O além-do-herói na visão de Nietzsche: Ariadne, entre Teseu e Baco.

O triângulo amoroso entre Ariadne, Teseu e Baco, foi profundamente analisado Nietzsche em “Zaratustra”, em “Ecce Homo” e em “A Vontade de Poder”. Nestes trabalhos ele introduz perspectivas interessantíssimas de serem analisadas.

No mito, Ariadne, filha do rei Minos, de Creta, começa odiando seu meio irmão Minotauro- Baco (visão de Nietzsche), apaixona-se por Teseu, viajor que recém aporta a Creta com a intenção de livrar Atenas de Minotauro, que a cada ano “devora uma dezena de virgens atenienses”.

Ariadne entrega a Teseu o novelo de linha que o levará ao labirinto e o conduzirá para fora do mesmo. Com a certeza da retirada, o ateniense se sente apto a sacrificar o filho de Minos.

Teseu é um herói ateniense, hábil em decifrar enigmas, cortar a cabeça de Medusa, viajar por vingança, adentrar ao labirinto do palácio e abater o Touro. Para Nietzsche, ele caracteriza o homem sublime, o homem superior, “o feiticeiro”.

Tem por isso mesmo o espírito grave, aprecia carregar fardos, despreza a terra, sendo, por outro lado, incapaz de rir, de brincar, de gozar a vida. Cumpre missões. Para Teseu é real tudo aquilo que pesa, que deva carregar pelos labirintos do destino.

Como símbolo da teoria do “homem superior”, Teseu é uma denúncia da mistificação do “humanismo” do final do século XIX. Na visão nietzschiana ele pretende levar a humanidade à perfeição do que ele mesmo considera perfeito, superando as alienações, realizando o homem total e colocando-o no lugar de Deus, constituindo “uma potência que afirma e que se afirma”.

Para Teseu, é real tudo o que pesa, tudo aquilo que carrega consigo. Os emblemas naturais do “homem superior”, como não poderia deixar de ser, são o asno e o camelo. O touro- Minotauro-Baco, é uma antípoda.

O touro em luta no labirinto da vida é vencido pelo “homem superior”, mas esta constitui uma vitória parcial, vitória de Pirro, pois o filho de Minos lhe é superior. O Minotauro é um ser com o selo de autenticidade, enquanto o “homem sublime” é uma máscara, apenas uma “personna” no teatro trágico da vida.

“Deveria fazer como o touro, e sua felicidade deveria ser cheirar a terra e não o desprezo por ela. ”

O “homem superior ou sublime” por desprezo busca submeter, dominar a natureza. É verdade que ele consegue vencer os monstros, expor os enigmas, da mesma forma que Teseu e Édipo. No entanto, eles ignoram o enigma e o monstro que eles próprios o são!

Eles não sabem que afirmar não é carregar, atrelar-se, assumir o que é, mas, ao contrário, afirmar-se é se desatrelar, livrar-se, descarregar o que se leva pela vida. Criar valores novos que façam a vida leve e afirmativa.

Teseu não compreende que o Minotauro possui a única superioridade verdadeira: prodigiosa besta-fera no fundo do labirinto, mas que se sente igualmente à vontade nas alturas, besta que desatrela e afirma vida.

O homem superior evoca o conhecimento e por isso pretende explorar o labirinto que é a floresta do conhecer. Mas o conhecimento é somente o disfarce para a moralidade, pois “o fio no labirinto é o fio moral”. A moral, por sua vez, é em si mesma um labirinto, disfarce do ideal ascético e religioso, sendo que o que se persegue é sempre matar o touro, isto é, negar a vida, reduzi-la sob as forças reativas. O “homem sublime” é um falsário em sua ansiedade por negar a vida.

Voltemos a Ariadne. Enquanto ama Teseu ela participa desse empreendimento de negação da vida. Teseu é o Espírito da negação, “o grande escroque” e Ariadne, parceira, a Ânima, a alma que é reativa e no seu ódio ao irmão Minotauro, ela encarna a alma do ressentimento.

Alerta-nos Deleuze: “Toda a obra de Nietzsche é atravessada por um aviso: desconfiem das irmãs” (e ele tinha razão em seu caso particular; após a morte de Nietzsche, sua irmã tentou manipular a obra do filósofo para o desfrute do nazismo e do antissemitismo). Ariadne, a irmã, é quem segura o fio do labirinto, o fio da moralidade.

Ariadne é abandonada por Teseu após o mesmo abater o touro. O “niilismo é vencido por si mesmo”.

À alma resta enforcar-se e diz Nietzsche para Ariadne, pela boca de Teseu: “Enforcai-vos com esse fio”.

É quando Ariadne sente a aproximação de Baco. Baco- Touro é a afirmação pura e múltipla, a afirmação verdadeira da vontade. Ele nada carrega, não se responsabiliza por nada, mas torna leve a vida, pois sabe fazer aquilo que o “homem superior” desaprendeu: sorrir, brincar, dançar, gozar, isto é, “afirmar a vida”.

Baco está além do herói, em outra coisa que já não é o próprio homem.

Era necessário que Teseu a abandonasse: “É esse com efeito o segredo da Alma, somente depois que o herói a deixou, dela se acerca, em sonho, o além-do-herói”.

A Alma que era tão pesada quando Teseu, sob Baco é leve, adelgaçada, aspira à natureza, ao céu. Sabe que aquilo que antes desejava nada mais era que vingança, ressentimento e o que acreditava ser uma afirmação não passava de disfarce.

Ariadne compreende sua decepção: Teseu nem era mesmo “um verdadeiro grego”, “ele era muito mais um alemão”. Ela desperta para Baco, para um verdadeiro grego e a Alma torna-se ativa e ela torna-se o Espírito que diz Sim. E Baco acrescenta à canção de Ânima- Ariadne uma nova estrofe, que se torna um diritambo:

“Sê prudente Ariadne!…

Tens pequenas orelhas, tens minhas orelhas:

Pode aí uma palavra sensata!

Não é preciso primeiro nos odiar, se devemos nos amar?…

Sou teu labirinto…”

Baco tem necessidade de uma noiva e nessa canção de solidão ele a reclama.

Sendo Baco a afirmação do Ser, Ariadne é a afirmação da afirmação. “É a mim que tu queres? Somente a mim- totalmente? ”

O labirinto já não é o caminho da moral e do conhecimento, o caminho de quem irá matar o Touro. Com Baco, Ariadne adquiriu pequenas orelhas, as orelhas do Eterno Retorno, pois o labirinto transmutou-se. Não mais é um pedaço de terra, mas é sonoro e musical.

O labirinto tornou-se Baco, o próprio Toro Branco, Baco e Ariadne precisam ter orelhas iguais, labirínticas, para responder a afirmação ao próprio ouvido de Baco.

Somente Baco- Touro, o artista criador, atinge as potências das metamorfoses que fazem o devir, dando testemunho de uma vida que jorra. São vis ou baixos os Teseus que só sabem disfarçar-se, travestir-se, isto é, tomar uma forma, que é sempre a mesma.

O “além do herói” é o oposto do “ser superior”. É o homem que vive nos cumes dos morros e nas cavernas, a criança amada e concebida pela orelha, o filho de Ariadne e do Touro.

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