O fenômeno do mal pode ser abordado sob diferentes perspectivas; através do senso comum, dos mitos, da religião, das várias ciências, e mais.
Interessa-me aborda-lo à luz da psicanálise para que se revele o surgimento de novas formas de apresentação do mal-estar na cultura e, como cultura, ontem e hoje.
Em, “O Mal Estar na Civilização” (1930[1929]), Freud diz:
“Eis que, em meu entender, a questão decisiva para o destino da espécie humana: se o seu desenvolvimento cultural conseguirá, e em caso afirmativo até que ponto, dominar a perturbação da convivência que provem da pulsão humana de agressão e de auto-aniquilamento. A nossa época merece, talvez, um interesse particular justamente neste assunto. Hoje, os seres humanos levaram tão longe o seu domínio sobre as forças da natureza que com o seu auxílio lhe será fácil exterminar-se uns aos outros, até o ultimo homem. Eles sabem-no, daí boa parte da inquietação contemporânea, da sua felicidade, do seu espirito angustiado. E agora podemos esperar que o outro dos dois poderes celestiais, o Eros eterno, faça um esforço para se consolidar na luta contra seu inimigo igualmente mortal.
Mas quem pode prever o desfecho?”
Será que a noção de banalidade do mal, forjada por Hanna Arendt na década de 1960, é suficiente para compreendermos as contradições da nossa sociedade?
Freud nos auxilia no desenvolvimento desta noção para o conceito de sociopatologia da vida cotidiana, no texto citado.
O que esta em jogo no mal estar freudiano?
Como Freud interpreta o processo civilizatório?
A concepção de que o homem não é um ser pacificado portanto, encontra-se em constante conflito.
Ele outorga a gênese do conflito à oposição entre as pulsões; Eros, pulsão de vida e Tánatos, pulsão de morte; luta ininterrupta no nosso mundo interno.
A agressividade humana como disposição, como representante do mal, não é algo que se apresenta somente de forma espetacular mas, cotidianamente, banalmente. Não é somente dirigida ao mundo externo, mas a si mesmo, como atos auto destrutivos e, não provem somente das pulsões mas, também, de processos sociais (inquisição, escravidão, terrorismo).
A concepção de que estarmos inseridos em um ambiente hostil, inóspito, que se traduz por uma luta contínua entre a nossa natureza e a cultura, a civilização. Ou, por outro lado, a concepção de que a sociedade é criada às custas do recalcamento das pulsões.
Chegamos a um paradigma da psicanálise: somos indivíduos desabrigados, vivemos no mal-estar e carregamos dentro de nós um estranho.
Aqui levanta-se o problema crucial da relação do ser humano com a lei, a lei primordial, que marca a passagem, o salto, da natureza para a cultura.
Este é o modelo edípico, onde as relações da criança e seus pais representam a derradeira etapa de um progressivo e doloroso processo de alienação e separação.
O Édipo nos conduz a superar a infância, isto é, nossa dependência à mãe e ao seu desejo, e à introjeção da lei, lei da cultura, representada pelo pai. Logo, Édipo é pedra angular da estrutura intrapsíquica e do processo civilizatório.
As vicissitudes edípicas, quais sejam alguma renúncia às pulsões, à onipotência do desejo, ao princípio do prazer em prol do princípio de realidade, faz-se sob a égide de um pacto de mão dupla, pacto edípico, pacto social.
Perdemos e ganhamos.
Em troca da renúncia exigida temos o direito de receber um nome, uma filiação, um lugar na estrutura de parentesco, acesso à ordem simbólica, além de tudo o mais que nos permita desenvolver e viver. Assim, identificamo-nos com os valores da cultura, entramos no círculo de intercâmbio social e nos tornamos, de fato e de direito, sócios da sociedade humana.
O pacto primordial prepara e sustenta o segundo pacto e vice-versa. A má integração de um ou de outro pode gerar problemas, confirma ou infirma, um e outro, até a um ponto de ruptura.
É esta a chave psicanalítica para a compreensão da violência que dilacera o tecido social.
O mal-estar apresenta-se pela violência, pela guerra civil crônica: violência urbana, doméstica, a luta individual de cada um.
Apresenta-se pela guerra militar armada: Rússia versus Ucrânia, Israel versus Hamas, para citar apenas as que estão em pauta na atualidade.
Aqui,,vale uma digressão.
Esta lei é também entronizada pela sociedade.
As sociedades modernas são baseadas em estruturas de poder. Todo poder é violento. Percebe-se, justamente, o elemento mítico que há na estrutura legal, jurídica. A instância jurídica é um pilar desta violência. O poder jurídico deve ter um braço forte para a execução das leis, inevitável e infelizmente. Vê-se a ambiguidade da lei: há os que estão acima da lei, são justamente os que determinam o que é a lei e, a esta posição, corresponde-se uma outra, oposta, os que são banidos da lei, não cobertos por ela, passíveis de serem mortos: indígenas, negros, pobres. Estes estão, definitivamente, desabrigados.
O que podemos diante do mal-estar?
Apropriarmo-nos dele, dominá-lo, deslocá-lo é fundamental.
Transformar o mal-estar pela via de um dispositivo que nos permita refletir criticamente sobre ele; alcançar um olhar irônico e crítico para que se revele a nossa posição sobre o nosso estar no mundo, na pós-modernidade.
Transformá-lo através de uma nova criação, sublime: o trabalho, a literatura, as artes, uma solução subjetiva, particular de cada um.
Trata-se de reunir um sistema de fragmentos em uma boa obra.
Este é um modo de resistência à violência que nos ronda no séc XXI, e em todos os séculos passados.
Finalizo com uma “profecia” do escritor tcheco Franz Kafka.
“Há esperança suficiente, para Deus, esperança infinita, mas não para nós; sentencia o escritor. Se o universo traz a agonia das situações que nos oprimem e não controlamos; traz o embate inútil com leis e acasos que nos escapam, absolutamente.”
Padecemos do mal estar da civilização, há esperança, mas não para nós, pois, do ponto de vista da psicanálise, não somos programados para a felicidade.
Há pouquíssimos momentos de felicidade, quando mudamos de um estado ruim para um melhor. Nosso estado normal é o de estar jogado no mal estar.
Mas vivemos de projetar esperanças, ela é a última que morre.
AUTORA: Andréa Pimenta Sizenando Matos. – Psicanalista