No Brasil pós- Covid, as Utopias ainda encontrarão seu lugar?

Utopia possui como significado lugares ou épocas não presentes, mas que podem ser construídos no futuro. Utopia se associa geralmente a imagens de sociedades fundamentadas em leis mais justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar do ser humano na coletividade.

Distopia, seu oposto, se refere lugares ou épocas em que se viva sob condições de extrema opressão, desespero ou privação. Sociedades distópicas são regidas pelo autoritarismo anárquico, sob condições socioeconômicas e ambientais degradadas. A tecnologia utilizada pelo Estado ou por corporações econômicas se tornam, então, ferramentas de opressão, de destruição de parâmetros essenciais como verdades- mentiras, pela manipulação dos seres e pela criação de dóceis e acovardados rebanhos humanos.

Precisamos acreditar que mesmo num país desigual, injusto e desagregado socialmente como o nosso, quando e se a pandemia provocada pelo Covid 19 for vencida, imaginar construções onde a solidariedade entre os homens seja retomada, o Estado se reestruturado em função das necessidades das maiorias, quando a ciência e a razão voltarão a iluminar corações e mentes. Isto, hoje, soa a uma Utopia! E como Utopia, mesmo que sejam cada vez mais remotas suas possibilidades de realização, elas devem permanecer em nosso horizonte e por elas deveremos combater.

Para tanto, deveremos preparar nossos espíritos emoldurados pela dor e pelo sofrer, para uma árdua luta contra as correntes obscurantistas, destruidoras da civilização; contra a sociedade totalitária e desumanizada, Distópica, que nos tentarão impor!

Queremos, nesse ensaio, visitar alguns trabalhos literários distópicos, que na expressão do The New Yorker ,“são ficções, sim; irrealidades, jamais!”.

Como será o Admirável Mundo Novo, tomado por empréstimo dos lábios de Próspero, protagonista de “A Tempestade” de Shakespeare, que será construído após a Peste que nos afoga?

Antes de chegar ao título de “1984”, George Orwell dera a seu livro o nome de “O último homem na Europa”. Era um apelo e uma advertência em favor de uma Europa socialdemocrata, capaz de resistir tanto ao sistema totalitário do stalinismo russo quanto à desumanidade dos financistas e de uma tecnocracia controladora, de uma hipnose de massas por meio da mídia, o perigoso rumo que para Orwell era o da sociedade norte-americana.

“Meu romance NÃO (sic) é um ataque ao socialismo… e sim uma mostra das perversões a que está sujeita uma economia centralizada e que já se concretizaram tanto no comunismo quanto no nazi-fascismo… O cenário do livro é ambientado na Inglaterra (sob a alcunha de Oceania) para ressaltar que os povos de língua inglesa não são inatamente melhores que quaisquer outros e o totalitarismo se não for combatido, pode triunfar em qualquer lugar.”

Orwell escreveu seu profético manuscrito em 1948, tendo apenas invertido seu algarismo, pois é no dia 4 de abril de 1984 que o anti-herói do romance, Winston Smith, faz a primeira observação em seu diário clandestino.

Conta a história de Winston, apagado funcionário da “Oceania” (membro pertencente ao Partido Externo, à periferia do sistema) e de como ele parte da indiferença à revolta, motivado tanto pelo amor por Júlia, quanto incentivado por O’Brien, (um membro do Partido Interno, a burocracia que detém o poder e que no caso atua como agente provocador) com quem Winston simpatiza.

E Winston acaba por descobrir que a própria revolta é fomentada pelo Partido no poder, pois as guerras, os combates e o ódio devem ser sempre alimentados para que o Poder permaneça em suas mãos!

“1984” encarna um mundo no qual a realidade tornou-se obsoleta e a personalidade, um crime. “Depois de 1984, quais são os futuros para a liberdade pessoal, a autoridade política e a cultura cívica?”, pergunta G. Steiner.

Ora, toda noção do “eu” como algo precioso e inviolável é cultural, produto do humanismo, da era liberal. Acontece que num mundo distópico e absolutamente autoritário, o “eu” não é mais um valor significativo, nem mesmo um valor a ser violado. É o nada!

Foi a partir do final dos anos 1920, com a desilusão trazida pela burocratização do socialismo na U.R.S.S., que começaram a surgir romances e peças teatrais distópicos, “profetizando” sociedades que dissolvem o indivíduo.

Um dos trabalhos pioneiros é uma peça teatral de Maiakovski, “O Percevejo”. O inseto era, ao mesmo tempo, uma praga que tanto incomodava como garantia a humanidade da revolução, em franca e trágica transição para o burocratismo stalinista.

“Cuidado, cidadão” clama um bombeiro, “incêndios são causados por sonhos mal sonhados”. “E para que viver?”, “Para um socialismo do futuro?” É um grito de socorro do poeta Maiakovski lançado ao vento, um pathos impossível de encontrar uma luz, a não ser no seu próprio suicídio, o que ocorreria pouco tempo após a montagem da peça “O Percevejo”, realizada por seu parceiro Meyerhold, que terminaria preso, torturado e assassinado pela burocracia stalinista.

Nos anos 1920, também vem à luz a obra prima de outro russo, Eugeni Zamiatin, denominada “Nós”, uma sátira futurista também distópica, que geralmente é considerada um dos berços do gênero. O livro leva a extremos os aspectos mais totalitários e, ao mesmo tempo o conformismo da sociedade industrial moderna, descrevendo um Estado que acredita que o livre-arbítrio é a causa da infelicidade e que a vida dos cidadãos deva ser controlada por regras fixas com precisão matemática. Na visão de Zamiatin as casas, como quase tudo o mais no futuro distópico, seriam de vidro e outros materiais transparentes; “quando todos os seres estão visíveis, a privacidade é proibida, e um cidadão é o vigia do outro”.

Após o surgimento do Nazi fascismo e da Segunda Guerra, Orwell disse que “iria tomar “Nós” como modelo para seu próximo romance”, “1984”. Disse ainda que acreditava que outro importante romance distópico, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, escrito em 1932 “deve ter sido parcialmente derivado” também de “Nós”.

Nessa esteira, surge“Fahrenheit 451”, outro romance distópico do pós-guerra, fortemente inspirado pelo terror nazista, escrito por Ray Bradbury. O romance apresenta um futuro onde todos os livros serão proibidos, opiniões próprias consideradas antissociais e hedonistas, e o pensamento crítico, suprimido. O personagem central, Guy Montag trabalha como “bombeiro” (o que na história significa “queimador de livros”). O número 451 é a temperatura em graus Fahrenheit da queima do papel.

Retornando a “1984”, o “estado único” de “Nós” se converte em “Oceania”, o Benfeitor, no “Grande Irmão”, os Guardiões serão a “Polícia do Pensamento” orweliana. Winston Smith é oficialmente 6079 Smith W..

Tal qual em “Nós”, a questão da sexualidade autêntica em oposição à programada é central. As moradias de vidro têm o mesmo simbolismo das teletelas de Orwell, precursoras de Google e outros localizadores midiáticos.

A tentativa malograda de Winston de preservar sua individualidade, de conhecer e lembrar o passado histórico representa uma recusa europeia tanto do totalitarismo stalinista quanto da cultura anti-histórica de massas do capitalismo americano.

Orwell, em determinado momento de “1984”, parece se referir ao ano 2021 em que vivemos. “Já existem pessoas que achariam escandaloso falsificar um material científico, mas não veriam nada demais falsificar um fato histórico. É no ponto em que se cruzam a literatura e a política que o totalitarismo exerce sua máxima pressão sobre o intelectual.”

Nessa ideia de uma esquizofrenia sistematizada, imposta e controlada pelo Estado, vemos a origem do “Duplipensar”.

Orwell acreditava que o simples ato de escrever seria a última possibilidade de resistência humana. A própria política, escreveu, “é um amontoado de mentiras, evasivas, loucuras, ódios e esquizofrenia.”

E justamente porque todas as questões são políticas, esse amontoado ameaça invadir e extinguir a vitalidade consciente e responsável de todo discurso humano.

O termo “elemento” (tão utilizado pelos nossos policiais), ao designar uma pessoa pobre, negra, faz com que ela se torne uma “não pessoa”; as inversões e mistificações da “Novilíngua” em que “guerra é paz”, “liberdade é escravidão”, “ignorância é poder”, tocam os pontos nevrálgicos de nossa própria política, personificada na distopia da mídia bolsonarista.

A diluição estilística de mentiras apaga ou falsifica todos os textos que possam de alguma forma lançar dúvidas sobre a linha política gangue dominante.

Basta abrirmos nosso Whatsap para nos depararmos com o ‘falafacil’ de “Novilíngua”.

Estar dentro do sistema significa não pensar, não precisar pensar! Ortodoxia é inconsciência! Ou o analfabetismo funcional com a tela dos celulares defronte os olhos 24 horas por dia!

A terceira parte da obra de Orwell, denominada Utopia, consiste na tortura aplicada a

Winston, que segue sendo “exemplar” no mundo da barbárie:

“O cotovelo! Ele tinha caído de joelhos, quase paralisado, agarrando o cotovelo atingido com a outra mão. Tudo explodira numa luz amarela, inconcebível que um único golpe pudesse causar tanta dor! A luz clareou e ele pode ver o guarda acima rindo de suas contorções. Uma pergunta pelo menos estava respondida. Nunca, por nenhuma razão do mundo, você iria querer que aquela dor aumentasse. Você só poderia querer que ela parasse. Nada no mundo era mais terrível que a dor física. Diante da dor não existem heróis, não há heróis, pensava ele sem cessar enquanto se retorcia no chão, agarrando inutilmente o braço esquerdo mutilado.”

“Houve uma violenta náusea que o convulsionou por dentro, e ele quase perdeu a consciência. Tudo havia escurecido. Por um instante ficou insano, um animal a gritar.”

No mundo de “1984” o Estado Leviatã engoliu o homem. Os relacionamentos humanos, quando ocorrem, são clandestinos, quando sobem à superfície são reprimidos. O modelo de estado autoritário, totalitário, encontra a sua forma “pura”, essencial. Um pesadelo no qual a política substituiu a humanidade e o estado sufocou a sociedade, na medida em que qualquer coisa pode ser feita com os homens, com suas mentes, com a história e com as palavras.

A realidade não é mais algo a ser admitido, vivenciado ou mesmo transformada: ela é fabricada de acordo com a necessidade da elite dominante.

Os autores das distopias compreenderam que numa sociedade decadente em que os valores se esgarçaram, o caminho da democracia apodrecida para uma ditadura constitui apenas um passo.

Orwell introduziu, setenta anos atrás, o significado do “gabinete do ódio”, ao estilo dos Bolsonaro e seus milicianos de hoje. A manutenção do estado de ódio permanente, a eleição do inimigo do ano, do mês, do dia, da hora; e o ódio como indispensável para a eleição de inimigos, sempre renováveis.

“Não estamos interessados no bem estar alheio; só estamos interessados no poder”, diz Brian, o representante do partido do poder de Oceania.

Nestes escritos sentimos o odor, o odor repugnante e nauseabundo dos dominados e dos que nada significam socialmente. Genial em Orwell, na “Oceania” a esmagadora maioria vive em casebres, a miséria de milhões que foram excluídos pelos poucos que a tudo têm direito. E os trabalhadores, os “proles”, os proletários? Na Oceania, o Estado não os teme. Eles se tornaram, salvo exceções, desmoralizados como indivíduos e absolutamente desiludidos enquanto classe social.

Orwell pintou a Londres do pós-guerra, com suas mansões vitorianas e cortiços apodrecidos. E nos trouxe uma das imagens mais fortes do Brasil dos favelados dos anos 2020!

Até que ponto um regime terrorista pode suprimir ou alterar radicalmente os impulsos fundamentais do homem? Existe algo na natureza humana que nenhuma quantidade de terror ou propaganda pode destruir?

Orwell, duvida, acha que não! “Se quiser uma imagem de futuro imagine uma bota pisoteando um rosto humano – para sempre.”

Entretanto, para enfrentar o mal, a banalização do mal absoluto, temos que reconhecê-lo e a literatura distópicas é um importante instrumento. Detê-lo significa mantermos sempre no horizonte uma esperança de sociedade utópica, unindo-nos na defesa do humanismo, dos valores civilizatórios, da democracia social. Mesmo que estes valores, hoje, nos pareçam apenas Utópicos!

Afinal, ouçamos Maiakovski:

“Escutai! Se as estrelas se acendem

será por que alguém precisa delas?

Por que alguém as quer lá em cima?

Será que alguém por elas clama,

por essas cuspidelas de pérolas?…

Escutai, pois! Se as estrelas se acendem

é porque alguém precisa delas.

É porque, em verdade, é indispensável

que sobre todos os tetos, cada noite,

uma única estrela, pelo menos, se alumie”.

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