Em Proust o prazer, a dor, o sofrimento, a libertação e a loucura conectam-se ao amor e à paixão, aos prazeres do sexo, à necessidade da posse, às dores da perda. Entramos na esfera de influência do “deus máscara” dos povos antigos: Dionísio para uns, para Baco para outros. Aquele que é, diferentemente de todos os outros deuses de todos os tempos e crenças, a quem as orações e sacrifícios jamais contentam; o deus que em sua relação com os homens não admite o “dar e receber”, a moeda de troca inexiste. Tampouco exige piedade ou gestos caridosos. Dionísio exige do homem o total arrebatamento, o deus apenas se satisfaz quando logra apossar-se de todo o ser humano. E nesta posse, delícias das delícias nos esperam: dela emanaram o êxtase e a ultrapassagem de todas as medidas; o deus capaz de conduzir-nos, os mortais, desde o mais profundo horror ao mais alto patamar da realização da alma humana. O “deus-máscara”, como um avatar, metamorfoseia-se em humano e age como tal, utilizando a cada aparição uma de suas ”personnas” disponíveis; aquele deus que na verdade se assume como um homem divinizado, ou se quisermos, como um deus humanizado. Dionísio arrasta, àqueles que consentem na sua incorporação, à felicidade e ao autoconhecimento supremo, assim como à loucura e à destruição. É quando nós nos assumirmo enquanto instinto, o que significa como natureza viva. Mas esta supremacia dos instintos pode nos conduzir à loucura. As drogas em Proust constituem um passaporte para a alienação. Como um contraponto que torne possível a vida social. Enquanto muitos cultivam tão somente seus “dionísios”, a sua libertação do espírito e dos instintos, mesmo dos mais recônditos, dos mais violentos e libertinos, que possibilitam a incontida de volúpia e crueldade, outros, tal qual os gregos, erguem no mesmo patamar de importância, a figura monumental e sóbria de Apolo. Em Nietszche, “o sonho se opondo à embriaguês”. O sonho de um mundo dirigido pela verdade, pelo “logos” da sabedoria, pela beleza fulgurante do sol, gerador da beleza, em um mundo que é onírico mas que pode ser o real, pois é formatado pelo essencial. Foi o deus délfico, Apolo, quem “restringiu-se a retirar de seu poderoso oponente, Dionísio, as armas destruidoras, mediante uma reconciliação do consciente e do inconsciente, concluída no seu devido tempo”. Pois enquanto o carro que conduz Dionísio está coberto de flores e grinaldas, conduzido pela pantera e pelo tigre, propiciando ao homem a liberdade, permitindo-lhe que “viva” e liberte seus instintos e seu inconsciente, que busque seu “extasis”, surge com o seu caminhar alado, lado a lado, um outro carro, aquele do deus Apolo, rodeado por suas Musas a dançar e a cantar ao ritmo ditado por uma citera, o próprio portador da harmonia, da beleza onírica, da verdade, do poder do “logos”, com sua coroa de louros premonitória doada pelo amor por Dafne, natureza incorporada. E é fruto desta união, do conflito e da harmonização entre Dionísio e Apolo, entre o consciente e o inconsciente, da natureza e da consciência humana, que nasceu o melhor da arte grega, quiçá o melhor da arte de todos os tempos. E o século XX, tão insensato quanto dionísico, e assim, utópico ao mesmo tempo que “niilista”, mas também libertário e opressivo, positivista, descobre toda a grandiosidade do irracional; brutal quando das trevas mas libertário quando surge o sol; este novo século, que já ao surgir herdou a velhice de toda humanidade, mas que no alvorecer produziu um de seus mais belos frutos literários: “Em Busca do Tempo Perdido”.