“Onde se queimem livros, um dia se queimam pessoas”. Essa é uma frase de Henrich Heine, poeta e escritor alemão romântico que, no século XIX, inspirou Castro Alves, Gonçalves Dias e Machado de Assis. Amigo de Karl Marx, após ter todos seus livros libertários proibidos na Alemanha, buscou refúgio na França, até sua morte.
O ódio ao livro, ao “logos”, à cultura, à leitura, à compreensão da realidade, não passa de misantropia, ódio ao ser humano, tão característicos dos regimes fascistas, do capitalismo decadente.
Neles os livros são literalmente proibidos e tratados como resultado de uma degeneração da raça. Por isso precisam ser queimados, incinerados, proibidos. Claro, como não poderia deixar de ser, tanto aqueles que escreveram os livros como aqueles que se encontram na zona de influência de suas ideias, merecem ter o mesmo destino. O fogo é visto aqui sem qualquer metáfora, “como veículo de purificação”.
O combate sistemático ao livro também pode acontecer de maneira mais sutil; é possível combate-lo aviltando conteúdos, construindo “narrativas” mentirosas, acusando autores de deturpadores e nocivos para o espírito, em suma, estigmatizando ideias e fomentando o ódio ao que elas difundem.
Outra possibilidade é simplesmente proibir, censurar. George Orwell em seu visionário “1984”, onde nenhum livro seria aprovado se não passasse pelo “Ministério da Verdade”, para o qual “guerra é paz”, liberdade significa servidão, ignorância é força!
Mas Heine tinha absoluta razão, pois onde quer que se queimem livros um dia se queimarão também pessoas. Seus autores e leitores são combatidos como inimigos da Pátria, da Família e de Deus. Corruptos e corruptores.
Voltando a Orwell, como guerra é paz, liberdade é servidão, ignorância é força, como não se cansa de falar o Grande Irmão, as pessoas letradas ou letristas são abatidas. O importante é lidar de maneira impiedosa com elas!
Shakespeare chegou a restringir a manifestação do humor à figura emblemática do bobo da corte. Como ele é bobo e, com isso, como ninguém o leva a sério, ele pode dizer uma verdade ácida com todos os requintes de sua ironia, sem ser, ao mesmo tempo, condenado à fogueira ou à degola. Ainda que o bobo sempre caminhe no fio navalha e corra o perigo de superestimar sua posição de bobo. Afinal, Bobos também são executados!
O ódio dos fascistas ao humor e ao politicamente correto.
É por isso que eles odeiam tanto o humor, a ironia, a caricatura, porque o humor instabiliza, mobiliza, quebra, contesta, suprime os enrijecimentos, realiza e obriga violentamente a pensar. O riso, disse Nietzsche, destrói os ídolos, instaura um novo regime da Verdade.
O que está em jogo, antes de tudo, no discurso contra o politicamente correto: é a defesa do direito supostamente sagrado de falar qualquer coisa que pensemos, sem nenhuma consideração por aqueles que podem sentir-se atingidos por nosso discurso, assim como sem nenhum questionamento das estruturas subjacentes a nossas ideias e visões do mundo.
Por exemplo, para um racista, não ter consideração pelas minorias raciais é um privilégio de sua condição, um direito daqueles que pertencem a uma classe e uma raça superiores! Para um machista, tratar mulheres como objeto sexual e como posse pessoal, é obedecer a uma ordem natural das coisas, que só pode ser questionada por aqueles que desafiam tal ordem.
O politicamente correto é pura e simplesmente o correto. O advérbio politicamente está aí apenas para lembrar a cada um de nós o fato que todas estas situações são políticas, porque envolvem a vida comum de todos nós.
A própria negação da política constitui uma das formas mais rasteiras de burrice, quando não de fascismo!
O contentamento da burrice consigo mesma, abjura a leitura de livros.
A burrice é por princípio contente de si mesma e a falta de pudor é uma das vias preferenciais da burrice. Com isso, de maneira estranha, vivemos em um mundo ambíguo, em uma espécie de tempo com a figura da face dupla da Juno romana.
Nunca, na história, estivemos sobre um domínio tão impactante da relação senso comum e dogmatismo.
E nisto se insere a enorme abrangência do dito “Neo Evangelismo”.
Ela é uma religião do grito, do julgamento incessante do outro, de negação do mundo e de tentativa de reconsideração da vida nos moldes dogmáticos da visão evangélica do mesmo.
O ideal do mundo evangélico é literalmente o mundo só de evangélicos, no qual tudo precisa ser traduzido de maneira evangélica. A “verdade dita revelada” torna-se assim moeda do dia, força identitária de submissão do outro.
O problema é que aliança entre o ser humano e a servidão é uma aliança mais profunda do que seu anseio por liberdade. Dostoieviski, em “Os Irmãos Karamasov” nos diz pela boca de Ivan: “De bom grado os seres humanos se entregam a servidão, contanto que ela lhes permita uma existência que os satisfaçam. A liberdade, em contrapartida, sempre sobrecarrega e assola. Por isso, Cristo precisa ser uma vez mais condenado, ele precisa uma vez mais morrer. Não para salvar os homens de uma existência sem sentido, mas para libertá-los de todo e qualquer busca por sentido”.
Para Dostoiévski ainda, o homem é um animal de duas patas e ingrato. Na medida em que não há qualquer sentido no sofrimento, sofre sempre vão. Logo é preciso que haja um sentido para o sofrimento e a loucura que nasce da ingratidão.
Religião é o nome dessa força. Ressentimento, sua essência. Religião é ressentimento.
O fracasso do Capitalismo.
O século XXI é a concretização de “1984”.
A obra-prima de Orwell nos oferece a oportunidade de olhar nosso próprio campo existencial contemporâneo, a partir da lente projetada por aquilo que, na década de 1940, parecia ser para Orwell um futuro distante, tão distante quanto o futuro por ele também projetado para plena concretização do plano totalitário do mundo, 2050!
Uma sociedade completamente vigiada, na qual não restam senão pontos cegos esporádicos sem câmeras, nos quais de uma maneira sempre fatal, é possível encontrar algum tipo de intimidade e recolhimento. Mesmo o sono é sistematicamente vigiado.
Num mundo onde a vida é cada vez pior em termos materiais, onde se é sistematicamente vigiado com vistas a possíveis reações de revolta.
Orwell estava convencido do fracasso inexorável do capitalismo e de todas as perspectivas futuras de uma sociedade de mercado. Assim, ele substituiu os caminhos da alienação e pensou simultaneamente a escassez como uma forma de manutenção dos oprimidos em sua situação como tal.
Por outro lado, a ampliação desenfreada do consumo dos dias de hoje, tornou-se claramente uma forma mais eficaz de mobilização redentora da submissão; afogar os indivíduos e seus anseios supérfluos, em seus sonhos medíocres, em suas danças desenfreadas. É com isso que se mantém a todos trabalhando na engrenagem sempre em movimento do Capital.
O negativismo, ou a estupidez transformada em sabedoria.
Se o passado perde sua concretude, então tudo é permitido! Estranho cenário onde não parece haver mais limite para transformação do passado, para ampliação das possibilidades narrativas. Esse é o lema da estupidez transformada repentinamente em sabedoria.
O pós-verdade é simples manipulação da Verdade com vistas aquilo que interessa sobremaneira, a quem se relaciona com o passado a partir de uma perspectiva de poder. É porque se percebe o quanto o controle do passado torna possível o domínio sobre o presente.
E na determinação do Futuro é que se busca suprimir toda e qualquer objetividade do passado em meio a afirmações dogmáticas sobre o que é a história e o que deve ser.
Por isso, os livros devem ser queimados! Depois, as pessoas.