Stefan Zweig ao escrever seu ensaio “Erasmo, grandeza e decadência de uma ideia”, em 1928, talvez pressentisse que traçava, de certo modo, um perfil e um destino semelhante ao que ele mesmo cumpriria.
Judeu austríaco, Zweig, nascido em Viena em 1881, foi um intelectual humanista e pacifista. Ensaísta, biógrafo, poeta, romancista e teatrólogo, antes da expansão nazi-fascista, o escritor mais lido em toda a Europa.
Laico, cultivava muitas amizades nos mais diferentes países; foi íntimo do poeta Rilke, de Freud (a quem amparou no leito de morte londrino e fez o discurso de seu “Requiem”), amigo de Joyce, dos dois irmãos Mann, de Gorki, Ravel, Valèry, do grande maestro Toscanini, de Strauss, Romain Rolland e de tantos outros mais.
O intelectual apaixonado pela humanidade, pelos livros e pela natureza, tinha por sonho um mundo de paz, em que a diversidade fosse respeitada. Zweig odiava o totalitarismo, o fanatismo, os preconceitos sociais e raciais em suas mais diversas vertentes; prezava mais que tudo a liberdade e a ética.
Apesar de jamais haver-se filiado a partido político algum, foi admirador da intrepidez dos sovietes, do gênio decidido e prático de um líder como Lênin, da grandeza com que o povo russo sorrindo, “num sorriso de criança”, encarava a enorme carga de construção de uma sociedade totalmente nova. Assim como Gide, sentiu-se tentado a aproximar-se do comunismo, mas ele era um burguês no qual os valores da individualidade e da crítica estavam para sempre estabelecidos. Ademais, Stefan Zweig, assim como Erasmo de Rotterdam, jamais teria a disciplina necessária aos homens de partido.
Visitou a União Soviética como um dos convidados de honra na comemoração dos cem anos de Tolstói, tendo sido o único palestrante oficial de língua alemã, em 1928. Encantou-se com operários recitando versos de Dante e de Maiakovski.
Aspirava a uma Europa unificada politicamente através da cultura e de seu passado histórico. Foi mais que tudo um lutador infatigável pela fraternidade universal, num mundo insanamente dividido da primeira metade do século XX.
Com a ascensão do nazismo na Alemanha, a anexação da Áustria por Hitler e seus sequazes, teve que abandonar sua Pátria e tornou-se um “apátrida”, peregrino do mundo. Seus livros foram proibidos pelos nazistas e dos primeiros a serem queimados em praça pública; sua biblioteca apreendida e toda a enorme coleção de manuscritos históricos, particularmente de Goethe, partituras musicais originais de Mozart, Beethoven foram confiscadas. “Por três vezes derrubaram minha casa e existência, apartaram-me de tudo o que existira e passara, e com uma veemência dramática lançaram-me no vazio, no desconhecido… de todo meu passado, não tenho comigo nada além do que está atrás de minha testa…”, escreveria em “O mundo que eu vi”.
Teve um exílio tumultuado em Londres. Foi convidado a abandonar a Inglaterra quando ela declarou guerra aos países do “Eixo”. Dirigiu-se aos Estados Unidos, mas nele não fixou residência, dado que não se identificou com o “way of live” americano. Em 1941, decidiu com sua companheira Lotte exilar-se no país que já o acolhera como turista, após como residente, e seria sua última morada. Zweig já o transformara no motivo de um longo ensaio: “Brasil, o país do futuro!”
Sua acolhida entre nós foi mais que fraterna. Estabeleceu laços com intelectuais como os irmãos Koogan, proprietários da Editora Guanabara; discursou na Academia Brasileira de Letras; prestou solidariedade aos judeus brasileiros e aos intelectuais que se opunham ao fascismo.
Zweig e Lotte residiriam à Rua Gonçalves Dias, n.34, em Petrópolis. No entanto, descrentes da capacidade da humanidade desfazer-se do fanatismo e da intolerância, profundamente abalados pelos desaparecimentos em campos de extermínio de praticamente todos os seus amigos e parentes que haviam permanecido na Áustria, buscaram a morte por ingestão de barbitúrico. Tal qual Paolo e Francesca de Rimini, na visão de Dante, o qual Zweig tanto amava, adentraram a eternidade, enlaçados num leito mortuário.
Quatro séculos antes, também desiludido com a barbárie, com o fanatismo religioso e com a capacidade de destruição a que os homens são levados numa luta fratricida, outro europeísta, o humanista Erasmo de Rotterdam buscara igualmente a paz e a morte no exílio.
“Erasmo que foi a maior e mais fulgurante glória de seu século, hoje não passa de um nome esquecido”, afirmou Zweig.
Em determinado momento, por volta de 1.500, ele se foi um ícone, uma referência no pensamento europeu, disputado tanto pelos “papistas” quanto pelos “protestantes”, sua opinião sendo requisitada por príncipes e reis. Era o tempo das grandes invenções e dos descobrimentos, da Renascença das letras e das artes, quando a sede de saber corria nas veias da elite intelectual.Um momento histórico propício àquele que inculcava a fé no progresso moral da espécie humana, uma aspiração a que se chegou denominar “erásmica”.
Dentre todos os escritores e criadores ocidentais, ele foi o primeiro europeu consciente, o primeiro pacifista combativo, o advogado mais eloquente de um ideal de união intelectual e internacional. Suas obras, escritas num latim humanístico, que pretendia universal, não abriam brechas aos nacionalismos divisionistas. Dormem quase todas esquecidas nas bibliotecas, talvez com uma única exceção: o seu “Elogio à loucura”.
Um trabalho satírico e caricato, “pois ninguém toleraria seu próximo sem a lisonja, a mistificação, e a transigência recíprocas, e, finalmente, se a todas as coisas não se adicionasse o tempero da “stultitia”, da loucura”. É dona “Stultitia” quem anuncia com habilidade única e mordaz as críticas de Erasmo à Igreja Católica e pressagia o apostolado da futura Reforma.
Erasmo de Rotterdam prezou muitas coisas que ainda hoje admiramos: poesia, filosofia, livros, obras de arte, os povos, a humanidade inteira sem distinções. Só abominou, realmente, o fanatismo e sua irmã siamesa, a intolerância, a seu ver, antíteses da razão. Condenou o fanatismo em todos os campos de seu florescimento espinhoso: no da religião, no das nacionalidades e no das raças, quer ele se ocultasse sob as vestes eclesiásticas ou na de príncipes e reis. O holandês, que não era apegado a nenhum país, considerava-se cidadão de todos eles, o primeiro cosmopolita a não reconhecer a primazia de qualquer nação ou raça perante as outras.
Erasmo desprezava aqueles que exigiam obediência de autômatos às suas próprias posições, aos que tachavam as opiniões contrárias como heréticas ou merecedoras de zombarias. Com todo o vigor de sua mente lúcida, combateu durante toda a vida os preconceitos e buscava harmonizar os contrastes no espírito da humanidade, “pois não encontrava nada de insuperável entre Jesus e Sócrates, entre a doutrina cristã e a sabedoria antiga, entre religiosidade e a ética”. A filosofia era aos seus olhos, uma forma de investigar o espírito tão pura e válida quanto a teologia; a Renascença com sua sensualidade exuberante e alegre não lhe parecia uma inimiga da Reforma, tal qual acreditavam os Calvinos e outros intransigentes.
A independência de seu pensamento era uma de suas convicções; nas atitudes daqueles que subindo ao púlpito ou à cátedra, inculcavam a própria certeza individual como sendo uma mensagem que Deus lhe comunicara ao ouvido, Erasmo encontrava apenas um ultraje à divina diversidade do mundo, diversidade que prezava porque somente ela tornava nosso universo “imenso”. “Nos diferentes repousa a verdade”.
Erasmo julgava que o progresso humano seria possível como fruto do saber; acreditava que se poderiam estimular as aptidões dos indivíduos e da coletividade com a difusão da cultura, dos estudos, dos livros. Que a humanização era a solução para a plena harmonização da vida. “Toda a ideia possui o seu direito e a nenhuma cabe o de proclamar-se como única verdadeira”.
Ele foi o primeiro Reformador germânico; almejava reorganizar a Igreja Católica segundo as normas da razão. No princípio do século XVI, chegamos a assistir à vitória breve e efêmera das ideias desse pensador, o triunfo da razão. Pois ao intelectual de ampla visão, iria se opor um homem de ação, o motor da cega violência das massas, o agostiniano Martim Lutero. De um só golpe, o rude punho de aço do doutor Martim reduziria a pó o que a fina mão de Erasmo traçara com cautela e delicadeza.
A tragédia pessoal de Erasmo consiste em que ele em breve sucumbiria a uma explosão de frenesi nacional-religioso das mais ferozes registradas em toda a história da humanidade, somente suplantada pelos totalitarismos do século XX. E durante centenas de anos o mundo cristão vivenciaria uma luta de morte entre católicos e protestantes, norte contra o sul, alemães contra romanos, numa luta pelo poder das “chaves do evangelho”.
Erasmo foi o único dentre os guias de sua época a não tomar partido em meio a toda a batalha que se deflagrava. Não se aproximou da Reforma luterana e nem da Igreja Católica, pois a ambas se sentia ligado, porque defendia a derradeira unidade espiritual de um mundo em ruínas. Nem ameaças e injúrias da Cúria Romana, nem de Lutero e de seus adeptos moveram o pensador independente a aderir a esse ou àquele partido: “nulli concedo”, até o final de sua vida ele a observou, esse verdadeiro “homo per se”, independente até as últimas consequências.
A história é geralmente escrita pelos vencedores, sendo profundamente injusta com os vencidos. Ela esquece o homem de moderação, o intermediário, o conciliador e adora os aventureiros audazes no pensamento e ação. No quadro gigantesco da Reforma, o apóstolo da tolerância ocupa um segundo plano; os outros todos, possessos do gênio e da crença, cumpririam dramaticamente seu destino.
Lutero reclamava liberdade de palavra e de crença. Ele também simbolizava um momento especial em que as raças germânicas e suas elites queriam integrar-se, impor o seu domínio na Europa Central. Lutero foi o profeta de líderes ainda mais “exaltados” que si próprio, como Thomás Munzer, que em nome do Evangelho se insurgiam contra a Igreja Romana, mas também contra o Império e traziam as massas camponesas ao combate. As palavras que Lutero proferia contra a nobreza e os soberanos convertiam-se em armas de um movimento social que pregava um comunismo primitivo.
Chegada a hora da verdade, Lutero teria que optar. Entre o Imperador e os camponeses revoltados não vacilou em condenar estes à morte mais cruenta, abraçando a causa da autoridade contra o povo. “O asno precisa de pauladas; a plebe deve ser governada pela força”. “Eu, Martim Lutero aniquilei durante a rebelião todos os camponeses, porque tinha a missão divina de aniquilá-los”.
Munzer, o líder da revolta camponesa alemã foi torturado até a morte por tenazes em brasas, numa tortura em que cada pedaço da carne lhe foi arrancada.
Huss pereceu nas chamas, Savonarola na fogueira de Florença e Servet naquela que mandou acender Calvino, o intolerante. Cada um deles viveu sua hora trágica. João Knox, amarrado na enxovia, serviu de pasto aos porcos; Tomas More e João Fisher, na Inglaterra, foram decapitados.
Aos anabatistas arrancavam-se as línguas antes da morte. E atrás deles ardia a chama devoradora da loucura religiosa: os burgos devastados pelos camponeses, as cidades arrasadas em nome de Cristo, as povoações saqueadas pela guerra dos Trinta e dos Cem Anos, verdadeiras paisagens apocalípticas em homenagem à insensatez e à fome, mas fonte de poder para os intolerantes e os gananciosos.
O tempo da tolerância e da negociação pacífica estava terminado. A perseguição aos livres-pensadores e aos dissidentes era decorrência da ditadura do partidarismo, em que cada lado supunha servir à causa cristã com suas armas, fogueiras e carrascos. À Reforma contrapunha-se a Contra-Reforma, irmãs siamesas na intolerância e na desumanidade. A liberdade de pensamento, a paz, a tolerância, princípios básicos da doutrina humanística não encontravam guarida em meio ao sangue derramado. As artes já não podiam florescer nesse solo ardente.
Estaria afastada, talvez para sempre uma verdadeira comunidade internacional, onde as diferenças seriam respeitadas; o próprio latim, o idioma único e sublime de uma Europa unida, a língua predileta do sábio, jazia esquecida e morta. “Morre, pois, tu também, Erasmo”, assim escreveu o humanista de Rotterdam.
Stefan Zweig cresceu em uma Viena tolerante, aberta à diversidade, à literatura, às artes. Assistiu da Suíça ao morticínio da Primeira Guerra Mundial. Dedicou a vida, no período entre as duas guerras, à propaganda de seu ideário de tolerância, de amizade entre os povos. Estava exilado na Inglaterra, fugindo à perseguição que lhe fazia Hitler, quando ouviu de um jovem funcionário: “Os alemães invadiram a Polônia. É a guerra!” “Aquelas palavras caíram em meu coração como golpes de martelo… a tarefa mais íntima em que eu empregara toda a minha força de convicção durante quarenta anos, a união pacífica da Europa, estava liquidada”.
“Quando voltava para casa, o sol brilhava em toda a sua plenitude. Notei minha sombra caminhando diante de mim, assim como via por trás da guerra atual a sombra de outra guerra… Durante todo aquele tempo ela não me deixou, aquela sombra dia e noite perpassou meu pensamento… Mas cada sombra em última análise é filha da luz, e só quem viveu o claro e o escuro, a guerra e a paz, a ascensão e a derrota, somente este realmente viveu!”
Ele e Lotte residiriam à Rua Gonçalves Dias, n.34, em Petrópolis. Descrentes da capacidade da humanidade desfazer-se do fanatismo e da intolerância, profundamente abalados pelos desaparecimentos em campos de extermínio de amigos e parentes, buscaram a morte por ingestão de barbitúrico. Tal qual Paolo e Francesca de Rimini, na visão de Dante, que Zweig tanto estimava, adentraram na eternidade, enlaçados no leito mortuário em 1942.
“Antes de deixar a vida por vontade própria e livre, com minha mente lúcida, imponho-me última obrigação: dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país que é o Brasil, que propiciou a mim e a meu trabalho, tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia aprendi a amar este país mais e mais e em parte alguma poderia eu reconstruir minha vida, agora que o mundo de minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído. Depois de 60 anos são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que eu possuo foram exauridas nestes longos anos de desamparadas peregrinações. Assim, em boa hora e conduta ereta, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a Terra. Saúdo todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes. Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1942.”