Saudades.
Eram os idos de março de 1964, quando alguns alunos transferidos de outras cidades ingressaram no primeiro ano do curso científico do Otoniel Motta em Ribeirão Preto. Dentre eles, um pessoal de Rio Preto e Votuporanga que logo se tornaram meus amigos. Tanto quanto eu éramos estrangeiros, eu devido à pobreza, em meio aos filhinhos de famílias abastadas que estudavam na melhor escola pública de toda a região, eles pelo noviciato. Aquele que de certa forma liderava o grupo era um adolescente de minha idade, rosto oblongo e cabeça comprida, que a cada passo dado necessitava colocar toda a sua energia vital, e suava, como suava ao caminhar! Ele tivera poliomielite, e após várias cirurgias corretivas, apoiava-se em um par de muletas, as primeiras canadenses que eu vi. Além disso, usava como sapatos estranhas botas articuladas por parafusos a ferros que subiam por uma das suas pernas. Sentou-se ao meu lado logo na primeira aula, naquela que seria sempre a primeira fila, onde frequentemente estaríamos juntos.
Era gago, por isso evitava expor-se em demasia. Foi a primeira pessoa do mundo a me chamar de “Russão”. Meu novo amigo, Júlio César Voltarelli, logo demonstrou ser um aluno brilhante e, eu acho, que com isso a gagueira foi diminuindo, sem jamais deixá-lo totalmente.
Na verdade nossa amizade também embutia alguma disputa, mas a inteligência arguta e objetiva do Júlio sempre levava a melhor. Vivíamos tempos negros do Golpe Militar, Atos Ditatoriais( A.I.) 1,2,3. Júlio era de esquerda, militava na Juventude Católica, quando eu ainda nem sonhava com política. Era apenas cristão.
Estudamos juntos durante os três anos do curso colegial. Depois entramos na Medicina da USP. Entretanto, estou me adiantando no relato. Júlio foi o agente voluntário e involuntário de rumos que minha vida tomou.
Ele apresentou-me à primeira garota por quem me apaixonei, aliás, ela fazia parte do grupo que chegara de Rio Preto ou Votuporanga. Quantas vezes saímos juntos, tantos encontros, e, de repente, passamos a ler Teilhard de Chardin; para a teologia do Concílio de João XXIII foi um passo. Mas o primeiro amor se diluiu, sem jamais ser confessado( e precisava?) graças à minha introversão e ao meu platonismo. Permaneceu a amizade.
Uma vez disputamos a indicação para representante de classe em lados opostos. O Júlio indicou o Stênio para tal e eu saí candidato. A direita da classe não sabia qual era a minha e votou contra o indicado pelo Júlio. Fui eleito e ele me disse, “te elegeram porque são idiotas”. E eram mesmo.
Agora já na Faculdade de Medicina, o Paulo Regis dirigia um grupo de estudos da realidade brasileira. O Júlio me convidou a participar e lá fui eu. Em determinado momento, pelos idos de 1968, preparamos um manifesto contra a guerra do Vietnã e programamos a distribuição. O Centro acadêmico da Medicina rodou-o no mimiógrafo e fomos à distribuição. O Júlio e o Paulo iriam ao Centro da Filosofia, eu e outros faríamos a Medicina e o Direito.
O Paulo teve dor de cabeça. O Júlio pediu-me para que fosse com ele. Na Filosofia uma nova encruzilhada preprava-se para minha vida: havia um pequeno show de música popular brasileira, ao violão uma morena que eu amaria. Distribuimos os manifestos, mas aquela que me abriria os horizontes do ateísmo e de uma militância mais guerreira acabara de penetrar no meu viver, o que me afastaria para sempre(?)do Júlio César.
O Júlio ele seguiu seus estudos, fez carreira universitária, manteve suas convicções e eu, por meu lado, encarnei meinha revolta com as novas descobertas. Apenas nos DOI-CODI quando preso e torturado, apresentaram-me sua fotografia como suspeito. Suspeito de que? De ser um ser digno, ético e humano?
Passaram-se décadas. Há questão de dois anos, perguntei-lhe por telefone sobre o avanço com células-troco no tratamento de cirrose hepática para um fiho meu. O Júlio garantiu-me que nada haveria para uso clínico nos próximos dez anos.
Hoje os jornais estamparam a notícia da morte do Júlio Cesar Voltareli, Professor Titular de Imunologia, um dos maiores pesquisadores brasileiros na área de saúde e introdutor do transplante de medula- falecimento por complicação de transplante de fígado, quem sabe, herança tardia da Hepatite C, quiçá contraída nos anos sessenta em uma de suas tantas cirurgias ortopédicas.
Eu saúdo e pranteio não o grande cientista, que muitos o farão, mas o colega, amigo e cidadão Júlio César. Saudades.