Enquanto a Rússia segue na missão de minar as forças materiais e psicológicas da Ucrânia com mais um ataque violento contra Kiev, dias atrás, o Ocidente tenta manter um mínimo de suprimentos bélicos para que o presidente Zelensky permaneça fiel aos interesses estadunidenses de forçar o recuo russo.
Sucede que, na defesa de sua posição, Washington tem feito imposições a seus asseclas na OTAN, que os estão levando para um beco sem saída. Isso porque, por um lado, se prosseguirem com o fornecimento de armas, apenas prolongarão essa infame guerra, que já dura dois anos e meio, sem qualquer perspectiva de vitória por parte da Ucrânia, salvo se houver o envolvimento direto de tropas da OTAN, o que seria o mesmo que declarar a Terceira Guerra Mundial. Por outro lado, se voltarem atrás e suspenderem o envio de armas (o que parece não ser a perspectiva atual), Putin sairá vitorioso, mais dia menos dia, e ainda mais fortalecido tanto internamente quanto aos olhos do mundo.
Essa “escolha de Sofia”, que se apresenta para os Estados Unidos e seu braço armado da OTAN, caminha para um desfecho imprevisível, como resultado do flagrante descaso com as lições da história.
De fato, os Estados Unidos nunca estiveram numa situação de guerra pela sobrevivência, portanto não sabem o que é ver o seu inimigo nas suas cercanias. Logo, é muito cômodo para o discurso ocidental demonizar a Rússia como uma tirana invasora das fronteiras ucranianas. Naquela região, isto remete a memórias aterrorizantes.
Mas esse discurso é apenas uma meia-verdade.
Com efeito, a Rússia iniciou essa guerra com o claro objetivo de evitar um possível (e desejado) ataque no futuro por parte do Ocidente, com a inclusão da Ucrânia na OTAN e a instalação de armas nucleares na sua extensa fronteira com a Rússia. Basta lembrar que, no auge da Guerra Fria, os Estados Unidos não permitiram a instalação de armamento nuclear em Cuba. A lógica é a mesma, por mais que tergiversem “pseudointelectuais” da grande mídia que seguem a cartilha yankee.
E existe um agravante nessa questão da luta pela sobrevivência que o Ocidente conhece, mas ignora deliberadamente, de forma irresponsável, a saber, o fato de a Rússia ter sido o único país que resistiu efetivamente dentro das suas fronteiras, de maneira feroz e desesperada, para não ser varrido do mapa pela Alemanha Nazista. Ela enfrentou os horrores da devastação do seu território e guarda na memória as marcas do genocídio que ceifou mais de 20 milhões de vidas russas, a maioria civis. É verdade que outros países também lutaram bravamente, como a Bélgica, a Polônia, etc., sem sucesso. Nem mesmo a França, com seus bravos regimentos de resistência à invasão foi páreo para a máquina de guerra alemã. Quanto à Inglaterra, malgrado o frequente e intenso bombardeio alemão do território britânico, no início da Segunda Guerra Mundial, que matou muita gente inocente e destruiu parte da sua infraestrutura, a luta encarniçada que tirou a vida de milhões de seus jovens combatentes ocorreu em trincheiras alheias. Nem mesmo o Japão, alvo ignóbil de duas bombas atômicas, sofreu uma invasão do seu território dessa magnitude.
Portanto, o recente bombardeio contra Kiev, que ocasionou dezenas de mortes de civis, incluindo inúmeras crianças, deve ser denunciado severamente por dois aspectos. O primeiro, claro, é que não deveria a Rússia jogar bombas aleatórias sobre uma cidade, sem discriminar alvos estritamente militares. A maioria do povo russo, assim como do povo ucraniano, é terminantemente contra essa guerra, até mesmo porque os motivos e as consequências no longo prazo lhe escapam. O segundo, e o mais grave, é que o mentor intelectual desse conflito foram os Estados Unidos, ao permitirem que a OTAN incorporasse países da antiga cortina de ferro às suas fileiras. A Rússia aceitou, porque não tinha mais poder para barrar esse êxodo.
Mas ela, Rússia, sempre colocou como questão “sine qua non” a neutralidade da Ucrânia.
Ademais, quer o ocidente queira ou não, existe de fato uma parte do território ucraniano, precisamente a região do Donbass, região leste da Ucrânia, que possui maioria da população pró-Rússia. Por si só, isso sempre foi um ponto de inflexão nas tratativas diplomáticas entre esses dois países. Ao Ocidente, capitaneado pelos Estados Unidos, caberia tentar apaziguar possíveis focos de tensão, como o verificado na época do conflito desencadeado pelos separatistas pró-Rússia de Donetsk e Luhansk. Ao invés disso, a OTAN acelerou as tratativas para a incorporação da Ucrânia às suas fileiras, com o beneplácito dos Estados Unidos e sob reiterados protestos da Rússia. Quando esta viu seu último pedido de não inclusão da Ucrânia na OTAN negado, viu-se obrigada a ir à guerra para salvaguardar sua própria integridade física no futuro.
Deveras, o cerne da questão dessa guerra atroz precisa ser bem enfatizado, para que não restem dúvidas: a Rússia não invadiu a Ucrânia por motivos imperialistas, apesar do discurso ocidental bater sistematicamente nessa tecla.
Putin determinou a invasão da Ucrânia por motivos “defensivos” no longo prazo. É óbvio que existem outras razões subjacentes a essa invasão, que não cabe aqui detalhar, como, por exemplo, o declínio da sua popularidade na política interna. É fato também que a inclusão dos outros países da antiga União Soviética na OTAN aumentou as dificuldades de exportação das commodities russas, motivo primordial para a anexação da Criméia em 2014, que visava garantir um porto seguro de escoamento dos seus grãos pelo mar Negro. Mas o mais importante agora é ficar bem claro que, caso a Ucrânia tivesse preferido permanecer neutra, ou seja fora da zona de influência da OTAN e independente da Rússia na execução da política externa, nada disso teria acontecido. Exemplos disso não faltam e o melhor que me ocorre agora talvez seja a Suíça.
Mas aí o que chamei de “impasse criminoso” também não estaria em voga hoje. E é criminoso porque os grandes beneficiários desse conflito são os conglomerados bélicos-industriais das grandes potências ocidentais, Estado Unidos à frente, que já faturaram com essa guerra bilhões de dólares.
Para se ter uma ideia, só as principais indústrias de defesa dos Estados Unidos receberam mais de 40 bilhões de dólares, desde que a guerra começou. No total, já foram investidos em armamentos mais de US$ 2,2 trilhões de dólares no mundo todo. (1). É evidente que as principais potências do globo aproveitaram o momento conturbado para desencadear uma verdadeira corrida para aumentar os gastos militares, sob o pretexto de suas defesas estarem obsoletas.
Se voltarmos a recorrer às lições que a história nos fornece, o saldo desse período pode ser desastroso. Com efeito, o último grande movimento mundial bélico trouxe a reboque a Segunda Guerra Mundial. Parecia que tínhamos aprendido a lição lá pelos anos 50 e 60 do século passado, quando um capitalismo keynesiano promoveu uma sociedade de bem-estar social generalizado, pelo menos nos países desenvolvidos, com respingos de melhoria de vida para muitas populações de países mais atrasados economicamente.
Infelizmente, a época dos chamados “trinta anos de ouro” do capitalismo de bem-estar foi a parteira do novo capitalismo desregulamentado – o atual neoliberalismo – que assistimos hoje em dia alienados. Para nosso azar, este neoliberalismo tem como uma de suas premissas básicas a concretização do “Grande Irmão orwelliano” ou, se quisermos atualizar um pouco mais esta premissa, a metáfora do “só pode restar um”, do filme Highlander de 1986. Como pressagiou o nosso tupiniquim Capitão Nascimento, o sistema é foda. Ainda vai morrer muita gente. Tanto aqui como lá fora.
REFERÊNCIA:
*André Márcio Neves Soares é doutorando pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL.