Enquanto no final de tarde de 11 de dezembro de 1910, Noel Rosa nascia em Vila Isabel, a Lapa com seus casarões antigos e cinzentos acordavam da sonolência diurna de pequenos comércios e de hotéis barato. Era chegado o momento de seus bares, restaurantes e cabarés iluminarem aquele bairro do Rio boêmio que fervilhava. E como fervilhava!!!
O largo da Lapa tornava-se praticamente intransitável, todo mundo bebendo, cantando e dançando, mesas nas calçadas, alegria, alegria, mas com todo respeito, uma beleza! Ponto de encontro obrigatório de boêmios, intelectuais e artistas, a Lapa possuía também suas Musas, e que fabulosas musas! As cocotes que viviam nas diversas “pensões imperiais”, como a da gorducha Madame Chouchou, saracoteavam em busca de admiradores e enfeitiçados.
Parto difícil, Noel Rosa nasceu à base de fórceps, e como resultado teve uma atrofia do maxilar inferior, deformidade que o atormentaria toda a vida.
Em 1928, ele termina o curso secundário no Colégio São Bento, tendo como colegas de turma de Lamartine Babo e Augusto Frederico Schmidt. Que belíssima companhia para um poeta e músico! Entende-se porque, ao invés de seguir com os estudos, Noel funda seu primeiro grupo musical, “O Bando dos Tangarás”.
Em 1930 foi matriculado quase que à força pela mãe na Faculdade de Medicina, mas por mais que a mamãe se esforçasse, Noel frequentaria a arte de Epidauro por apenas dois anos. Afinal, “prefiro ser um bom sambista a ser um mau médico”.
A mãe se desespera com o filho e esconde suas roupas de boemia. Graças e esse gesto materno, Noel compõe seu primeiro grande sucesso musical, “Com que roupa”. Afinal, tinha um compromisso para um samba de roda. Despois de compor, pulou a janela com a roupa de casa e a vila na mão.
Nos sete anos que ainda viveria compôs e musicou mais de duas centenas de músicas, muitas delas magistrais, foi o nascer do samba moderno pós- Sinhô, das modinhas carnavalescas e do samba-canção. Sempre, com pouco dinheiro executou seu próprio enredo: “O samba, a prontidão, e outras bossas/ São coisas nossas… são coisas nossas.”
Nosso mais genial compositor popular inspirou-se principalmente no cotidiano carioca das ruas da Lapa . Ademais, louvou em diversas composições o bairro em que nascera e viveu: Vila Isabel. Em 1935, nasce o “Feitiço da Vila”.
Desde a fuga da Faculdade, trocara o dia pela noite, amante da madrugada e de mulheres, muitas mulheres! Dentre suas maiores amigas estava Araci de Almeida; saiam juntos pelos botecos da Lapa para “tomar cerveja e comer batata frita, às vezes no bar do Alemão”.
Ademais da deformidade mandibular, outro problema, mais grave, o acompanha desde a puberdade: a tuberculose. Alimenta-se mal, sua mastigação é péssima. Quando as crises surgem, refugia-se em Nova Friburgo.
Foi num cabaré da Lapa, o Apolo, que em junho de 1934, ele conheceu uma de suas maiores paixões: a dançarina Ceci, a quem dedicou “Último desejo” e “Dama do cabaré”.
Figura presente em quase toda noite lapiana, Noel se encontrou muitas vezes com Agildo Barata, San Tiago Dantas, Jorge Amado, Cândido Portinari, Villa-Lobos, Sergio Buarque de Holanda, Mário de Andrade, enfim, o Brasil intelectual, artístico, moderno!
Num prédio ao lado do Beco das Carmelitas, morava Manuel Bandeira. “Beco das minhas tristezas/Não me envergonho de ti/ Foste rua das mulheres? Todas são filhas de Deus”.
No entanto, não somente intelectuais, artistas e boêmios circulavam pelo bairro. Os malandros também rufiavam pelas ruas da Lapa; a coragem e a perícia no manejo da “pastorinha” (navalha) eram atributos para a fama e o respeito pessoal. “Madame Satã”, um destemido e respeitado homossexual, foi o mais famoso deles. Cozinheiro, garçom, travesti e estrela do rebolado, segurança em casa noturna, passou por várias prisões desde que, em 1928, matou um policial que o desacatara. Malandro não se deixava desacatar e bandido era bandido, polícia, polícia.
Em suas Memórias, “Madame Satã” traçou um quadro do bairro: “Minha querida Lapa sempre me recebeu de braços aberto… Fiz amizade com Noel Rosa, Heitor dos Prazeres, Cartola, Nelson Cavaquinho, Chico Alves. Na noite e no mundo dos bordéis havia muitos viciados em tóxicos que definhavam, morrendo aos poucos nos braços da cocaína e outras drogas… E compravam mesmo era nas farmácias. Tinha ópio, cocaína… Enquanto a Pensão da Lapa cobrava 1,100 reis por uma cerveja, as farmácias cobravam 2,000 reis por 5 gramas de coca e uma ampola de heroína, 1,500.”
Em 1934, após a paixão por Ceci se apagar, Noel casou-se com a sergipana Lindaura Martins. Em 1935 compôs o imortal “Conversa de botequim”, ao lado da mulher, sua nova paixão.
Chega o ano de 1937. A aliança de Getúlio Vargas com a hierarquia militar e com as oligarquias regionais criou as condições para um golpe político com a implantação da ditadura. A polícia da ditadura do Estado Novo decide exterminar violentamente a baixa prostituição do Distrito Federal. Fecha, então, todos os bordeis da Lapa!
Para os donos do poder interessava a expansão dos negócios com a abertura dos Cassinos de luxo que em breve seriam inaugurados; o jogo passa a organizado com muito show, vedetes e muito, muito dinheiro. Logo, o polo noturno que a Lapa representava teria de entrar em vertiginosa decadência para que o mundo dos cassinos-hotéis surgisse. E foi isto o que aconteceu.
No mesmo ano em que a velha Lapa foi assassinada pela ditadura Vargas, em 1937, antes de completar 27 anos também falece em crise de hemoptise o poeta, compositor e sambista Noel Rosa, encerrando uma fase de nossa História artística. Como tantos outros, entretanto, um de seus últimos sambas, jamais será esquecido:
“Último desejo”:
“Nosso amor que eu não esqueço/
E que teve seu começo/
Numa festa de São João/
Morre hoje sem foguete/
Sem retrato e sem bilhete/
Sem luar, sem violão”.
E com a Lapa e Noel morriam também o espírito de uma época! O espírito da boemia carioca!