Parcela da classe média brasileira e das elites exploratória adoram algumas expressões em momentos de questionamento de nossa realidade político-social: “O Brasil não deu muito certo…”, “O povinho que temos…”.
Isto representa uma enorme mentira: o Brasil deu certo, sim! Certo como colônia de exploração, que jamais rompeu com o colonialismo, com a dependência!
O Brasil nasceu para o mundo europeu como um processo de exploração predatória de recursos humanos e naturais.
Nossa própria denominação da nacionalidade advém do sufixo “eiro”, normalmente identificador de uma atividade ou de uma profissão. Pois o “brasileiro” em sua origem era o português que, aqui aportando, dedicava-se à derrubada do pau-brasil, madeira nobre, “brasil” de brasa, vermelho a cor preferida das cortes europeias para o tingimento de roupas.
Ora, esses homens eram quase sempre criminosos banidos de Portugal e chamar-se “brasileiro” era um adjetivo de significado pejorativo na Europa.
Pois aqueles portugueses e muitos de seus descendentes, para a derrubada, transporte e extração da preciosa resina, buscaram escravizar os indígenas, embora a dificuldade de escravizar quem vivia livre, em seu habitat natural, ou seja, nossas florestas, tenha levado a um primeiro genocídio e, mesmo, a sua rarefação em áreas litorâneas.
Foi frei Vicente do Salvador o primeiro a ter a ousadia de utilizar o termo “brasileiro”, não na antiga significação de tirador de pau-brasil, mas naquela dos nascidos no Brasil. Isto ocorreu apenas em princípios do século XVII, e propagou-se graças à sua “História da custódia franciscana do Brasil”.
Nessa época, aliás, os colonizadores- exploradores de há muito já não mais se interessavam pelo pau-brasil, e desde o século anterior a principal produção do Brasil era o açúcar de cana.
De todos os modos, nós, brasileiros, nos diferenciamos da denominação dos filhos de outras pátrias, inclusive de países do Novo Mundo, cujos sufixos indicam locais de origem como “anos/inos/ enos” (norte-americanos, mexicanos, colombianos, venezuelanos, argentinos, chilenos etc.).
O termo “Brasileiro” é originário de uma profissão de devastação do meio ambiente!
E a necessidade de importação de uma mão de obra abundante e barata, que não tivesse qualquer identidade com nossa natureza, foi uma decorrência do agronegócio exportador da cana de açúcar. Como consequência implantou-se outro negócio altamente lucrativo, o do tráfico de negros trazidos de diferentes pontos da África e submetidos à escravidão, o qual se estendeu por quase quatro séculos de nossa história.
A tortura e o assassinato.
Logo, a tortura e o assassinato como instrumentos de submissão foram praticados de modo contumaz e corriqueiro, em todos os períodos de nossa História.
No Brasil Colonial e durante o Império, os alvos preferencias eram os índios e os negros escravos; já, na República, quer em seus períodos ditatoriais ou nos mais democráticos, com grau maior ou menor de abrangência, aos índios e aos negros juntaram-se os mulatos, os cafuzos, os mestiços e brancos, desde que pobres ou marginalizados.
Foi a esse padrão “cultural” que veio somar-se, no século XX, a tortura sistemática a revolucionários e revoltosos, quer fossem políticos, sindicalistas ou lideranças populares.
Ou seja, a tortura e o assassinato como modos de submissão, de castigo, de investigação ou de simples satisfação sádica, percorrem todos os nossos cinco séculos de “civilização branca”, até os dias de hoje.
Algumas crônicas literárias e jornalísticas.
Nós centralizaremos nosso foco narrativo em algumas crônicas literárias que mostram a tortura e o assassinato impunes como instrumentos de segregação racial e social na sua própria origem, no escravagismo.
O estudo dos métodos de tortura constitui um verdadeiro manual de como destruir um ser considerado inferior, ou seja, a banalidade do mal se instalou por nossas terras junto com o escravagismo, desde o Brasil Colônia e jamais nos deixou.
Principiemos por crônicas de Arthur de Azevedo, da primeira década do século passado.
Ele relata que nas cidades era extremamente comum a aplicação de açoites nos pelourinhos, colunas de pedras advindas da velha tradição de suplício na Roma Imperial, erguidas em praça pública. Na parte superior essas colunas tinham pontas recurvadas de ferro, onde se penduravam os condenados à forca. De uso múltiplo, no pelourinho também eram amarrados os condenados ao açoite. O espetáculo era anunciado publicamente pelo rufar dos tambores e era grande a multidão que assistia ao látego do carrasco abrir estrias de sangue no dorso nu do negro; a malta aplaudia e se excitava com as sevícias.
Havia um instrumento de tortura de uso absolutamente corriqueiro, muitas vezes utilizado nas próprias residências ou oficinas de ofício: a palmatória. Arrebentavam-lhes mãos e pés, provocando violentas equimoses. E esse instrumento de sevícias caminhou incólume desde a escravidão até os dias de hoje, sobretudo em postos policiais, haja vista ser um instrumento banal, confundível, de custo praticamente zero e que não deixa marcas típicas da tortura.
Em engenhos do Nordeste e do Sul, a crueldade dos senhores-de-engenho e feitores atingia, entretanto, extremos incríveis, como a prática das “novenas” e “trezenas” para matar: o corpo do escravo era cortado por navalhas, recebia a aplicação de salmoura e “o negro” era deixado a morrer de “morte natural”.
Marcas com ferro em brasa eram outra forma de tortura e ao mesmo tempo uma maneira de marcar o “gado humano”. Mutilações, estupros de negras escravas, castração, amputação de seios, fratura de dentes a marteladas… é longa, muito longa a série do sadismo requintado aplicado contra os escravos.
Reporta-nos ainda Arthur de Azevedo que havia processos “verdadeiramente chineses como o da aplicação de urtigas, insetos e o da “roda d’água””. Os senhores do Sul manietavam os escravos nus a traves de teto e untavam os corpos com mel ou sal para que os insetos viessem aferroá-los. Outras vezes eles eram untados com leite e deixados amarrados ao solo para pasto de ratos.
Já no suplício da “roda d’água” eram empregadas máquinas que dilaceravam os membros do escravo.
O “tronco” é um velho instrumento conhecido em todos os lados. Consistia de um grande pedaço de madeira regular, aberto em duas metades, com buracos maiores para a cabeça e menores para os pés e as mãos. Normalmente um “tronco” tinha espaço para a submissão de até três pessoas.
Após a abolição da escravatura, escreve Azevedo, seu uso permaneceu como forma de tortura na detenção de suspeitos por roubo de cavalos ou por outros delitos. Uma variedade do tronco de madeira era o vira-mundo, feito de ferro. Tinha a mesma finalidade daquele, prender a cabeça, as mãos e os pés do escravo.
Já o “cepo” consistia de um grosso pedaço de madeira que o escravo carregava à cabeça e que era preso por uma longa corrente a uma argola abraçando-lhe o tornozelo.
Existiam instrumentos formados por correntes e argolas, de variadas espécies. Azevedo principia com o lilambo, instrumento que prendia o pescoço do escravo numa argola de ferro, de onde saía uma haste que se dirigia em forma de gancho para cima, onde se costumava colocar um chocalho; este instrumento era destinado ao negro fugido e recapturado.
As algemas, machos e peias eram confeccionados de diferentes tamanhos, uns para escravos fortes, outros para mulheres ou meninotes. Muitas vezes ligava-se um peso à peia, presa ao calcanhar, para dificultar o caminhar ou o fugir.
Os “anjinhos” eram instrumentos de suplício, como os “vis-à-pression” das colônias francesas ou inglesas. Eles prendiam os dedos polegares das vítimas em dois anéis semicirculares que se comprimiam lentamente através de uma chave, levando ao esmagamento dos dedos. Esse tormento normalmente era empregado para a obtenção de confissões.
A “máscara” era utilizada pelo escravo que furtava cana ou rapadura. Feita de uma folha-de-flandres, ela tomava todo o rosto e fechava-se atrás por um cadeado. Apenas alguns orifícios permitiam a respiração e o escravo com máscara não podia comer nem beber sem permissão e permanecia nesse suplício por dias inteiros.
Uma espécie “pau-de-arara” também teve sua utilização nos castigos. Uma cana de madeira ou de ferro era afixada na parte traseira dos joelhos, com as mãos e os pés mantidos manietados. O supliciado poderia ser açoitado, sofrer palmatórias ou até mesmo ser empalado, estando no chão imobilizado ou colocado sobre um suporte de cavaletes.
A fantasia de muitos senhores de escravos provavelmente engendrou outros instrumentos de suplício que escaparam a essa descrição feita por Arthur Azevedo. Muitos se perderam, outros foram escondidos ou se deterioraram.
O negro fugido e o capitão-do-mato, a milícia: uma invenção carioca.
Uma crônica de Vivaldo Coaracy, inserida no livro “Rio de Janeiro no século XVII”, nos diz que em meados do século, as fugas de negros do cativeiro e a formação de quilombos nas Serra dos Órgãos, da qual desciam para assaltar propriedades rurais e aliciar outros escravos, levou a Câmara do Rio à instituição de prêmios pecuniários para a prisão de negros fugidos, fixando taxas a serem pagas pelos proprietários dos mesmos. Com isso, uma nova profissão surgiu na província, e tornaram-se numerosos os caçadores de escravos, denominados de capitães-do-mato.
O mais famoso por sua audácia e eficiência foi Manuel João da Silva, que trouxe acorrentadas mais de trezentas cabeças. Como os proprietários dos escravos, uma vez recuperada a presa, regateavam o pagamento das taxas, coube ao Poder Público intervir. A Câmara decidiu organizar uma milícia civil armada, a primeira do Estado do Rio, que teria direito a dois terços do valor do escravo capturado, além de todas as “crias” que apanhasse no mocambo. Aos escravos que tivessem cometido crimes contra seus donos, a milícia tinha ordem de executá-los e o Poder Público garantiria a recompensa financeira.
Como vemos, a Parceria Público Privada vem de longa data.
Depois de Manuel, quem assumiu o comando da milícia foi o capitão-do-mato Atanásio Pereira, cuja residência e estado maior miliciano foi construída na fazenda dos Jesuítas, nos contrafortes da Serra dos Órgãos, com o selo “sagrado” da proteção espiritual.
Gilberto Freyre, em “Casa grande e senzala”, descreve os numerosos anúncios de negros fugitivos e procurados mediante recompensa para caçadores de cabeça. Esta constitui uma forma concreta de se entender o nível de barbárie a que se chegou no país que foi o último da América a abolir a escravidão.
Muitos procurados são descritos como “rendidos” ou “quebrados”, no sentido de haverem sido, de uma forma ou outra, castrados. Também como pretos com “veias estouradas ou calombos no corpo”, escravos com andar “cambaio ou banzeiro”.
Vários negros são descritos como portadores de máscaras de flandres na face, ligadas por cadeado na parte traseira. Adicionam os senhores de escravos que se tratava de pessoas com voracidade por frutas, mesmos verdes.
Nos Anais Brasileiros de Medicina, o médico Gama Lobo identificou um determinado tipo de oftalmia em escravos com esses sintomas, que ganhou a denominação científica de “ophtalmia brasiliensis”, provocada por sério grau de avitaminose.
Outros anúncios procuram negros cegos de um olho por “vazamento”, “caolhos”, e ainda vários escravos “com carnes sobre os olhos”. São comuns “negros fugidos” descritos como possuidores de um braço maior que o outro, com falta de dedos nas mãos ou nos pés.
Numerosas descrições apresentam pessoas que apresentavam nas coxas ou nas costas letras, sinais ou carimbos de propriedade, como hoje o gado é tangido. Quando não, marcas de surras e castigos, um corpo deformado por torturas. Uns com “os quartos arriados” em virtude de tremendas surras, outros com cicatrizes provocadas por relhos aplicados nas costas ou nas nádegas; ainda outros com cicatrizes nos dedos provocadas pelos “anjinhos” e marcas na cabeça pelo uso de torniquetes com pregos, as “coroas de Cristo”. Também são comuns as cicatrizes provocadas pelo “tronco”, pelas correntes com que os atavam nos pescoços, nos pés, nos tornozelos; queimaduras na face e na barriga.
Não são poucos os anúncios de negros com marcas provocadas por tentativas de suicídio: talhos feitos à faca na garganta, no peito, nos pulsos.
É grande o número de negros caçados que apresentam deformações de pernas e cabeça que podem ser atribuídas ao hábito das mães escravas trazerem os molequinhos de mama “escanchados” às costas durante horas e horas de trabalho. Já parte das deformações anunciadas como a de negrinhos com “pernas cambaias”, “pernas tortas para dentro”, braços e pernas “muito finos” e arqueados, “peitos estreitos”, podem, sem dúvida, serem debitadas ao raquitismo e à fome.
Faltam ressaltar as deformações corporais por especialização profissional ou precocidade no trabalho. Vários negrinhos de dez a doze anos já apresentam a “croa” na cabeça, feita à força pelo peso de carretos brutos como tabuleiros, tijolos, areia, etc. Há caso de negros com os dedos dos pés “torrados ou comidos”, por serem amassadores de cal. Outros com dedos e mãos amputados pela ação das moendas dos engenhos. Quase todos com pés e mãos desproporcionais, deformados pelo trabalho pesado já na infância.
O negro se sifilizou na escravidão.
Diz Freyre:
“Passa por um defeito da raça africana, comunicado ao brasileiro, o erotismo e a luxúria exacerbada. Mas o que se tem apurado dentre os povos africanos, diz o autor, é, sim, uma maior moderação do apetite sexual que entre os europeus”.
Os africanos são mais sofisticados dado que para excitarem-se necessitam de certas circunstâncias especiais, como danças, afrodisíacos, cultos fálicos e orgias. Já os europeus excitam-se por qualquer motivo.
“Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime, pois em primeiro lugar, a própria ganância favorece a depravação, criando nos proprietários de escravos o desejo de produzir o maior número possível de crias”.
Joaquim Nabuco colheu de um manifesto escravocrata de fazendeiros do interior de São Paulo, as seguintes palavras: a parte mais produtiva da propriedade escrava é o seu ventre gerador”.
Freyre ainda faz referências específicas nos anúncios a respeito de sequelas de doenças sexualmente transmissíveis descritas em muitos negros fujões: “não são raros os casos de doentes de “boubas” e úlceras na pele, assim como feridas descritas como “que nunca saram”, nos braços e pernas”, assim como de negros descritos como “enlouquecidos”, uma possível fase neurológica da sífilis.
Joaquim Nabuco, alicerçado em documentos, também comprovou a tese de que “o negro se sifilizou no Brasil” e a contaminação em massa ocorreu nas senzalas. A “raça considerada inferior” adquiriu da “superior”, dos brancos senhores de escravos, as doenças venéreas. “Negras tantas vezes virgens, ainda molecas de doze a treze anos, eram entregues a rapazes brancos já podres da sífilis contraída nas cidades”. Por muito tempo dominou no Brasil colonial a crença que para sifilítico não havia melhor depurativo que uma negrinha virgem.
Nem mesmo as amas de leite negras estavam livres do contágio sifilítico proporcionado por crianças brancas contaminadas. “De tal forma que a sífilis fez sempre o que quis no Brasil colonial”, graças ao escravagismo. “O sangue envenenado arrebentava em feridas; coçavam-se então as “perebas ou cabidelas”, tomavam-se garrafadas, chupava-se caju”.
Durante todo o século XVIII e XIX, o Brasil é citado em livros estrangeiros como o país da sífilis por excelência. Nem mesmo mosteiros eram considerados locais a salvo das devastações provocadas pelo mal gálico.
No nosso país a escravidão é mãe da tortura, da descriminação racial e da exclusão social. E estas incrustaram-se no DNA do Brasil! Incrustaram-se de forma definitiva nas elites e em parcelas da classe média!
Neste sentido, o Brasil deu certo, para suas elites predatórias!