O Rio da “Cabeça de Porco”, cortiço explorado pelo marido da Princesa Isabel.

Em julho de 1841, o Rio de Janeiro era uma festa. Toda a Corte paramentara-se para aquele que seria o seu mais importante evento: a Coroação de D. Pedro II!

Na França, na mesma época, nascia em berço de ouro Gastão de Orleans, o Conde D’Eu, descendente das mais coroadas casas de Europa, Bourbons e Orleans, neto da Rainha Victória da Inglaterra, e que, no futuro, seria o marido e Príncipe Consorte da Princesa Isabel, filha mais velha de D. Pedro II, sua provável herdeira no trono.

Por aqui, o ritual da Coroação tinha de mais de um milhar de pessoas. Piquetes de cavalaria, marchas militares, arqueiros, foguetório, tudo o que seduzisse e intimidasse aos recalcitrantes. Afinal, após os anos conturbados da Regência, reinava certa estabilidade política e financeira graças ao preço internacional do café, o principal produto agrícola do trabalho escravo. A Monarquia desde então queria simbolizar a ordem e o progresso.

Foi o tempo em que o Rio, o mesmo da infância e da juventude de Machado de Assis, viveu o auge do agro negócio escravagista, os anos de ouro que de 1841 se estenderam até 1864. A cidade, com uma população de 270 mil habitantes, inaugurou um período de renovação, tendo por modelo a Paris de Napoleão III: surgiram poucos e limitados bairros elegantes e bem cuidados para os lados de Laranjeiras e São Clemente.

Proliferaram os salões mundanos num tempo das celebrações das elites. A vitória brasileira na guerra contra a Argentina de Oribe e Rosas, a efervescência dos meios financeiros, tudo era pretexto para festejos e saraus.

O grande baile do Paço Imperial iniciou um Rio de Janeiro onde “bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro”, segundo Machado de Assis, na maioria das vezes para desfrutar o espetáculo predileto dos cariocas de então: a ópera italiana! É ainda Machado de Assis quem intitula esse período como “tempos homéricos do teatro lírico”. Em 1858, inaugurava-se no Rio a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional e a cantora Rosina Stoltz, “célebre cantarina” machadiana, reinava na ribalta.

Mas ao lado do luxo e do refinamento de muito poucos, havia o lixo.

Como a elite carioca vivia longe das praias, os dejetos eram atirados diretamente às ruas ou amontoado em tonéis recolhido por escravos e despejados no mar. Ao mesmo tempo em que a sujeira no passeio público crescia ano a ano, as praias exalavam mais e mais o cheiro da putrefação.

Em meados de 1860 a cidade tinha mais de cinquenta por cento de negros escravos. A fuga era a forma mais comum de sua resistência. Surgiram, então, os caçadores de negros fugidos que trabalhavam por empreitada, com os olhos postos nos anúncios em jornais e na recompensa oferecida. Em “Relíquias da Casa Velha”, Machado de Assis nos traz o conto ‘Pai contra mãe’. O personagem tomava como figurino um famoso miliciano de nome Manuel João, condecorado pelo Partido Conservador na Assembléia.

No decorrer dos anos 1860, teremos o início da decadência da produção cafeeira do Vale do Paraíba, um dos principais polos da economia agroexportadora. As terras estavam exauridas, o preço do escravo, desde a proibição do tráfico negreiro por pressão da Inglaterra, só fazia crescer.

Em 1864, o Conde D’Eu, da Casa de Orleans aporta ao Rio de Janeiro para desposar a herdeira do trono brasileiro. Incorpora-se logo a seguir ao Exército Nacional na guerra que Brasil, Argentina e Uruguai desencadearam contra o Paraguai.

Pois a Guerra do Paraguai, que durou seis longos anos, entre 1864 e 1870, ademais de ter sido um desastre em termos de vidas, foi um dos períodos em que mais os cofres públicos foram rapidamente pilhados, tanto pelos custos em si da campanha, quanto por negociatas entre fornecedores e Estado, com a conivência e participação de oficiais do Exército comandado por Caxias.

Fortunas surgiram da noite para o dia em mãos de empresários e comerciantes muito bem relacionados politicamente. Machado de Assis, em “Esaú e Jacó” nos traz a enigmática figura de Custódio que, de arrecadador de esmola, torna-se pregador e, após, um capitalista de respeito.

Tanto a drástica redução de nossa produção cafeeira, acompanhada da queda do preço internacional do café, quanto a Guerra do Paraguai provocaram o esgotamento do ciclo de desenvolvimento da metrópole.

Com o final da guerra, o afluxo para o Rio de negros-soldados libertos que sobreviveram, boa parte deles com sequelas, contribuiu para que a estabilidade social relativa se desfizesse. De tal forma que a população do Rio de Janeiro dobrou em vinte anos. Logo a seguir, iniciou o afluxo de imigrantes europeus e de ex-escravos vindos em desespero para o Rio a partir das lavouras esgotadas e, em fins do século XIX, a cidade já alcançava as 700 mil almas. Triplicara sua população em não mais de trinta anos!

A explosão demográfica agravou a pobreza e provocou enorme crise habitacional. Na cidade velha e em suas adjacências, multiplicavam-se as habitações coletivas e eclodiam epidemias que conferiam à cidade a qualificação internacional de “porto sujo”.

Por outro lado, o custo de vida, com a escassez de alimento para tantas bocas, acentuou a fome e faltam pães para o pobre alimentar-se deles com bananas, únicas frutas que ainda abundavam.

Luís Edmundo da Costa, em “Memórias”, descreve as belezas e as feiuras do Rio nas duas últimas décadas do século. A cidade cheirava a ranço colonial, com infinidade de sujeiras e era varrida por epidemias de doenças infectocontagiosas.

É certo que a cidade possuía a beleza natural que todo o mundo admirava, mas de preferência quando vista ao longe, desde os conveses dos navios onde se comprimiam os passageiros que a admiravam a caminho de uma terra segura como Buenos Aires ou Montevidéu.

No conceito internacional, o Rio era uma cidade bela, mas maldita.

A tônica era dada pela miséria e pela sujeira. No Rio de Janeiro de ruas estreitas, muitas vezes becos onde se amontoavam toneladas de lixo. Em suas praças mais amplas inexistiam árvores, pois elas haviam sido devastadas. As ruas fervilhavam de vendedores em carroças e no lombo dos animais; os menos afortunados carregavam bugigangas nas costas e nos braços. Eram homens, mulheres e crianças, antigos escravos, imigrantes, trazendo suas mercadorias sedentas de compradores. A cidade do Rio era uma imensa feira a céu aberto.

A nata da sociedade carioca, os ricos fazendeiros e aristocratas, que na virada do século não eram mais de cinco mil pessoas, viviam em suas luxuosas mansões pelos lados das Laranjeiras e de São Clemente.

Mais ou menos próximo ao centro e nos subúrbios, uma classe média nascente, composta por funcionários públicos, médicos, baixa oficialidade, pequenos negociantes, começava a construir casas simples e novos bairros, tal qual o Estácio, começam a se formar, substituindo muitas chácaras antigas.

Mas construir casas era caro, o aluguel mesmo nos subúrbios, insuportável para a maioria da população, o que a obrigava a viver em cortiços ou em favelas. Dos dois, o pior lugar eram as favelas, carentes de tudo, principalmente de água e esgoto, barracos toscos de madeira construídos nos morros ou em terrenos íngremes. Nelas predominavam os negros, muitos dos quais são os mutilados na Guerra do Paraguai.

Já os cortiços possuíam condições um pouco melhores que as favelas. São galpões ou casarões antigos e decadentes subdivididos por tabiques de madeira e alugados seus estreitos e úmidos cômodos. Tornavam-se excelente negócio a ser explorado pelos seus donos, comerciantes, fazendeiros e aristocratas.

O Conde D’Eu deixara o Exército, desgastara-se na Corte de D. Pedro II e os rendimentos que recebia de suas propriedades na França haviam minguado com a Terceira República, após a queda de Napoleão III (1871).

Era proprietário de um dos maiores casarões decadentes do centro do Rio antigo. Apelidado de “Cabeça de Porco”, ele foi transformado em cortiço e nele passaram a residir mais de quatro mil pessoas, pagadoras regulares de alugueres ao esposo da Princesa Isabel, por intermédio de cobradores implacáveis da Coroa.

Somente em 1889, com a República, o Conde deixou de receber seus alugueres, mas jamais os “meganhas” deixaram de cobrá-los de seus pobres moradores.

Bibliografia

1. Coaracy, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro, Ed. Jose Olympio, 1965.

2. Figueiredo Pimentel, Gazeta de Notícias, setembro 1908.

3. Costa, Luiz Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Imprensa Nacional, 1935.

4. Pereira, Astrogildo. Crítica impura, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1963.

5. Schwarcz, L. e Starling, H.. Brasil, uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.

6. Azevedo, A.. “O escravocrata”. Biblioteca Nacional.

7. Schwarcz, L.. “Lima Barreto, triste visionário”. São Paulo, Companhia das Letras.

5 respostas

  1. Gostaria muito que vocês me citassem algum documento, jornal ou revista da época, confirmando, por meio de declarações do Conde ou de pessoas de sua relação, que ele era de fato proprietário do Cabeça de Porco, para que esse texto não pareça ser apenas um punhado de mentiras veiculadas para linchar a reputação de um personagem histórico. Não é assim que se faz história, e muito menos se muda, para melhor, uma sociedade.

    1. Referências bibliográficas:Chesneau, Ernest. Vie du comte d’Eu. Paris: C. Lévy, 1889.
      Biografia detalhada sobre a vida do Conde d’Eu, escrita por Ernest Chesneau.

      Schwarcz, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

  2. Bom dia, Carlos Russo. Tenho lido atentamente “As barbas do Imperador” por conta de um romance que escrevo no momento, e conheço apenas uma referência breve na pág. 432, de que o conde seria dono de “casas de pensão” – ainda assim , como falatório popular. Não há prova documental, nem menção ao Cabeça de Porco. Também tenho pesquisado muito esse cortiço, que faz parte de minha trama e nunca vi essa referência em outra fonte. Não conheço a biografia escrita por Chesneau, vou procurá-la. Uma dúvida: por quê você não colocou essas duas referências na bibliografia?

    1. Essas referências não são assertivas. Se juntarmos as mesmas ao fato que o Conde D’Eu estava na bancarrota antes de aceitar e ser aceito pela Princesa Isabel/ D. Pedro, que, em razão desta situação, foi forçado pelo Imperador a substituir Caxias no massacre das crianças paraguaias ao fim da guerra e que ao retornar ao Rio empregou seus bônus para render como alugueres, o falatório popular ganha corpo.

  3. Pode até ganhar algum corpo, mas permanece especulativo. E de qualquer modo não o aproxima do Cabeça de Porco, cujas referências literárias ou históricas o associam a comerciantes portugueses, que foram ampliando-o à medida em que enriqueciam mais e mais. É isso que vemos em Luís Edmundo e Aluísio Azevedo, entre outros.

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