“Macunaíma”, obra-prima escrita por Mário de Andrade, em 1928, trabalho cosmogônico, é a rapsódia poético-folclórica do homem e da natureza viva do Brasil.
Rapsódia composta de uma colagem de lendas, mitos, tradições, religiões, falares, hábitos, comidas, lugares, fauna, e de nossa flora.
Livro estonteante, em que o mágico e o lógico se misturam, onde não existe fronteira entre o natural e o sobrenatural. A cultura indígena que nos surge através de figuras míticas e suas de lendas, amplifica-se com a cultura afro-brasileira. Afinal, nossa cultura é absolutamente multifacetada, riquíssima!
“Macunaíma, “herói de nossa gente”, nasceu no “fundo do mato-virgem”. Ele era “preto retinto e filho do medo da noite”. Quando criança, “fez coisas de sarapantar” e ficou os primeiros seis anos de vida sem querer falar, pois sentia muita preguiça. Contudo, quando “deram água num chocalho pra ele”, Macunaíma passou a falar como todo mundo”.
Somos um país com multiplicidade de etnias, multirracial. Nosso herói nasce negro, embranquece, adquire olhos azuis. Seu irmão nasce negro, avermelha-se, “índiando-se”. O terceiro irmão permanece negro, de mãos avermelhadas. Já quando viaja até a cidade das máquinas-homens- máquinas, São Paulo, Macunaíma se maravilhará com as Manis, as branquinhas filhinhas da mandioca, descendentes da italianada.
Realizando um profundo desejo de conhecer a realidade brasileira fora do eixo Rio- São Paulo, no período de 1924 a 1928, o intelectual realizou viagens “étnicas” a Minas Gerais, ao Amazonas e ao nordeste. Tornou-se, então, um estudioso dos regionalismos, do imaginário e das tradições populares. “Não estou fazendo regionalismo. Trata-se duma estilização culta da linguagem popular da roça, como da cidade, do passado e do presente. ” Desta estilização nascerá a história de nosso herói.
Em sua busca do caráter nacional, Mário encontrou um “herói sem nenhum caráter”, travestido pelo nome de Macunaíma. Essa ausência de caráter não se coloca exclusivamente desde um ponto de vista ético, mas como entidade psíquica permanente, que se manifesta em tudo e por tudo, na vida, na História, na natureza, no bem e no mal do ser humano denominado “brasileiro”.
Reforça Mário ainda em carta ao amigo Manuel Bandeira: “Macunaíma não é símbolo do brasileiro. Ele vive por si, porém possui um caráter de não ter caráter”.
“Ai, que preguiça!”. Como na língua indígena o som “ai que” significa “preguiça”, Macunaíma seria duplamente preguiçoso.
Macunaíma surge como um símbolo, que está num tempo que é passado e é presente, que é norte e é sul do Brasil, talvez mesmo, latino-americano.
“Macunaíma ora é corajoso, ora covarde, nada sistematizado em psicologia individual ou étnica. Avança e vence o monstro Capêi e depois foge de uma cabeça decepada, que vem a se tornar sua escrava e da qual foge…. Avança para o público na Bolsa de Valores e depois fica com medo, é preso e, novamente, foge. “Me acudam senão eu mato”… não tem coragem para moçar outra icamiaba e parte sofrendo de amor”.
“Macunaíma é uma contradição em si mesmo, o caráter que demonstra num capítulo, desfaz em outro. ”
Ainda o próprio Mario de Andrade a respeito de sua obra:
“O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim, porém a minha conclusão é (uma) novidade pra mim porque junto tirada da minha experiência pessoal palavra caráter não determina apenas uma realidade moral, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior, no sentimento na língua da História da andadura, tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os iorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo eminente, ou consciência de séculos tenha auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem um rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas, ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. Dessa falta de caráter psicológico, creio, otimistamente, deriva a nossa falta de caráter moral. Daí nossa gatunagem sem esperteza (a honradez elástica / a elasticidade da nossa honradez), o desapreço à cultura verdadeira, o improviso, a falta de senso étnico nas famílias. E sobretudo uma existência (improvisada) no expediente (…)”.
E dizemos nós: desta falta de caráter psicológico que, a partir das elites, permeia todos os estratos sóciais, advém “nosso jeitinho malandro”.
Segundo Cavalcante Proença, Macunaíma encarna diversos heróis da literatura popular brasileira. Não tem preconceitos, não se prende à moral de uma época. Dessa maneira, concentra em si próprio todas as virtudes e defeitos que nunca se encontram reunidos em um único indivíduo. Por isso é excepcional.
A cosmogonia lendária e mitológica de nossas culturas primevas, indígena e afro estão presentes em toda a força em toda a rapsódia:
“Macunaíma, herói e autodenominado “Rei do Mato Virgem”, topou certa vez uma cunhã dormindo e por ela se apaixonou. Era Ci, a Mãe do Mato. Das indelicadezas de Ci surge o grito do herói: “Me acudam sinão eu mato! ”… Afinal se amam tanto na rede que Ci traçara com seus próprios cabelos que o herói suspira enfadado:
“Ai que preguiça!…”
Ao subir até o céu num cipó, toda enfeitada, Ci se transforma numa estrela, a beta Centauro.
Macunaíma, ciumento, rezará ao “Pai do Amor”, Rudá:
“Tu que estás no céu…
Faz com que minha companheira,
Por mais companheiros que arranje,
Ache todos frouxos”.
Ao céu também subirão, metamorfoseadas, a cabeça decepada pelo herói do monstro Capei, que se transformará na Lua, assim como o próprio Macunaíma, ao final da história, perneta como Saci-Pererê, subirá ao firmamento, como a constelação da Ursa Maior.
Macunaíma está fora do espaço e do tempo! Por isso pode realizar aquelas fugas espetaculares e assombrosas em que da capital de São Paulo foge para Ponta do Calabouço, no Rio, e logo já está em Guajará-Mirim, nas fronteiras de Mato Grosso e Amazonas. Fugas são motivos frequentes, uma revolução espacial em absoluto desprezo pelas convenções geográficas.
Este “ausentismo” de enraizamento desregionalizou o mais possível a criação de Macunaíma, ao mesmo tempo em que conseguiu o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea, dentro de um conceito étnico geográfico.
O motivo das viagens e fugas derivou, na narrativa, da perda de um talismã, uma pedra, a muiraquitã:
“O herói Macunaíma perdeu sua muiraquitã e ficou “desinfeliz”. Um tracajá comeu o amuleto, e “o mariscador que apanhara a tartaruga tinha vendido a pedra verde pra um regatão peruano se chamando Venceslau Pietro Pietra”. Assim, este, o gigante Piaimã, se tornou o grande inimigo do herói, que decidiu ir a São Paulo para enfrentá-lo e ter de volta o talismã.”
“Venceslau Pietro Pietra “morava num tejupar maravilhoso rodeado de mato no fim da rua Maranhão olhando pra noruega do Pacaembu”. Contudo, o herói Macunaíma não estava sozinho, seus irmãos, Jiguê e Maanape, estavam com ele, para enfrentar não só o gigante, mas também sua companheira, Ceiuci”.
Ao final da peleja, o herói vence o gigante Venceslau fazendo-o naufragar numa enorme cumbuca com macarronada ao “diente”. E, antes de morrer, Paimã ainda grita: “Cadê o queijo? ”
No epílogo da obra “Macunaíma”, o narrador observador se transforma em personagem e afirma que a história foi contada a ele por um papagaio. Dessa forma, aquele apenas está narrando uma história que lhe foi contada. Portanto, o observador acaba sendo o papagaio. Por acaso, teria sido o mesmo “papagaio” que transmitiu a Villa Lobos as “entidades musicais” de nosso folclore?
Coube a esta obra magistral, como um clássico autêntico, construir veredas para diferentes escritores que sucederam a Mario de Andrade, dentre eles, sem dúvida, Guimarães Rosa.
Afinal, Macunaíma, o herói sem caráter, arrisca um diagnóstico definitivo dos males do Brasil: “POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA”.