Constitui um tema muito interessante e ainda pouco explorado, o entendimento dos processos de simbolismo e mitificação que se
desenvolveram na Rússia, a partir de 1917, o que, de maneira apenas superficial, é o foco desse rápido ensaio.
O primeiro e mais importante ícone masculino tornado símbolo após a Revolução foi a figura do fundador do Estado Soviético, Lênin. À sua imagem muitas vezes se associava um tríptico: Lênin, Marx e Engels.
Logo após 1926, a esse tríptico associou-se outra imagem, a de Stalin. Dispuseram-se Marx e Engels num lado e Lênin e Stalin*, no outro. E essas figuras-mito permanecerão unidas como emblemáticas da Revolução e do Povo Soviético por 30 anos, até 1956.
O que bastante gente desconhece ainda hoje é o fato de que existiu também uma figura feminina escolhida para ser a mulher-símbolo do processo revolucionário. Ela existiu e permaneceu por quase uma década.
Na iconografia da Revolução de Outubro ela é Larissa Reisner, a mulher que pousa sempre linda nas fotos e cartazes, e ela o era realmente, com um sorriso confiante e o olhar claro para o futuro, vestindo um longo vestido vermelho, muitas vezes alçada ao convés de um navio em chamas. A mulher símbolo da Revolução perdurará como tal até o final da década de 1920.
Larissa, polonesa de nascimento, era filha de aristocratas. Ainda muito jovem, ligou-se a grupos revolucionários russos no exterior. Depois que os Reisner passaram a residir em Petersburgo em 1905, Larissa cursou com o brilhantismo de primeira aluna as Faculdades de Direito e de Filologia.
Nesta época começou a escrever para jornais libertários; travou correspondência literária com Gorki, e ingressou no Partido Comunista em 1917.
Após a Revolução, trabalhou nos primeiros tempos com Anatole Lunachasky , Comissário Político para a Educação, no Instituto Smolny, tendo sido a responsável pela catalogação dos tesouros artísticos da antiga Capital Imperial.
Casa-se, então, com o dirigente bolchevique Fiodor Raskholnikov e atua como Comissária Política na Guerra Civil, lado a lado com o marido, que dirigia a Esquadra Vermelha do rio Volga. Daí a imagem do navio em chamas associado à sua figura.
Serviu também ao Exército Vermelho sob as ordens diretas de Trotski, de quem se tornou amiga. Ele se referiu em suas memórias a Larissa como a “Palas revolucionária: uma deusa do Olimpo, que sulcou os céus da Revolução como um meteoro em fogo”.
É de autoria de Larissa o livro “Outubro”, escrito e publicado em 1920, e que teve a honra der ser considerada como a obra literária mais adequada ao espírito social do seu tempo. O livro do americano John Reed, “Dez dias que abalaram o Mundo”, tão famoso no resto do mundo, não fora muito bem aceito pelo Partido e praticamente não foi difundido na URSS.
Uma vez terminada a Guerra Civil, Larissa lançou-se na luta proletária da Alemanha, onde, militou na reestruturação do Partido Comunista Alemão, após a desastrada deflagração da revolta espartaquista de 1919. Graças a seus dotes literários deixou livros e travou amizade com intelectuais como o poeta Reiner Maria Rilke.
Retornou à U.R.S.S. em 1921 e em dois meses partiu junto com a primeira embaixada soviética que se estabeleceu no conflituoso Afeganistão, disputado à época aos ingleses . Uma de suas funções era a de ser agente de informações junto a Tcheká, dirigida por Felix Dzerzinski.
Retornando à Alemanha em 1923, agora como representante do Comintern ( III Internacional Comunista), foi uma das responsáveis por convencer os líderes comunistas alemães da necessidade de isolarem-se dos socialdemocratas. Publica, então, “As Barricadas de Hamburgo”, e, logo a seguir “Berlim, outubro de 1923”. Por essa época, liga-se sentimentalmente a Karl Radek, membro do Politburo do PCURSS.
Retornando à U.R.S.S. em 1924, rompe seu casamento com Roskolnikov.
Nadiejda Mandelstam, viúva do poeta Ossip Mandelstam, apresentou em escritos que vieram à luz com a glasnost, Larissa como a mulher que soube construir atrás de si a imagem de mito. A própria Larissa assumiu-se perante Nadie: “Se a Revolução Francesa criou seu tipo feminino, por que não a Russa?” Nos escritos de Nadie, esta diz: “Era necessário criar um protótipo e este foi Larissa.”
Larissa era intelectual, educada nos antigos padrões aristocráticos, sabia ser doce quando queria e dura como uma rocha quando acreditava ser o seu dever para com o Partido; militante sempre disponível, linda e desejada, ao mesmo tempo líder e obediente a todas as palavras-de-ordem e disposições partidárias.
Tornou-se uma das primeiras intelectuais defensoras da ortodoxia, a qual viria a sufocar toda e qualquer liberdade de expressão artística nos anos vindouros. Ela atacava literariamente tudo e todos que ousassem inovar fora dos padrões, por exemplo, acusou através do Izvetia o escritor Mikhail Bulgakhov de traição por suas concepções místicas, no artigo intitulado “Contra o banditismo literário”.
Larissa Reisner veio a faleceu prematuramente em Moscou aos 31 anos de idade, vítima de tifo, em 1926. Boris Pasternak, que até a morte de Stalin manteve um comportamento nos limites do alinhamento aos ditames do realismo socialista, dedicou à época um poema à musa morta: “No meu réquiem para Larissa, digo que ela foi, dentre as mulheres, a Primeira da Revolução Russa.”
Por outro lado, coincidentemente com a morte de Larissa, em segredo, Pasternack começara justamente a escrever o livro “Dr. Jivago”, possuindo como cenário de fundo a Revolução de 1917. Este livro somente seria completado e viria a público em 1956, após a morte de Stalin e a ascensão de Kruchev. Seus contemporâneos afirmaram, o que Pasternak jamais negou, que a figura de Lara inspirara-se na Musa da Revolução, Larissa Reisner.
“O que fazia a sua beleza? Era alguma coisa que se podia isolar, mencionar nela? Não, não. Era essa linha simples e certa, inimitável, com que Deus a havia desenhado, para confiá-la à alma de Iuri. cercada por esse traço sublime… Lara é uma obra de arte viva”.
A partir dos anos 1930, todas as fotografias em que apareciam Trotski e Larissa começaram a ser borradas dos arquivos e nenhuma das imagens deles juntos sobreviveu.
Também a imagem da primeira mulher-símbolo da Revolução se esvaneceu. Afinal, até a morte, fora amiga de Trotski, e Stalin ocuparia para si todo o espaço disponível no imaginário popular russo, sem lugar para nenhuma figura feminina.
*Obs.: Ao contrário das imagens de Marx, Engels e Lênin, quase sempre reproduzidas com verossimilhança, a de Stalin, foi sempre retocada**. O georgiano tinha a face profundamente marcada por cicatrizes de varíola e tanto a técnica fotográfica quanto a forte maquiagem se encarregou de alisá-la e rejuvenescê-la. Por outro lado, nas aparições em pé Stalin, que possuía 1,59 m., com o uso de plataformas nos sapatos, parecia um homem por volta de 1,80 m. de altura.**Obs.: O fotógrafo I. Nappelbaum consagrou-se como o mais correto retratista e fundador do realismo socialista em fotografias. Foi dos primeiros a introduzir apuradas técnicas de retocar o rosto de lideres e de eliminar figuras obtidas em flagrantes, quer em fotos ou em películas cinematográficas.