Em “Minima moralia”, Theodor Adorno descortina todo o vigor de seu pensamento, revelando um olhar agudo e atento às deformações de caráter social que permeiam a existência moderna e que se expressam de forma ainda mais extensa naquilo que Bauman denominou de “vida líquida”, o pós-modernismo de uma sociedade fundamentada no individualismo, algo temporal e instável que carece de aspectos sólidos, e que, ao mesmo tempo cria sólidas pontes com o fascismo sempre presente.
Em “Minima moralia”, Adorno dedica-se a desmascarar, através de aforismos, as múltiplas máscaras usadas pela falsa consciência. Dentre estes, “O matadouro”, nosso mundo humano!
“As categorias metafísicas não constituem apenas a ideologia encobridora do sistema social, mas expressam ao mesmo tempo a sua essência, a verdade sobre ele, e nas suas modificações depositam-se as mais substanciais experiências”.
Assim acontece com a morte na história; assim como, no seu reverso esta deixa-se compreender naquela.
No passado, a dignidade da morte equivalia à do indivíduo, isso antes do Iluminismo com Voltaire e Diderot, e, posteriormente em continuidade, com o Zaratrusta de Nietzsche, que ao descer da alta montanha anuncia, tal qual Moisés há alguns milênios não suas “leis”, mas “a morte de Deus”.
Na modernidade, a autonomia do indivíduo, economicamente originada, consumou-se na representação do seu carácter absoluto logo que a esperança teológica na sua imortalidade, que empiricamente o relativizava, empalideceu.
“A tal (esperança) correspondia a imagem enfática da morte, que extingue totalmente o indivíduo, o substrato de todo o comportamento e pensar burgueses”. A partir de então, a imagem da morte como uma “passagem” entre vidas rui com o indivíduo socialmente dissolvido.
“Quando a morte ainda aparece revestida da antiga dignidade, o seu efeito é estrepitante, como a mentira que sempre esteve contida no seu conceito: dar um nome ao imperscrutável, um predicado ao carente de sujeito e recompor o ausente”.
O ausente desde a modernidade deixou de poder ser recomposto, tal qual Ísis fizera com Ozíris. Agora o morto não é um ausente, despedaçado e que pode ser recomposto num Juízo Final. Ele se desintegrou!
Na consciência predominante, a verdade e a falsidade da sua dignidade desapareceram, não em virtude da esperança no Além, mas em face da desesperançada falta de vigor do cismundano, de tal modo que, “se o indivíduo que a morte aniquilou é algo nulo, despojado de todo o domínio de si e do próprio ser, então será também nulo o poder aniquilador, diríamos, brincando com a fórmula heideggeriana do nada que nadifica”.
Enfim, “a radical substituibilidade do indivíduo faz da sua morte, com um desprezo total por ela, algo revogável. A morte surge perfeitamente integrada como quantité négligeable”.
Para cada homem a sociedade tem já preparado, com todas as suas funções, um outro à espera, para quem o primeiro é, desde início, um molesto ocupante do posto de trabalho. Um candidato à morte a ser simplesmente substituído tanto na função quanto até mesmo nos sentimentos menos próximos, como Liev Tolstoi expressou com clareza meridiana em “A morte de Ivan Ilyich”!
A experiência da morte converte-se assim na da permuta “de funcionários”, e tudo o que da relação natural da morte não passa plenamente para a relação social deixa-se para a higiene, para o enterro a sete palmos, ou valas comuns, ou ainda a incineração.
No Matadouro, a morte se domestica.
Ao conceber-se a morte apenas como a exclusão de um ser natural da trama da sociedade (a famosa frase do líder fascista Bolsonaro “o cancelamento do CPF”), esta acabou por domesticá-la: morrer apenas confirma a absoluta irrelevância do ser natural frente ao absoluto social.
E a indústria cultural ao tempo de Adorno e ao da mídia digital nos de hoje, ao darem testemunho das mudanças na composição orgânica da sociedade, sob a sua lupa, “a morte começa a parecer algo até mesmo cômico”.
Mas o riso com que a saúda certo gênero de comunicação é ambíguo: “denuncia ainda a angústia perante o amorfo debaixo da rede com que a sociedade cobriu a natureza inteira”.
Mas o invólucro é já tão amplo e espesso que a memória do nu tem um aspecto ridículo e sentimental.
O terror totalitário.
O romance policial decaiu após as criações magistrais que foram as comédias sobre crimes de Edgar Wallace (1835/ 1932- autor de mais de 175 livros policiais e de terror, com destaque pare seu inacabado “King Kong”), que com a sua mínima construção racional, seus enigmas não resolvidos e o seu grosseiro exagero pareciam mofar dos leitores.
No entanto, atenção, nos diz Adorno: o terror de Wallace tão grandiosamente anteciparam a imago coletiva do horror totalitário!
Enquanto a comédia criminal brinca com o falso horror, ela demole ao mesmo tempo as imagens da morte. Apresenta o cadáver como aquilo em que se converteu, como requisito de uma atitude. Ele tem ainda a aparência de um homem e, no entanto, é só uma coisa, como no filme “A slight case of murder”, onde os cadáveres são continuamente transportados de um sítio para o outro, que são alegorias do que um dia já haviam sido.
“O que os nazistas e fascistas fizeram a milhões de homens, a catalogação dos vivos como mortos ( antes de manda-los aos fogos crematórios), e o que depois, (em conjunto a grande indústria como Bosch, Bayer, Siemens, dentre outras) fizeram a produção em massa e o embaratecimento da morte, projeta a sua sombra sobre aqueles que, para fazerem rir, se inspiram nos cadáveres”.
É decisiva a introdução da destruição biológica na vontade social consciente. Só uma humanidade, à qual a morte se revela tão indiferente como os seus membros, uma humanidade que morreu, pode condenar à morte por via administrativa seres incontáveis.
“A oração de Rilke ( poeta Rainer Maria Rilke) por uma morte própria é o engano lamentável de acreditar que os homens simplesmente perecem”.
Uma resposta
A banalização da vida parece fazer parte da própria história da vida no planeta. Ao longo dos últimos 600 milhões de anos, diversos eventos (5) de extinção em massa ocorreram (aniquilando de 75 a 95% das espécies existentes).
E ainda existe a taxa “normal” de extinção de espécies (1 a cada 10,000 espécies a cada 100 anos), que vem sendo acelerada de 100 a mil vezes desde o aparecimento dos hominídeos.
Os filósofos humanos abordam a questão da morte de uma maneira metafísica arrogante que transcende a vida como um processo vinculado a uma interação simbiótica que permite a sustentabilidade de todas espécies do planeta. Ah, se existissem filósofos de outras espécies que habitam essa bola azul…Como será que abordariam a vida e a morte?
A humanidade já alterou cerca de 75% da superfície terrestre e utiliza 3/4 dos recursos de água doce.
Nós continuamos a ser alienígenas colonizadores em nosso planeta, como se pudéssemos simplesmente ir a outro lugar quando houvesse a impossibilidade de continuar habitando a Terra.
Mas nós nos atemos a discutir a sociedade que criamos, uma cleptocracia que aparenta não ter crises de consciência e segue trilhando o caminho para a borda do penhasco, qual lemingues programáveis.
Mesmo com toda a mensagem contida na doutrina cristã e que impregna a filosofia ocidental, mesmo com a mensagem propagada pelas filosofias orientais, a morte é apartada da vida, como se não fosse apenas um processo natural.
A morte continua sendo um instrumento de manipulação do poder dominante. O medo que a morte transmite, apesar de ser inerente ao instinto de sobrevivência dos seres vivos, é uma arma poderosa, que nos subordina à vontade dos poderosos.