“Nós”, a mãe de todas as distopias do mundo e do homem dominados pela “máquina” e tecnologia.

O romance “Nós” foi escrito entre 1920-1921. Sou autor? Um bolchevique que havia sido preso pelo czarismo, exilado, participado da Grande Revolução de 1917, amigo de Gorky, escritor modernista, teatrólogo e crítico literário, Ievgueni Zamiatin.

No entanto, o livro não foi aceito para publicação. “Não era adequado à educação do proletariado”. Nesse momento ainda nem se discernia no horizonte o totalitarismo stalinista futuro. A União Soviética, empobrecida, triunfara na guerra civil e tentava se manter.

Zamiatin, por seu lado, foi toda a vida um lutador herético pela liberdade e pela independência na arte e na vida. Para ele, o riso era a mais devastadora das armas. Atacou o totalitarismo emergente no mundo, a brutalidade, a violação e a destruição da liberdade.

Vivia em constante debate com os críticos e escritores e, mesmo assim, nos primeiros anos após a revolução, conseguiu publicar seus livros e peças teatrais. À medida que o poder endurecia, seus textos foram desaparecendo dos jornais e dos periódicos até o seu completo banimento da literatura e do teatro russos, após 1929.

Foi quando ele, numa carta, pediu a Stalin que pudesse deixar por algum tempo sua Pátria. Stalin, aconselhado por Gorky, permitiu e Zamiatin foi viver na Inglaterra onde seguiu como um crítico feroz do capitalismo, do stalinismo e da “maquinização” do homem.

A liberdade e a felicidade do “homem máquina” no terceiro milênio.

A literatura inglesa do século XX produziu duas utopias famosas e extremamente importantes. Quem não leu o “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley e “1984” de George Orwell?

No entanto, a escrita de Huxley data de 1930 e o de Orwell de 1948.

George Orwell foi absolutamente honesto em afirmar que tanto Huxley quanto eles mesmo haviam partido de Zamiatin, aliás, “bebido em Zamiatin”.

A primeira edição do livro foi uma tradução inglesa, publicada em Nova Iorque em 1924. Na URSS, “Nós”, teve sua edição proibida até a Perestroika, uma censura de quase 70 anos! Os soviéticos não haviam percebido que “Nós” não eram necessariamente os soviéticos, mas o homem num sistema global totalitário e governado pela tecnologia!

A grande temática do livro é o dilema entre a Felicidade versus Liberdade. Ou seja, o Éden versus a Árvore da-Sabedoria, o conhecimento do bem e do mal.

Não se trata de um ataque ao stalinismo, porque o stalinismo ainda nem existia, mas é uma antevisão brilhante dum sistema que quis dar aos homens a Felicidade (a Organização) em troca da Liberdade (“que é sempre erro, crime, desorganização, sentimentos, dionisíaca”).

Para homens e mulheres sujeitos à «selvagem condição de liberdade», a mensagem de felicidade, de organização e exatidão em que vivem os súditos do Benfeitor e do Estado Único lá pelo fim dos anos 2.800. E mais, o homem não dependerá mais do trigo, da terra, do gado para viver. Toda sua alimentação, como para toda máquina, virá do petróleo!

Um Libertador que não resistiu à tentação de encerrar os povos que libertou dentro dos “Muros Inabaláveis da Verdade” para poupá-los à dor e ao contágio dos vírus do erro, da diversidade.

Sem dúvida inspirado por Dostoievski, a liberdade leva frequentemente os humanos a suspirarem pelas algemas. Mas em “Nós”, o vírus da revolta sobrevive, sob o comando de uma mulher!

Uma breve resenha.

“Nós” narra a história de um “Estado Único, de homens que livremente aniquilaram sua liberdad, para tornarem-se peça de uma Máquina, a do Benfeitor, e em troca, ganhavam uma vida previsível, toda estruturada e sem emoções e maiores necessidades.

O Estado Único era uma autocracia ( o Benfeitor), disciplinada e totalmente controlada, onde cada momento era vivido de acordo com uma programação fixa, numa cidade de casas de vidro (onde tudo o que um indivíduo faça é visível, já que nessa época inexistiam as câmaras e televisores para controles), onde tudo era regido pelos horários, onde até o amor se fazia em dias e horas certas com parceiros que se auto escolhiam ( e somente nesses momentos permitia-se o uso de uma cortina, durante uma hora e meia). Mas era absolutamente proibido engravidar sem autorização do Estado.

O Estado Uno, por seu lado, é governado pelo Benfeitor, eleito anualmente, sempre em assembleia popular, por absoluta unidade.

Policialesco, o estado possui os seus Guardiões, que se infiltram em todos os lados e que conduzem seus carros voadores acima da massa encantada. Já a “Máquina do Benfeitor” fica em um local público, onde os desvios são castigados com execução sumária, ao som de versos dos poetas do regime.

Os personagens são conhecidos exclusivamente por número e letras, Homens, ímpares, mulheres, pares, fixadas aos pescoços, por meio de uma placa-relógio de ouro. Cada letra, uma simbologia, os números pares para as mulheres, os ímpares, homens.

O personagem principal é D-503, um matemático e construtor do “Integral”, um foguete destinado a partir ao espaço para disseminar os conceitos do Estado Único, integrando e submetendo povos desconhecidos, que porventura vivessem em estado “primitivo de liberdade”. Aprenderiam a viver apenas pela razão e serem felizes! As páginas escritas com o título de Nós, por D-503, destinavam-se a essa propaganda, antes que ele se deixasse envolver por uma “mulher selvagem”, I-330.

Foi, a partir deste envolvimento, que o raciocínio matemático de D-503 abriu espaço para a descoberta de sua identidade individual, seu eu!  Apavorado com a descoberta, procura um médico e descobre que está profundamente doente, pois havia-lhe nascido uma alma! Uma doença que pensava ser incurável, porque também começou a sonhar e a se perguntar: Quem sou eu? Ou, ainda, quem são eles, os amigos de I-330?

I-330 o havia apresentado aos habitantes, separados por um muro de vidro eletrificado que permaneceram fora do Estado Uno. Serão eles a “metade que perdemos? ”, a metade irracional que sente? Sem dúvida, a metade que vivia fora do programa e das linhas retas que formavam o Estado Uno.

Na verdade, a líder da revolução deseja usar o comandante da nave “Integral” para evitar a disseminação do Estado que ela e outros revolucionários desejam destruir.

No Dia da Unanimidade, quando a Voz pergunta se todos estão de acordo com a continuidade do Benfeitor, todos levantaram as mãos, inclusive D-503. Quase todos, porque a heroína I-330, o poeta R-13 e mais os rebeldes levantam as mãos pela não continuidade do Benfeitor, eram contra. Estava decretada a rebelião e o tumulto tomou conta do lugar.

Os rebeldes foram presos ou morreram lutando. A rebelião foi derrotada, mas as lutas continuaram na Zona Oeste da cidade. Muitos conseguiram alcançar o outro lado da Muralha Verde, o exterior.

D-503 e I-330 também foram presos e punidos de maneiras diferentes. D-503, que pensava que sua doença da alma era incurável, errou porque o Departamento de Medicina encontrou a cura para seu mal. Ele e outros números foram presos, e deles se extirpou do hipotálamo a capacidade cerebral de imaginar.

Ele dirige-se, então, ao Benfeitor e entrega I-330, que foi levada à câmara de tortura. Mesmo torturada, não revelou nada. Não disse uma palavra. Em seguida, foi executada.

Nunca existirá a última revolução.

Como encerramento, vamos reproduzir um diálogo entre D- 503 e a revolucionária I-330, o que permite uma brecha de esperança na distopia de Zamiatin:

— “Isso é impensável — respondi, sobressaltado (D-503). — É absurdo. Não vês que estás a preparar uma revolução?

— Uma revolução, sim. Mas porquê absurdo? (I-330)

— É absurdo porque não pode haver revolução nenhuma. Porque a nossa revolução — sou eu que o digo e não tu — foi a última. Não pode haver mais nenhuma revolução. Toda a gente sabe que…

— Meu menino, tu és matemático — tornou-me ela, fazendo com o sobrolho ângulos agudos de escárnio. —És até mais, és filósofo- -matemático. Vamos: diz-me o último número.

— Que é isso? Não… não percebo. Que último número?

— Ora essa! O último, o supremo, o maior de todos os números.

— Isso é absurdo e se o número dos números é infinito, que número é que tu queres que seja o último?

— E que revolução é essa que tu dizes ser a última? Não há última revolução. As revoluções são infinitas em número. A última revolução é coisa de crianças. O infinito assusta as crianças e é necessário que elas de noite tenham um sono descansado…

— Mas, pelo Benfeitor, que sentido… que sentido é que há em tudo isto? Que sentido faz, se toda a gente é feliz?

— Suponhamos… muito bem, suponhamos que é verdade. E depois? O que é que vem depois?

— Que engraçado! A pergunta é extremamente infantil. Conta-se uma história a uma criança, conta-se tudo, e mesmo depois de se acabar, elas perguntam sempre: «E depois? E por quê? »

— As crianças são os únicos filósofos ousados, responde I-330, e os filósofos ousados são todos necessariamente crianças. E não podemos deixar de fazer a pergunta que fazem as crianças: « E depois? »

— Depois, não há mais nada. Acabou-se. Por todo o universo, em todo o lado, há um fluxo uniforme de…

— Ah… Uniforme, em todo o lado! Aí está ela, a entropia… A entropia psicológica. ”

“Nós ”é um drama imperdível por ser atual, como todo clássico permite interpretações ao longo do tempo, sempre se refazendo e ajudando-nos a lutar contra própria a distopia.

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