A Ilíada de Homero é um poema colossal! A epopeia do homem na guerra, dos gregos consagrados à guerra tanto por suas paixões, quanto pelos deuses.
O grande poeta, do século VIII a.C., fala também da nobreza do homem frente a esse flagelo detestável, do homem arrebatado por Ares, o deus da guerra, o mais odioso dos deuses. Assim como da coragem dos heróis que matam e morrem com simplicidade, do sacrifício voluntário dos defensores da Pátria, da dor das mulheres, do adeus do pai ao filho que o continuará, da súplica dos velhos.
E entre tantas outras coisas, da ambição dos chefes, sua cupidez, querelas e injúrias; também da covardia, da vaidade e do egoísmo, que caminham ao lado com a bravura, a amizade, a ternura.
Até mesmo da piedade quando mais forte que a vingança, o amor pela glória e pela fama que elevam o homem à altura dos deuses.
Fala, sem dúvida, desses deuses onipotentes e serenos. De suas paixões mais que humanas e de seu caprichoso interesse aliado a uma profunda indiferença pelo destino dos mortais.
Acima de tudo, entretanto, neste poema onde reina a morte, Homero fala do amor pela vida e também da honra do homem mais alta que a vida e mais forte que os deuses.
Para desenvolver este tema, Homero escolheu um episódio fabuloso, mito e histórico, da guerra de Tróia, que se situa no princípio do século XII antes da era cristã, um passado de quase quatro séculos da vida do poeta.
Fora uma guerra que tivera como causa real a rivalidade econômica das primeiras tribos gregas instaladas na Grécia propriamente dita, os Aqueus de Micenas contra os Eólios de Tróia.
Isto já é história, enquanto o poema é antes de tudo uma enorme obra de arte!
O episódio escolhido pelo poeta, que lhe empresta uma unidade de ação, é o da cólera de Aquiles, sua querela com Agamenon rei de Micenas e chefe da expedição contra Tróia, assim como de suas consequências funestas para os gregos.
Eis a trama da ação:
Agamenon o chefe supremo exige de Aquiles, o mais valente dos gregos, que abra mão de uma bela mulher feita escrava, que lhe coubera era quando de uma partilha de guerra.
Aquiles, entretanto, recusa-se a ser privado de um bem que lhe pertence. Indigna-se a ponto de, na assembleia dos combatentes onde esta exigência é feita, insultar gravemente Agamenon. Diante de todos os camaradas, Aquiles faz o juramento solene de se retirar da batalha, fechando-se em sua tenda, enquanto não tiver recebido a reparação da afronta infringida à sua bravura.
Sem Aquiles, os Aqueus sofrem três derrotas em frente os muros de Tróia. Cada uma mais desastrosa que a outra.
Os sitiantes terminam por serem sitiados pelas tropas troianas; o inimigo prepara-se inclusive para incendiar seus navios e impedir que os gregos, uma vez derrotados, voltem ao mar.
Neste momento é quando Pátroclo, amigo e amante de Aquiles, decide, após implorar ao amigo que volte a batalha, atirar-se ele à luta com as vestes, cavalo e armas de Aquiles.
Os gregos se animam e infringem enorme derrota aos troianos, até que o comandante destes, Heitor, trava um combate singular com Pátroclo, julgando este ser Aquiles, e o mata. É bem verdade que o deus Apolo o ajuda na empreitada. Afinal, sangue atrai sangue.
A dor de Aquiles ao saber da morte do amigo é avassaladora. Ele se desespera, arranca os cabelos, nega-se a se alimentar e, então, desenvolve-se no poema uma enorme peripécia e Aquiles aceita as recompensas oferecidas pelos chefes gregos e volta ao combate.
A quarta batalha da Ilíada começa. Esta batalha é de uma carnificina terrível. O exército Troiano é derrotado e busca abrigo dentro da cidade. Somente seu comandante, Heitor, fica fora dos muros. E ele enfrentará em combate Aquiles.
Heitor combate como um verdadeiro herói, com o coração todo cheio do amor que dedica à mulher, ao filho e a sua cidade.
E então, até os próprios deuses que ainda protegiam Heitor, deles se afastam. Ele é mortalmente ferido por um Aquiles sedento de sangue. Aquiles, então, atrela o cadáver de Heitor ao seu cavalo e o arrasta até sua tenda, o cúmulo do ultraje!
O poema não termina nesta cena. O velho Príamo, o rei de Tróia, vai até à tenda do vencedor implorar pelo corpo do seu desgraçado filho.
Aquiles se condói e lhe entrega o corpo que será sepultado pelo povo troiano com as honras fúnebres.
Aquiles é a juventude e a força. Enfrenta seu comandante, Agamenon de igual para igual. Tem a suprema coragem de, perante a desgraça de todo o seu povo, permanecer impassível. No entanto, quando se levanta ele é atroz, uma força destruidora com a mesma volúpia de sangue que Ares.
Um exemplo de sua fúria bestial é a morte em combate do adolescente Licaón, filho de pais que lhe eram conhecidos e que já o haviam hospedado. Mesmo as súplicas do jovem não o impedem de matá-lo, despedaçar seu corpo e atirá-lo aos peixes.
Em Homero, o grande herói grego nada possui de sobre-humano ou divino. Aquiles é movido por paixões, devorado pelas amizades, pelo incrível amor-próprio, pela necessidade de glória e ódio. Não por acaso ele se apaixona pela chefe guerreira das Amazonas, Pentisiléia, depois de abatê-la em combate e estuprar seu cadáver.
Aquiles não possui autodomínio, por isto, tudo sofre: paixões e ódios! Sua alma é um céu que nada serena. A calma é sempre mera aparência. Somente a ação, o combate, o libertam de sua angústia essencial. E sempre que a paixão o empurra sua ação é dissolvente, anárquica, de tal forma que nele aniquila o sentido da honra “aristoi” e o vota à mais desumana crueldade.
Quando Heitor, mortalmente ferido lhe suplica por um enterro digno, ele responde com injúria se desonra na crueldade mais bestial.
De atitude em atitude, Aquiles caminha para a mais inumana solidão, num processo de destruir e destruir-se. Ele ama a vida no momento e no ato, agarrando-se a tudo o que lhe traga emoção e ação. Por isso, sempre parece desafiar a morte, nela nunca pensa, só o presente é válido. Mesmo quando seu cavalo Xanto o avisa da morte próxima, dá de ombros, o que lhe importa?
De sua vida deixa-nos um único momento de profunda humanidade: a entrega do cadáver de Heitor ao pai.
Afinal, para Aquiles, a morte em glória é símbolo de imortalidade na memória dos homens. Aquiles escolhe viver até nós, pelos versos de Homero, em sua loucura, em sua carnificina.
Heitor é a criação da alma de Homero, criação do seu coração, símbolo de sua fé na humanidade. O poeta confere ao inimigo dos gregos, assim como a ele mesmo, a mais alta dignidade humana!
A bravura de Heitor não lhe vem do ímpeto, de sua natureza, de sua animalidade. Ao contrário, a bravura é uma filha da razão.
Heitor odeia a guerra, por isso “teve de aprender a ser bravo”! Sua coragem é uma conquista do espírito, pois ao invés de ignorar o medo, supera-o. Se Aquiles não necessitava refletir para ser bravo, Heitor o é por reflexão e razão.
Para o comandante dos troianos, lutar contra a covardia significa o respeito pelo homem, o amor-próprio somente onde exista honra, mais importante que a própria vida. Para ele, a honra não constitui uma abstração, mas sim, combater pela terra que ama, morrer por ela se for preciso, combater para salvar sua família, mulher e filho da escravidão e da morte.
Com o retorno de Aquiles à luta ele sabe que Troia estará perdida, mas seu amor não se detém em tais certezas: a verdadeira honra consiste em defender até a última hora a quem amamos!
Em Heitor também encontramos a repulsa profunda contra a violência! Heitor é cívico, impõe mesmo na cidade sitiada a disciplina social.
Aquiles, o anárquico, o odeia e por isto quer mata-lo. Heitor deseja matar aquele que destruirá sua civilização. Por isto ele todo o tempo propõe um pacto de paz para os gregos. Mas Aquiles não aceita pacto algum: “não nos é permitido amarmo-nos, tu e eu”.
A Pátria para Heitor não são os tesouros dos antepassados, os muros de uma cidade: são as vidas que ele deseja salvar e mantê-las em liberdade! A última conversa entre dois seres que se amam, Heitor e Andrômaca, revela respeito entre seres iguais, jamais submissão.
Heitor ao morrer, já desarmado, solta um grito de desafio à morte que nos alcança no século XXI.
Aquiles é aquele que deseja incendiar o mundo, um mundo feito de pilhagens e de guerra. Heitor anuncia o mundo novo a surgir, o mundo das cidades, dos pactos, das afeições e respeito familiares e da fraternidade entre os homens.