicar o sucesso esmagador da miscelânea intelectual que por toda parte desperta o entusiasmo das multidões?

Devemos pensar que as multidões seguem Trump apesar das suas mentiras descaradas, apesar do seu machismo de baixo grau? E que multidões israelitas apoiam o governo fascista apesar do extermínio das crianças palestinas, e que a maioria dos argentinos vota em Milei apesar da motosserra com a qual ele está destruindo o estado de bem-estar social e fazendo morrer de fome milhões de trabalhadores? Ou talvez o raciocínio devesse ser invertido?

Franco Berardi propõe a hipótese de que estamos diante de uma verdadeira inversão de julgamento ético: os americanos votam em Trump exatamente porque ele é um estuprador e mentiroso, os israelenses apoiam Netanyahu exatamente porque ele pratica genocídio. E os jovens argentinos seguem Milei porque acreditam que, finalmente, os melhores poderão se destacar e os demais passarão fome e morrerão como merecem.

A inversão cínica do julgamento, o entusiasmo pela violência racista, implicam uma perversão da percepção e da elaboração psíquica, antes mesmo da deterioração moral!

A origem da brutalidade social do século XXI.

Ao fazer da competição o princípio das relações inter-humanas, o neoliberalismo ridicularizou a empatia pelo sofrimento do outro, corroeu os fundamentos da solidariedade e, assim, destruiu a civilização social.

Quando Milei afirma que a justiça social é uma aberração, ele está apenas legitimando o direito do mais forte e galvanizando a ilusão de massas de indivíduos jovens (em sua maioria homens) convencidos de que são dotados de força para vencer todos os outros. Essa crença não é facilmente desmantelada porque, quando amanhã esses indivíduos forem, como já são, miseráveis solitários empobrecidos, eles culparão apenas os imigrantes, os comunistas ou Satanás pela derrota, de acordo com a psicose que preferirem.

Enquanto a justiça social é condenada como uma intrusão na liberdade dos indivíduos, a selvageria competitiva é naturalizada: na luta pela vida, quem não estiver à altura da tarefa merece morrer. A empatia não é compatível com a economia da sobrevivência; na verdade, ela é prejudicial para aqueles que a praticam. A brutalidade se torna a base da vida social.

O inconsciente conectivo e o fim da mente crítica.

McLuhan escreveu em 1964 que quando a comunicação inter-humana passa da dimensão lenta da tecnologia alfabética para a dimensão rápida da tecnologia eletrônica, o pensamento se torna impróprio para a crítica e o pensamento mitológico é restaurado.

A mutação tecnocomunicativa está se mostrando mais abrangente do que as próprias previsões de McLuhan. De acordo com o CEO da Netflix, Reed Hastings, o principal concorrente das empresas de informação é o sono. Somando as horas de atividades multitarefas de uma pessoa comum em nossa época, o dia de trabalho é de trinta e uma horas, das quais apenas seis horas e meia são dedicadas ao sono.

Então, que efeitos a contração do sono pode ter sobre a autonomia mental de um indivíduo, se durante treze horas, a mente fica exposta a estímulos das redes da internet?

Um leitor de livros poderia expor sua mente à recepção de sinais alfabéticos por muitas horas, mas a intensidade e a velocidade dos impulsos eletrônicos são incomparavelmente maiores.

Quais são as consequências dessa transformação tecnocomunicativa? Pesquisas indicam que a mente submetida ao bombardeio ininterrupto de impulsos eletrônicos, independentemente de seu conteúdo, funciona de forma completamente diferente da mente alfabética, que tinha a capacidade de discriminar entre o verdadeiro e o falso nas informações e que tinha a capacidade de construir um procedimento de elaboração individual.

Na verdade, essa capacidade depende do tempo de processamento emocional e racional, que, no caso de um jovem que vive treze horas por dia na infosfera eletrônica, é reduzido a zero. Logo, a distinção entre a verdade e a falsidade das declarações torna-se não apenas difícil, mas irrelevante, como quando se está em um ambiente de jogo, de torcidas e apostas.

A configuração conectiva da mente contemporânea está cada vez mais indiferente à distinção entre verdadeiro e falso, bom e ruim.

A escolha entre um estímulo e outro não depende do julgamento crítico, mas do grau de excitação, ou estimulação dopaminérgica. Barardi afirma que a mente conectiva evoluiu em uma direção incompatível com o julgamento moral e a discriminação crítica.

A grande migração.

Em geral, o marxismo subestimou a questão demográfica, depois que Marx criticou a tese malthusiana em meados do século XIX. Marx estava certo contra Malthus, que previu que o crescimento populacional causaria transtornos sem levar em conta a evolução técnica da produtividade. Mas os marxistas estavam errados ao não considerar as consequências da extraordinária aceleração possibilitada pela medicina e pelo progresso social. O salto demográfico de 2,5 bilhões de pessoas vivas no planeta em 1950 para 8 bilhões, 70 anos depois, significou uma intensificação sem precedentes da exploração dos recursos da Terra e levou, acredito que inevitavelmente, à devastação do meio ambiente planetário.

A devastação ecológica torna inabitáveis locais cada vez maiores do planeta e impossibilita o cultivo de áreas inteiras.

Logo, é compreensível que as populações do Sul Global (ou seja, as áreas que sofreram os efeitos da colonização e que estão sofrendo especialmente com os efeitos da mudança climática) queiram se mudar para o Norte Global (ou seja, a área que desfrutou dos benefícios da exploração colonial e que sofreu menos, por enquanto, com as consequências da mudança climática).

Também é compreensível que as pessoas no Norte Global estejam assustadas com a ideia de massas crescentes de pessoas se mudando do Sul Global para o Norte. É por isso que a grande migração empurra e empurrará cada vez mais as populações do Norte para posições abertamente racistas.

É por isso que o genocídio já é, e provavelmente se tornará cada vez mais, uma técnica de controle do movimento populacional.

A grande migração do sul e do leste para o norte e o oeste do mundo é o processo que mais contribui para a onda ultrarreacionária, enquanto a oposição entre o Norte imperialista e o Sul colonizado está assumindo contornos cada vez mais nítidos!

Basta olhar o mapa dos países que condenam o colonialismo israelense e o mapa dos países que o apoiam para entender a geografia do confronto histórico que está tomando forma.

Mas não se deve acreditar que a brutalidade pertence apenas ao mundo ocidental branco: a Rússia de Putin e a Ucrânia de Zelenski não são ocidentais e a Índia de Modi não é branca, mas ambas compartilham as características essenciais da brutalidade e da indiferença ao genocídio.

Não estamos mais no século XX.

Não é necessário um megacomputador para acessar a web. Tudo o que você precisa é de um telefone e agora todo mundo tem um. E não importa se você é semianalfabeto. Você pode encontrar o que está procurando apenas falando, e seu assistente virtual fará o resto.

A possibilidade de uma revolução anticolonialista tinha perspectivas progressistas dentro da estrutura do internacionalismo dos trabalhadores, mas isso parece ter desaparecido do horizonte da história. E o fim do internacionalismo abriu a porta para o apocalipse que estamos vivendo.

Já passa a ser totalmente previsível que a brutalidade política e moral que está sendo imposta em todos os lugares, combinada com o poder crescente das armas de destruição em massa e a racionalidade amoral da inteligência artificial aplicada aos sistemas de armas, levará ao colapso final da civilização humana antes que as mudanças climáticas a tornem esta inevitável.

Podemos esperar um refluxo da tendência que estamos analisando neste texto?

Para responder a isso, devemos considerar que a ascensão da brutalidade libertária reuniu e está reunindo uma energia que parece surgir da dinâmica profunda da evolução tecnológica, psíquica e cognitiva da humanidade. Essa energia não pode ser contida pela ação voluntarista dos sujeitos políticos sociais e culturais, uma vez que eles não são percebidos de forma alguma no horizonte.

Portanto, temo que essa onda só possa ser interrompida quando essa energia tiver produzido todos os efeitos de que é capaz, assim como o Terceiro Reich só parou quando destruiu tudo o que podia destruir, inclusive a Alemanha. Mas a força destrutiva à disposição do Terceiro Reich global de nosso tempo é suficiente para eliminar todos os vestígios de vida humana do planeta.

Isso jamais implica em dar espaço para a barbárie e brutalidade! Nosso papel será, foi e deve ser sempre o desmascarar seus agentes, preservar nossa civilização, mesmo que em nichos, tal qual sugeriu Herman Hesse, em “O jogo das contas de vidro. ”

“Enquanto a inteligência artificial se espalha, paralelamente se espalha a demência natural. Não é uma brincadeira: é um diagnóstico – Franco Berardi”

Referência: 1. Berardi, F. O terceiro inconsciente: a psicoesfera na Era Viral. Glac Edições. 2024.

2. McLuhan, M. Os meios de comunicação como extensão do homem. Cultriz, 2012.

3 respostas

  1. Excelente texto. Deveras sombrio e fatalista, a despeito das considerações finais. Pergunto se o pessimismo que vivemos como humanistas não é também parte da lógica dessa onda. A barbárie marcou vários momentos da História, embora não com o poder aniquilante atual. Será que a comunicação tecnomediada não pode ser usada também para o desenvolvimento de humana empatia e solidariedade; ou será que não aprendemos como fazer isso? Me recuso a pensar no fim da História, que é um dos mitos que querem nos fazer acreditar…

  2. De acordo c Jorge excelente texto que nos leva a refletir se realmente esse momento tem a ver com a sociedade liquida a que Bauman se refere ? Se assim for passará como uma “onda gigante ” sim porém mesmo com muitas outras ondas a humanidade sobreviveu…pode ser até um pensamento de quem acredita na força da humanidade acima de tudo Os que viverem verão…

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