O que teria levado Sófocles aos 87 anos de idade a escrever uma tragédia referenciada em um mito pouco conhecido na própria Atenas, com raras citações na Ilíada de Homero? Assim mesmo, “Filoctetes”, uma das mais desconhecidas tragédias, é parte das mais grandiosas contribuições da cultura grega!
Em “Filoctetes” concentrou-se a maturidade de um poeta genial, que aos 89 anos de idade, foi levado aos tribunais por um filho ganancioso, que queria interditá-lo e dirigir seus bens. O poeta assim respondeu aos juízes:
“Se eu sou Sófocles, eu não sou mentalmente incapaz; se eu não sou mentalmente capaz, eu não sou Sófocles”. A seguir, o velho poeta declamou de cor versos de “Filoctetes” e de sua próxima e última tragédia: “Édipo em Colono”.
O tribunal ateniense, composto de amigos e admiradores do maior parceiro de Péricles, aplaudiu de pé o poeta trágico e admoestou duramente o filho ganancioso.
Pois as duas últimas tragédias de Sófocles, “Filoctetes” e “Édipo em Colono” dedicam-se a heróis envelhecidos prematuramente, arruinados, humilhados, expulsos de suas comunidades, embora possuidores de enorme virtude e altivez, que mesmo os inimigos são obrigados a respeitar. Numa outra leitura, os velhos que, mesmo mantidos fora do convívio de suas gentes (ambos exilados, como o são os velhos na sociedade), mantêm sua arete, sua dignidade e certa magia daqueles que cometeram desmedidas quando jovens, desmedidas que lhes trouxeram ao serem superadas, o conhecimento e certa mística.
Filoctetes é o nome de um guerreiro solitário, exilado por seus companheiros de luta há dez anos, contra sua vontade na ilha desabitada de Lemnos, em meio a uma natureza selvagem, tendo por únicos companheiros o arco e as flechas que herdara de Hércules, seu amigo, que ao ser envenenado pelo manto de Djanira, pedira-lhe que acendesse a pira em que desejava morrer, tal era seu sofrer. Entregara-lhe em reconhecimento o arco e flechas mágicas que jamais erram o alvo quando disparadas.
A caminho de Tróia, a frota grega, à qual se incorporara Filoctetes, sob o comando dos brutalizados irmãos Atridas (Menelau e Agamemnon), fizera uma pequena parada e este guerreiro fora até o santuário do deus Apolo onde recebera a picada de uma serpente. A picada não o mata, mas lhe causa um ferimento no pé que jamais cicatriza e quando forma abcesso exala um mau cheiro insuportável e uma dor tão forte que fazia o infeliz guerreiro desmaiar.
O conselho dos chefes, do qual fazia parte Ulisses, decide que Filoctetes não pode permanecer na tropa, deve ser exilado. Ulisses encarrega-se de deixa-lo absolutamente só na ilha selvagem apenas com seu arco e flechas. Justamente ele, Filoctectes, cujo nome esta ligado à posse da amizade ( phylos= amigos).
Pois a relação com a natureza bruta torna este homem, afastado dos demais combatentes, uma pessoa selvagem, que se comporta como um “cadáver entre os vivos”, um morto cívico, que vive em situação análoga a do ostracismo. Vive das poucas aves que consegue caçar com suas flechas quando pode se locomover pela ilha.
Mais de dez anos de cerco e combate pela cidade de Troia, e esta se mantém incólume. Do lado dos gregos, a morte levou-lhe dois dos principais heróis: Aquiles e Ajax. A expedição guerreira corre o risco de naufragar, quando os gregos detêm um vidente troiano que lhes revela um oráculo: somente o arco e as flechas de Hércules e o filho de Aquiles, com os paramentos de seu pai, poderão propiciar a vitória grega.
O filho de Aquiles, o jovem Neoptólemo, incorpora-se à tropa e Ulisses Odisseu encarrega-se de trazer para os gregos o arco e as flechas de Hércules. E nisto faz-se acompanhar do jovem Neoptólemo.
Aqui começa a tragédia. Ela desenvolve-se numa ilha desértica, tendo no cenário uma gruta de entrada dupla, onde vive o pobre exilado.
Em cena Odisseu, Neoptólemo e o Coro, que é composto pelos marinheiros que os acompanharam na nau vinda de Troia e que a ela deveria retornar. Neoptólemo é encarregado por Odisseu, a quem deve obediência, de enganar Filoctetes, propiciando sua captura, ou o roubo de suas armas, pois Odisseu não ousaria aproximar-se do inválido, que, pela dor que lhe fora imposta, odeia-o. Aliás, o esperto grego teme as flechas dos humilhados e despojados.
Ulisses Odisseu é um homem político, do mesmo estilo de nossos contemporâneos. Para ele todas as armas inclusive o engodo, a mentira e a traição são válidas quando se trata de perseguir um objetivo, não se importa com “maquinar coisas sórdidas, pois é doce tirar lucro da vitória”. Neoptólemo não é assim. Ele tem outro ethos, o do guerreiro! Neptólemo resiste a Odisseu, pois: “Não fui feito para praticar artifícios sórdidos…estou pronto a levar o homem à força e não por astúcias. Filoctetes, com um único pé, como poderá resistir a tantos de nós? Enviado a ti como auxiliar, temo ser chamado de traidor; prefiro entretanto falhar de modo nobre a vencer de modo sujo e covarde”. Replica-lhe, então, o hábil político Odisseu: “Quando vencermos, poderemos ser honestos”.
Seguir-se-á um processo de aproximação entre Neoptólemo e Filoctetes baseado na mentira inventada por Ulisses, para apoderar-se do arco e das flechas. Filoctetes entra em cena e se delicia ao ouvir o som de voz humana. O tratamento que o exilado dedicará ao jovem será o de pai para filho, para o filho de Aquiles, o guerreiro por ele querido. Confia-se no visitante, conta-lhe a história de sua desdita e de como sobrevivera caçando e bebendo água salobra com só a ajuda de uma perna.
Ao saber das baixas gregas na guerra, comenta Filoctetes referindo-se principalmente a Odisseu: “Se nenhum sórdido ainda pereceu, é porque são protegidos pelas divindades; suponho que a velhacaria e a safadeza alegram-se em não deixar que penetrem no Hades, mas enviam para lá os justos e os honestos”.
Nisto se aproxima, a mando de um Odisseu que age escondido, um marujo, cujo objetivo explícito é apressar a partida de Neoptólemo. O jovem pede a Filoctetes que o deixe guardar as flechas e o arco de Hércules. Como um pai que transmite ao filho tornado adulto suas responsabilidades, ele o permite.
O Coro canta o pathos do pobre homem que, jamais tendo roubado e nem prejudicado ninguém, “pereça tão indignamente”. Neste ínterim, Filoctetes sofre um ataque do mal que o acomete. O fedor de suas chagas se esparrama e ele chega a pedir, na imensa dor, que o companheiro lhe ampute a perna ferida, matando-o. Depois do doloroso ataque, no entanto, sobrevém um sono reparador, semelhante à morte.
O jovem ainda está convicto de que deve cumprir a ordem recebida por Odisseu. Já que possui as armas, só lhe resta transportar o corpo do moribundo. Mas Filoctetes desperta e pede que Neoptólemo o ajude a erguer-se, relembra que os chefes atreus não suportavam os transes da doença, ao contrário do filho de um herói, de Aquiles.
Este ponto é o da inflexão: como deve o filho de Aquiles comportar-se? Ele mesmo se questiona. Já não se sente seguro, seu comportamento ambíguo está a esvair-se. Filoctetes pergunta-lhe se é a repugnância que o faz afastar-se, ao que seu parceiro retruca: “Tudo é repugnante quando a própria natureza tendo-se abandonado, fazem-se coisas não convenientes… Oh Zeus, que devo fazer, serei novamente tomado por perverso ocultando o que não devo e dizendo as palavras mais infames?” Em sua angústia, Neoptólemo decide contar toda a verdade ao pobre diabo, pois ele ali foi posto para roubá-lo.
Filoctetes, então, sente-se novamente traído e de tudo na vida despojado, nem mesmo as armas lhe restam. Sobre Neoptólemo e o Coro desaba uma grande compaixão por aquele homem que somente o engodo pode capturar. Filoctetes diz: “Não és sórdido, Neoptólemo, mas só instruído por homens sórdidos podes chegar a esta infâmia”.
Ao perceber que o filho de Aquiles vacila, surge Odisseu. Assume a responsabilidade pelo ocorrido e diz fazê-lo em nome de Zeus.
“Como és odioso, quantas histórias tens para dizer; ao colocares os deuses à sua frente, fazes deles mentirosos”, responde-lhe o corajoso Filoctetes, que se nega a participar da destruição de Troia, ao lado dos aqueus. “Eu que nada sou e estou morto para vós há muito tempo, por que me arrastais? Odiosíssimo aos deuses és Odisseu, agora não sou mais para ti um coxo fedorento?”
Odisseu desistindo de levar Filoctetes à força, decide retornar a Troia apenas com as armas de Hércules, em mãos de Neoptólemo. Ele mesmo usará as armas de Hércules e, então, toda a honra da batalha será só sua!
O Coro dos Marinheiros, que na realidade do teatro grego representa os cidadãos da pólis, expressa sua piedade “pois Filoctes não conta com um olhar companheiro, com ninguém que dele se ocupe, infeliz só e sempre, padecendo de uma selvagem doença que foi um golpe dos deuses; infeliz raça humana, de vida sem medidas… este de tudo em vida privado… por suas dores e fome, miserável , seu canto de longe derrama amargas lamentações”.
Permanecem em cena Filoctetes e o Coro. Pobre Filoctetes, enganado e só, inicialmente despreza a companhia daqueles que tão covardemente o enganaram, mas ao final, ele implora que ainda lhe façam alguma companhia; pede-lhes como favor final uma arma para que possa terminar sua vida antes de tornar-se presa dos animais que antes caçava.
O último episódio comporta a reviravolta, a peripécia. Neoptólemo decide devolver a Filoctetes suas armas, “pois vergonhosamente e não com justiça as detenho”. Odisseu o desafia ao combate e o filho de Aquiles aceita. Odisseu acovarda-se preferindo “contar a todo o exército a traição cometida”. Em conformidade com Vernant, neste momento ocorre o ritual de passagem. O adolescente torna-se homem, assume suas responsabilidades de guerreiro hoplita, e assumindo seu próprio ethos sai da selvageria do embuste e das mentiras, cruza a efebia.
Neoptólemo, então, entrega a Filoctetes as armas roubadas e ouve-se Odisseu dizer que o levará à força até Troia, quer queira ou não o filho de Aquiles. A mão de Neoptólemo impede Filoctetes de abater o odioso Odisseu, “pois não seria honroso nem para mim e nem para ti”. Agora quem fala é o adulto, um hoplita: “Tu te tornaste selvagem e não acolhes um conselho; se alguém te adverte falando com benevolência, já o tens por opositor, por inimigo. Tu sofres esta dor que é de origem divina, pois te aproximastes em demasia do templo guardado por uma serpente. E saibas que jamais encontrarás o fim desta doença antes que, de bom grado, retornes às planícies de Troia e estejas aos cuidados do filho de Asclépio que acompanha as tropas… isto foi dito por Heleno, oráculo de Apolo e eu o ouvi”.
No entanto, mesmo suportando a dor de um ferimento sem cura, todos os argumentos do filho de Aquiles não conseguem abrandar o ódio que o coração de Filoctetes devota aos Atreus e a Odisseu. Ele não quer retornar a Troia.
Chega-se na tragédia a um ponto sem saída. Os deuses prescreveram a destruição de Troia; que sem Filoctetes e suas flechas, a tarefa seria impossível. O filho do maior herói grego, Aquiles, cumprindo seu dever de amizade desertaria do exército e abandonaria a luta. Sófocles apela para a presença do deus “ex-machina”, Hércules, para harmonizar a situação e reintegrar Filoctetes ao mundo civilizado.
Ele apresenta-se e anuncia estar ali por vontade de Zeus e que os sofrimentos passados por Filoctetes seriam o princípio de uma vida gloriosa. Também uma prova a que fora submetido pelos deuses, após a sua desmedida em aproximar-se em demasia de um santuário. Mas que se ele retornar ao combate e voltar a Troia, será escolhido o primeiro da armada grega e, caber-lhe-á a honra de matar Páris, recebendo um imenso botim de guerra pela cidade destruída. Antes de tudo será curado da chaga pelo filho de Asclépio, que assiste às tropas gregas.
Sentencia, finalmente, que o filho de Aquiles e o velho guerreiro estarão sempre par a par, como leões que lutam juntos, irmanados na phylia, na amizade.
Partem, então, os dois homens para a luta contra Troia, pedindo às ninfas marinhas que lhes propiciem uma boa viagem, pois até mesmo o triste ambiente da inóspita Lemnos ilumina-se com a amizade, com a honra, com o respeito do jovem, tornado homem, pelo mais velho e experiente Filoctetes!