Apesar de o Trágico Absoluto ser relativamente raro na literatura, nós o encontramos em duas obras de enorme grandeza que, do passado, espreitam os dias de hoje: “Quincas Borba”, Machado de Assis e “Timon de Atenas” de Shakespeare.
O que podemos denominar de Trágico Absoluto?
São trabalhos literários rigorosamente fundados no postulado da fatalidade da vida humana. Chegam, no extremo, a proclamar que o melhor mesmo é nem nascer e, uma vez sendo inevitável a vida, morrer cedo!
Neles os seres humanos destinam-se a passar por sofrimentos e derrotas, quase sempre, imerecidas; os mais sensíveis são as maiores vítimas, enquanto que aqueles com menor sensibilidade, muitas vezes se alvoram em algozes de outros seres humanos, embora tão pouco estes obtenham felicidade.
Na obra “Quincas Borba”, mais que em qualquer outro romance de Machado de Assis, o mundo não oferece oportunidades àqueles que não se destinam a parasitar outros seres humanos; aos mais ingênuos restará apenas a loucura e a morte na mais completa solidão. Aos espertos e malandros, a ânsia permanente de acumular riquezas e de consumir, consumir sempre num mundo oco de aparências, até o esgotamento.
No trágico absoluto, tanto Machado, quanto Shakespeare, dão razão de sobra a Pascal ao dizer “que Cristo permanece em agonia até o final dos tempos”, conduzido por mãos humanas insensíveis.
“Não se comenta Shakespeare, admira-se”, pois “Shakespeare dá a comer e a beber a sua carne e o seu sangue”. Da mesma forma também o fez, para todo o sempre, o autor desta frase, nosso Machado de Assis.
E essa admiração de Machado se concentra, sem dúvida, na ousadia de Shakespeare.
E esta está no rompimento de preconceitos e paradigmas do teatro e dos costumes de seu tempo.
Acontece que à semelhança do que faz o inglês, Machado também extrapolou, de maneira magistral, metafórica e cinicamente os paradigmas de sua época, época negra da escravidão, da desagregação do Império que é substituído por uma República sob a chibata militar, na sua essência uma continuidade do antigo regime.
Será nas personagens mais “cotidianas” que surgem os grandes dilemas shakespearianos, tais como os de Hamlet e Ofélia, o sofrimento de Romeu e Julieta, a ganância de Macbeth e de sua esposa. No entanto, onde há o tormento e a ruína, prospera afinal a esperança. Hamlet morre, mas será substituído por Fortimbrás, as famílias Capuleto e Montéquio terminam por se entender, Macbeth perde o reino que havia usurpado.
Sempre, em todas as tragédias shakespearianas coexiste o cômico e o drama, e, ao final a esperança, nalgum tipo de resolução dos conflitos.
Mas existe um momento de expressão da absoluta descrença nos valores da sociedade construída pelos homens: ele está na tragédia o “Timon de Atenas”!
Neste texto, inspirado e distópico, o universo é acometido de uma violenta praga: a existência humana!
Em “Timon de Atenas”, nenhuma boa ação é perdoada. Nenhum impulso decente deixa de provocar o escárnio e o desdém. A geração de um ser humano não passa de uma provocação idiota voltada à dor e a traição.
De nosso lado, a criação monumental de “Quincas Borba” se irmana ao Timon shakespeariano.
Diferentemente de todos os romances da fase realística de Machado de Assis, somente em “Quincas Borba” ouvimos o mesmo grito de guerra à maldade que a ganância dos homens pode produzir, assim como o peso da ingratidão e a linha tênue, embora feita do mais puro aço, que separa a riqueza da mais miserável pobreza.
Ao presenciar a história de “Timon de Atenas”, a plateia tem o retrato de uma sociedade corrompida, da qual todos nós fazemos parte, e pela qual somos também responsáveis. Homem de extremamente generosidade, Timon é um cidadão respeitável de Atenas, pela qual lutara de armas na mão e que não mede esforços para agradar amigos, dissipando sua fortuna em presentes, regalos e em ajudas.
Timon era também um grande mecenas, patrocinava políticos, artistas, filósofos, prostitutas, assim como a qualquer um que se dissesse ser seu amigo.
Atenienses ilustres, senadores, desfilam pelo salão de Timon e gravitam em torno dele. O mecenas é cantado, pintado, esculpido, analisado, cultuado e louvado em discursos. A prodigalidade dos elogios ao grande personagem não conhece limites.
Mas sua fortuna findará, ele procurará os amigos, e não receberá nem mesmo uma ínfima parcela da ajuda que, quando rico, tanto ofereceu! Absolutamente nenhuma solidariedade por quem tanto fizera!
Shakespeare expõe a proximidade entre pobres e ricos, separados não pelos valores, mas pelo tamanho da fortuna.
“Timon de Atenas” explode em nós a consciência do egoísmo como uma faceta terrível da corrupção e do cinismo humanos.
Como sempre conviveu com a fartura, a pobreza derruba Timon com força brutal e ele busca na misantropia e na loucura sua ruptura com o mundo, na busca da própria morte.
Talvez um dos monólogos mais significativos do ódio à sociedade dos homens e à cidade que o traíra pode aqui se expressar:
“Ah, muralhas de Atenas, vou olhar pra vocês pela última vez. Vocês, que cercam esses lobos, caiam por terra e deixem Atenas ao deus-dará. Mulheres chafurdem na bacanal. Crianças, não obedeçam mais ao pai. Escravos e idiotas arranquem do plenário os veneráveis membros murchos do Senado e assumam o poder. Virgens em flor convertam-se. Falidos do mundo, “uni-vos” – em vez de pagar as dívidas, puxem da navalha e rasguem a garganta dos credores. Trabalhadores assalariados roubem seus patrões, que são ladrões de mão grande, que roubam também, mas com o apoio da lei. Empregadas, já pra cama do patrão – a patroa ainda não voltou do bordel”.
E ainda: “Que a luxúria e a libertinagem penetrem sutilmente na medula dos jovens, pra que eles nadem contra a corrente da virtude e se afoguem na perdição. Que sarnas e pústulas plantem-se fundo nos corações atenienses, e que a colheita seja a lepra geral. Que o hálito infecte o hálito, e que a amizade destile puro veneno”.
“Não levo dessa cidade execrável nada mais que a nudez do corpo. Que ela fique nua também, debaixo de mil maldições. Timon vai pra floresta, onde a fera mais desumana é mais humana que a humanidade. Que os deuses amaldiçoem os atenienses, dentro e fora dessas muralhas. Que a vida de Timon faça o seu ódio ser eterno. Contra todos os homens do mundo, no Olimpo e no Inferno. Amém”.
Rubião, herdeiro do filósofo “humanistarista” Quincas Borba, “fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista”.
Eis o primeiro parágrafo de “Quincas Borba”. Machado de Assis já introduz a história do ingênuo professor de Barbacena que, inesperadamente, recebe a herança do amigo, cuja morte é descrita em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. A fortuna vem com a incumbência exclusiva do herdeiro de cuidar do cachorro Quincas Borba, cão com o mesmo nome do finado dono.
Rubião se dá a todos que lhe cruzam no caminho com boa vontade, amizade, generosidade extrema.
A história do triângulo formado por Rubião e pelo casal Cristiano e Sofia Palha, conhecidos em um trem vindo da falida cafeicultura de Vassouras, se baseia na sedução de Rubião por Sofia e num adultério que não se realiza, pois ela o considera um caipira, sem o apelo sexual de um jovem da corte.
O casal Palha, todo o tempo, é unicamente movido pela ambição material e pelo desejo da ascensão social. O uso do amor e da sedução servem exclusivamente para a exploração moral e material do outro, que os considerava amigos.
“E assim se dá, porque depois de ter toda sua fortuna sugada pelo casal Palha e por outros falsos amigos, Rubião é descartado por todos. ”
Cristiano Palha é um ‘zangão da praça’, o tipo de especulador financeiro, que surge no Brasil início dos anos 1870.
Na realidade, tanto o casal Palha, quanto o advogado e aventureiro político de nome Camacho, encarnam os valores de uma nova ordem, a da união da política e do capital financeiro, enriquecidos não apenas com especulações financeiras e com a exploração de tipos ingênuos como Rubião, mas também com as patranhas político-militares da Guerra do Paraguai, fonte de tantos corruptos e corruptores, fardados ou não.
O processo de depauperação é sequenciado pelo enlouquecimento de Rubião. Em sua loucura mantém as fortunas que esvaíra por seus dedos, sugadas pelos “amigos”.
Enquanto Timon de Atenas busca na loucura de sua misoginia o ódio a todos os seres humanos, Rubião se acredita imperador, e torna-se objeto de escárnio até mesmo de uma criança, a qual salvara no auge de sua fortuna.
Falido, doente, enlouquecido, nosso Rubião não busca a fuga e morte na mata como Timon o fizera; ele retorna a Barbacena onde morrerá ao lado de seu cachorro, Quincas Borba, que era tudo o que lhe restara da vida. Até mesmo sua morte ocorre às portas de uma igreja que não se abre, afinal, ele era um arruinado.
A solidariedade humana somente se pode encontrar entre os mais humildes servos (atenienses), ou junto à velha comadre de Barbacena.
Afinal, como disse o Pintor, personagem da tragédia shakespeariana, “a não ser entre a gente simples e ingênua, está fora de uso cumprir-se com a palavra dada.”
Diríamos também, toda a dignidade humana, até os dias de hoje.