Isaac Babel nasceu em Odessa, cidade onde alguma liberdade e segurança os judeus poderiam desfrutar. Babel era filho de uma família que fugira a pogroms antissemitas em terras dominadas por cossacos. Justamente ele, que na juventude, lutaria clandestinamente ao lado dos cossacos vermelhos, também antisemitas!
Na adolescência, Babel entrou na Escola do Comércio. Além das matérias normais, estudou o teologia e música. Posteriormente estudou Negócios e Finanças, onde conheceu Eugênia Gronfein, sua futura esposa. Nessa época, já eram ambos marxistas.
Em 1915, Babel se mudou para o centro cultural da Rússia, Petrogrado, onde conheceu Máximo Gorki. Tornaram-se amigos e Gorki publicou algumas de suas histórias na revista que dirigia; orientou também o aspirante a escritor que buscasse mais experiência da vida real. E ele buscou! Anos mais tarde, Babel escreveu em sua autobiografia: “O nome por quem possuo maior amor e admiração é o de Gorky”.
Babel, embora seja, reconhecidamente, um dos mais brilhantes representantes do jornalismo literário da geração dos nascidos na década de 1880, teve sua obra ficcional muito prejudicada pelas vicissitudes da vida.
Seu apogeu literário ocorreu nos anos 20, primeiro com a publicação, em 1920, dos “Diários de Guerra”, que, posteriormente produziram o clássico “A Cavalaria Vermelha”, de 1926. Assinalou Martin Berman que um de seus temas centrais do livro é a ideia de que, para ser ele mesmo, o herói tem que aprender não só a enfrentar, mas de alguma forma internalizar seu antieu, dado que tanto o eu quanto sua antítese giram em torno da violência.” Se o ego do autor é um intelectual racional, com natural tendência para a melancolia e introspecção, seu o antieu é o de um homem de ação animalesco, primitivo, irrefletidamente cruel.
Quando o personagem de Bebel na “Cavalaria Vermelha” se integra ao Exército de Budieni, o herói de óculos e estudos é desprezado pelos cossacos e para ser aceito deve praticar alguma crueldade, preferentemente com uma mulher. Ele aceita o desafio em “Meu primeiro ganso”. Mas quando fracassa numa luta por haver-se esquecido de municiar o revólver, um superior o espanca e ele “implora a Deus que lhe dê competência para matar meu semelhante.”
Poucos artistas souberam tratar de modo tão real e tão completo, fragmentos do real como fez o gênio de Babel. Muitos de seus contos em “A Cavalaria Vermelha” são desenvolvimentos de relatos de realidades por ele vivenciadas em guerra. Existe em todos os relatos a franqueza, a turbulência, o tom incontido, angustiado e explosivo da voz do autor.
Diversas dessas histórias foram publicadas na Revista de Esquerda por seu fã, Vladimir Maiakovski. É verdade que a descrição brutal da realidade da guerra lhe angariou inimigos, tais como Budyonny, da burocracia partidária. Contudo, a influência de Gorky garantiu sua publicação, e no exterior, o livro foi um best seller, traduzido para mais de quinze idiomas.
Marxista-leninista desde a juventude, Babel serviu como voluntário na Grande Guerra, depois esteve presente nos combates de 1917 para a implantação do socialismo; liderou a resistência vermelha na cidade de Petrogrado quando esta estava cercada pelos Brancos e pelos Poloneses e o Governo Soviético partira para Moscou; participou de expedições de confisco no campo para trazer cerais para as populações famintas das cidades.
Quando na Guerra Civil juntou-se ao único agrupamento de cossacos que permaneceu no Exército Vermelho, a Cavalaria Vermelha de Budiene, o fez sob uma identidade falsa fornecida pelo Partido Comunista, de tal forma que se evitasse sua identificação como judeu. Com isto evitou o antissemitismo cossaco.
A campanha da cavalaria passou por Galícia, um dos povoados judeus mais cultos da Europa de então. Nas cidades como Chernobyl, Kovel, Brody e na própria Galícia ocorreram assassinatos em massa, incêndios criminosos, estupro, tortura, e a matança de mais de cem mil judeus, principalmente pelas mãos dos Exércitos Brancos e Poloneses. Entretanto, atrocidades também foram cometidas pelos cossacos vermelhos e narradas por Babel.
Um dos personagens de Babel diz: “Isto não é uma revolução marxista, é uma rebelião cossaca”. E ainda: “Sinto muito desgosto pelo futuro da Revolução… Nós somos a vanguarda, mas do que?”
“Por que não consigo vencer minha tristeza? Porque estou longe de minha família, porque somos destruidores, porque avançamos como um furacão, como uma língua de lava, odiados por todos, a vida se estilhaça, estou numa imensa, numa interminável campanha a serviço de fazer nascerem os mortos.”
Nos tempos de Lênin e Lunascharski, havia mais liberdade de expressão dentre os comunistas. Em “A Cavalaria Vermelha”, Babel cria dois personagens prototípicos do futuro.
O primeiro é Gedali, o jovem judeu que se interroga sobre os ideais primevos da Revolução: “Onde está a Revolução que espalharia a alegria? Quero uma Internacional de boa gente. O que eu queria era que toda alma estivesse na lista de prioridades para receber suas rações de comida. Toma aqui, alma, coma e goze os prazeres da vida”.
O segundo personagem é Prishchepas, um oficial vermelho. Ao retornar a sua aldeia que havia sido invadida pelos Brancos, percorre casa a casa de seus vizinhos em busca de utensílios domésticos que haviam pertencido à sua mãe assassinada pelos inimigos. E todas as famílias que haviam se apropriado de algo ele as matava. E depois, incendiava as propriedades. Os Prishchepas são os homens da vingança, das limpezas étnicas, da violência sem limites.
Além de combatente por quase quatro anos, foi o correspondente de guerra mais lido em toda a URSS e suas crônicas e ensaios publicados no “Soldado Vermelho” eram disputadas quando publicadas. Deve-se à sua pena a documentação sobre os horrores inacreditáveis da Guerra Civil, assim como o heroísmo de tantos.
Com o final da Guerra Civil, serviu nos quadros do serviço secreto Tcheka, sob as ordens diretas de Dzerzisnki e na qualidade de tradutor participou de interrogatórios e execuções de contrarrevolucionários. Integrou-se também ao Comissariado para a Educação, onde aportou contribuições para as normas de administração escolar.
Por todos os serviços prestados foi, em meados da década de 1930, condecorado com o título de “Defensor Vitalício da U.R.S.S.”.
Voltando a Odessa, Babel escreveu “Contos de Odessa”, uma série de histórias curtas de inspiração autobiográfica, narrando sua infância na comunidade judaica, no gueto de Moldavanka.
Em 1930, Babel trabalhou na Ucrânia, e foi testemunha da brutalidade do processo de coletivização forçada das propriedades agrícolas. Os kulaks, pequenos proprietários, que haviam sido estimulados durante a crise de fome dos anos vinte a produzir, agora eram expropriados de seus bens e os resistentes, enviados a campos de trabalho forçado. Este foi um dos fatores que fizeram com que Babel se afastasse da vida pública.
Em 1932, após várias tentativas, foi permitida uma visita à sua esposa Eugênia e à filha Natália que viviam em Paris. Babel teve diante de si a decisão de retornar ou não à Rússia. Em conversas e cartas aos amigos expressava o desejo de ser um “homem livre”, mas também o medo de não ser capaz de viver apenas escrevendo.
Em 1933, Babel decidiu-se e retornou a Moscou. Na volta, começou um relacionamento com Antonina Pirozhkova, com quem teve outra filha, Lidya Babel.
Passou a colaborar com Sergei Eisenstein e trabalhou em diversos roteiros para filmes de propaganda soviética.
Foi duramente criticado no Congresso de Escritores Soviéticos, de 1934, o mesmo encontro que estabeleceu a política do “realismo socialista”, por publicar muito pouco. Babel observou ironicamente, que estava se tornando “mestre de um novo gênero literário, o gênero do silêncio.”
Escreveu, entretanto, em 1935, a peça teatral “Maria”, um retrato dos excluídos da sociedade socialista. Foi repreendido diretamente por Máximo Gorky, que retornara à U.R.S.S., por sua “baudelaireana” predileção pela “miséria humana”. Gorky, inclusive, preveniu seu amigo sobre as “consequências políticas” que lhe seriam “prejudiciais”, mas Babel decidiu prosseguir. Programada para ser encenada em no teatro Vakhtangov, a peça foi cancelada pela KGB.
Babel era um velho conhecido da mulher do temido número um da KGB, Nicolai Yagoda. Eram amantes e frequentava saraus literários na casa do casal, dos quais participavam intelectuais e artistas como Eisenstein. Babel não sabia, mas já estava sob vigilância da polícia do Estado.
Na morte de Gorky, em 1936, Babel expressou dúvidas sobre a causa oficial da morte por pneumonia do amigo e chegou a comentar: “Agora eles virão até mim”.
Apesar de sua longa folha de serviços e sua lealdade ao Partido, foi preso após a queda e prisão do temível Nicolai Yagoda. Em maio de1939, por ordem direta de Béria, substituto de Yagoda, Babel foi sequestrado de sua “dacha” em Peredelkino, e apenas pode gritar para a Antonina: “Por favor, deixe a nossa garota crescer feliz e fora disso tudo”.
Seu processo e julgamento ocorreram entre 1939 e 1940. O fuzilamento, em janeiro de 1941.
O processo Babel é dos casos em que se possui praticamente toda a documentação dos interrogatórios, petições e cartas do acusado. Por exemplo, sua presença em uma extensa lista de condenados para execução ( Babel era o de número 12) preparada por Béria, com o “de acordo” assinado por Stalin (vide fotos da ordem de execução).
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Para quem era criticado por pouco produzir, em sua casa foram confiscadas pelos órgãos repressores pelo menos quinhentas cartas, dezoito cadernos de anotações, quinze pastas com manuscritos prontos para publicação. Foram necessários dois furgões para o transporte do material escrito. No último de seus trabalhos em preparação tratava dos métodos dos serviços secretos soviéticos. Conforme as filhas de Babel, muito do material aprendido desapareceu.
No entanto, parte deste rico manancial criativo veio à tona com a glasnost, e, aqui no Brasil, serviu de base para um romance de Rubens Fonseca: “Vastas emoções e pensamentos imperfeitos”.
Logo após a prisão, Babel teve seu nome removido das enciclopédias e dos dicionários literários; quando o diretor de cinema Donskoi encenou a trilogia de Gorky, Babel um dos responsáveis pelo roteiro, teve o nome retirado dos créditos.
Babel foi torturado na sede da KGB, na casa do terror situada à rua Lubianka. Sua prolongada tortura, que durou sete meses, aparentemente levou-o ao enlouquecimento. No princípio Balel tentou negar todas as absurdas acusações que assacaram contra ele, como o de ser agente de Trotski e de ter sido recrutado pelo escritor francês André Malraux para espionar para a França. Quando, semi-destruído, aceitou as acusações, também comprometeu metade da intelectualidade de Moscou. Semanas após, entretanto, escreveu dezenas de retratações públicas e pedidos de desculpas, que pese poucas haverem chegado a seus destinatários, cada uma delas pode ser consideradas por si mesmas como pequenas peças literárias.
Um de seus inquisidores foi B.V. Rodos, braço direito de Laurenti Béria. Rodos quando foi inquirido no governo de Khruschov, em 1956, a respeito do caso Babel, revelou saber que o tal de “Babel” era um escritor. O juiz perguntou-lhe então: “o que você leu sobre seus escritos que o incriminassem?” O policial foi claro: “nada, e precisava?”
Babel foi reabilitado em 1956, em processo que teve por testemunhas o escritor Erenburg e I. Piechkova, viúva de Gorki. O Partido então reconheceu nele um dos maiores talentos literários soviéticos e assim como um fiel militante partidário, restituindo-lhe curiosamente o título de “Defensor Vitalício da U.R.S.S.”.
Obs.: Após a tomada do poder pelos Sovietes, com o amplo e aberto suporte e participação da França e da Inglaterra, potências vencedoras da guerra mundial, setores do antigo exército imperial se reorganizaram e juntando-se ao Exército Polonês, desencadearam uma guerra civil contra o Exército Vermelho e o Governo Soviético. A luta travada foi de incrível ferocidade.
Em 1918, a cidade de Petrogrado, o grande polo proletário da U.R.S.S., foi cercada em três frentes pelo Exército Alemão e não tinha mais condições de abrigar o Governo Revolucionário. O Governo se desloca oitocentos quilômetros para a ortodoxa Moscou. Embora os reacionários e seus aliados terminassem derrotados em 1921, o recém-construído e vitorioso Estado Soviético teve que lidar com uma situação econômica e social caótica, o que os levou a suprimir toda e qualquer atividade espontânea das massas.
Imperavam a fome, as doenças, a destruição no campo e o desemprego, indigência e desabrigo nas cidades. Estima-se que entre os anos 1921 e 1922, cinco milhões de russos tenham morrido de fome. O sistema de transportes estava arruinado, a produção agrícola somente em 1927 atingiria os níveis de 1914, no pré-guerra.
Foi nesse panorama dramático que Isaac Babel escreveu “A Cavalaria Vermelha”.