“Édipo em Colono” ou a reconciliação com a vida em tempos que são de morte.

Sófocles, aos oitenta e seis anos, escreveu “Édipo em Colono” encenada em 401 a.C., após sua morte. A tragédia nos trás um velho e desesperançado ser humano que, ao ser abraçado pela Mãe-Terra, encontra na morte a reconciliação consigo próprio e com as forças da natureza, sendo libertado de toda a dor e do sofrer.

Édipo, o antigo rei de Tebas, após conhecer seu destino e perfurar os olhos, é condenado ao ostracismo completamente dependente: cego e velho passa a vagar ao lado da filha Antígona, que o acompanha na desgraça. A cegueira, a escuridão do corpo, lhe abrira os sentidos da alma. Em vez do jovem que buscava desesperadamente a verdade, temos agora o sábio que despreza a glória e harmoniza-se com o destino e com a natureza.

Não dá mais ordens, apenas questiona; de arrogante que fora, torna-se súplice.

Édipo cego e em andrajos, exilado de sua terra, busca abrigo na agrícola Colono, terra pertencente à cidade de Atenas. Senta-se em um banco de pedras, sobre seus joelhos repousa a filha e irmã, Antígona.

O prólogo de “Édipo em Colono” é o diálogo entre pai e filha nessa terra estrangeira, levados pela mão do destino.

Um transeunte, entretanto, informa-os de que estavam em um local inabitável, pertencente às vingadoras de crimes de sangue, antigas Fúrias, transformadas em Eumênides, agora guardiãs das leis e da ética ateniense. Mas ele mesmo, o cidadão que passa, não se atreve a expulsar os andarilhos sem uma decisão coletiva da cidade democrática.

Édipo, então, suplica às deusas abissais que habitam Colono para que o recebam e lhe permitam a tranquilidade de ali concluir seus dias. Afinal, um vaticínio de Apolo fora seu guia até aquelas terras.

O coro dos anciãos, camponeses atenienses, se apresenta e sugere que saiam da área interdita, habitada pelas deusas; no entanto, lhes garante que deste sítio ninguém os tirariam contra a própria vontade.

Mas tudo se modifica ao saberem que naquele andarilho encontra-se a figura maldita de Édipo. Têm medo de que com seu “vírus” contamine a terra ateniense.

Édipo se defende em três linhas: primeiramente questiona o juízo dos anciãos que representam “a piedosa Atenas, conhecida como singular na proteção aos perseguidos”; depois expõe sua causa: “Como eu poderia ser taxado de mau por natureza, se respondi a agressões?…Se vós estais com os justos, não empaneis o brilho de Atenas com ações injustas”.

Finalmente, propõe uma troca: “Venho revestido do manto da piedade e trago benefícios a vocês, cidadãos de Atenas”.

Aproxima-se do grupo uma figura feminina com um servo. É Ismênia, a filha mais nova de Édipo. Esta conta ao pai e à irmã as novidades de Tebas, ou seja, a luta entre os irmãos, os dois filhos homens de Édipo e Jocasta, pelo poder: o mais jovem, Etéocles, expulsara da cidade o primogênito, Polinices; este, por sua vez, articula com a cidade de Argos um exército invasor para apossar-se e destruir Tebas.

Outra novidade é que, após a expulsão do pai de Tebas, um novo oráculo definiu Édipo, vivo ou morto, como benfazejo à cidade que o amparasse. Diz Ismênia: “Erguem-te agora os deuses que antes te abateram… e Creonte virá te procurar, em breve, por causa deste oráculo.”

Édipo pergunta se os filhos homens compartilham da opinião de Creonte e conclui: “Miseráveis, assim instruídos pensam mais no poder que em minha dor… Para reter-me em Tebas, eu que lhes dei a vida, nada fizeram e fui vilmente expelido… vocês, donzelas me socorreram, enquanto que meus filhos, em lugar de quem os gerou, elegeram trono, cetro, mando e o poder. Não espere que eu os ampare e jamais o cetro de Cadmo ( fundador mítico de Tebas) estará em suas mãos.”

Teseu, o rei de Atenas, chega da cidade e oferece a Édipo sua solidariedade. Édipo lhe assegura que quando morrer, apenas benefícios adviriam da permanência de seu corpo em Colono, onde sepultura que lhe seria dada. Mas Teseu já lhe adianta que tentarão resgatá-lo. Ao que Édipo responde:

“Somente os deuses não são agredidos pela velhice nem pela morte, os demais humanos sucumbem todos à prepotência do tempo… Para uns e para outros, mais cedo ou mais tarde, a amargura ou corrompe os laços fraternos ou se regenera a fraternidade.”

Teseu, representante da cidade que não reconhece os tiranos, oferece-lhe até seu palácio para hospedá-lo, mas Édipo o recusa, pois aquele pedaço de terra é o seu derradeiro lugar. O rei conforta o hóspede, toda Atena o defenderá: “Ameaças severas não passam com frequência de palavras vazias, produzidas pela cólera, mas a razão quando retorna expele as intimidações.”

Sai Teseu e chega Creonte, cunhado de Édipo e rei de Tebas, com numeroso séquito. Tenta convencê-lo a que retorne, oferece-se para proteger-lhe as filhas, declarando-se parente e interessado na sua sorte.

Responde-lhe Édipo: “Encobres intenções abjetas com palavras dignas… a situação é esta: ao faminto, necessitado, ninguém presta ajuda, a graça só interessa aos desgraçados… não queira ludibriar-me com vantagens tolas… Vai, Creonte, e deixa-me viver aqui.”

Perante a negativa, Creonte sequestra as filhas de Édipo para obrigá-lo a voltar a Tebas. O coro de anciãos quer resistir, mas Creonte, dono da força bruta, ordena que seus homens fujam levando Antígona e Ismênia.

Avisado pelo povo Teseu retorna e convoca os soldados para que os homens de Creonte sejam, de qualquer forma, interceptados. Uma vez encontrados, o representante da Atenas democrática diz ao tirano de Tebas: “O que fizeste não dignifica ninguém: nem a mim, nem a ti, nem a teus pais. Penetras num Estado onde se pratica a justiça, onde as leis se cumprem, apossas-te do que te agrada, submetes inocentes e pensas fugir incólume? Julgas que não há homens nesta cidade, que esta é uma terra escrava e que eu não valho nada? Não foi Tebas quem te ensinou vilanias, Tebas não costuma sustentar gente que não respeita as leis… a idade que sobre ti se acumula te enriquece em anos e empobrece em inteligência.”

Trazido perante Édipo pelas forças de Teseu, Creonte despeja sobre o pobre cego suas culpas. Mas Édipo declara-se limpo de qualquer mácula: “Em mim não se encontrara nada digno de castigo. Os oráculos não haviam previsto a meu pai que ele seria morto pelo filho? Se ataquei meu pai e o matei sem saber, o fiz em legítima defesa. Como pudestes denunciar-me por um ato involuntário como se tivesse sido intencional. Não dormi com minha mãe por vontade minha. Não sou criminoso, ninguém poderá acusar-me nem de incesto, nem de parricídio… Mas você, Creonte, gosta de tornar público assuntos privados.”

Pobre Édipo, que destes crimes jamais poderia ser acusado e a prova mais evidente é o abrigo final que lhe é concedido em território pelas deusas, as Eumênides, vingadoras implacáveis dos crimes de sangue.

Édipo está limpo perante a justiça de Zeus! E seus assuntos jamais deveriam se tornarem públicos, pois de nada poderia ser acusado, estando livre também diante da justiça dos homens.

Após a partida de Creonte, o rei de Atenas solicita a Édipo que conceda uma entrevista a um suplicante, que se diz seu parente, vindo de Argos. É o filho Polinices, ao qual o pai declara seu ódio. Antígona e Ismênia insistem em que o receba: “Também outros pais tiveram filhos ingratos… considera não o que sucede agora, mas os males que padecestes, oriundos de teu pai e tua mãe”.

O coro dos cidadãos- anciões declara: “Ricos em anos prosperamos em dores. Foge o prazer de quem rompe as fronteiras de sua medida. Igualando todos, emerge do reino de Hades o fim, sem festas, sem lira, sem danças, a morte é derradeiro limite… quando passa a juventude com seu séquito de futilidades, quem escapa do flagelo das dores e das pencas das penas? Mortes, rebeliões, ira, guerras, inveja… Sobrevém o mais execrável, o íngreme píncaro inefável, a desarmada velhice, o congresso de males com outros males.”

Entra Polinices com um pedido de misericórdia! Que fora despojado do poder pelo irmão Etéocles e, exilado, busca organizar uma expedição punitiva contra a cidade de Tebas. Vem ao pai implorar para que Édipo o apoie, pois os oráculos previram que o vitorioso dependeria do apoio do cego mendicante. Édipo apenas dirige a palavra ao filho em consideração a seu protetor, Teseu:

“Tu, quando tiveste o cetro que hoje está em mãos de teu irmão, banistes teu próprio pai, reduzindo-me ao ostracismo (para o cidadão grego esta pena somente era suplantada pela condenação à morte) e me cobristes de farrapos que te provocam lágrimas somente agora em que caístes no abismo em que te lançastes…. Não tomarás jamais aquela cidade; teu sangue manchará a terra junto com o do teu irmão. As maldições que lancei contra os dois, chamo-as agora como companheiras de guerra para que ensinem aos filhos respeitar os pais… Eu te renego!.. Este é o presente de Édipo aos seus dois filhos.”

Antígona tenta persuadir, em vão, o irmão de abandonar o ataque à sua própria cidade e fugir à própria destruição. Polinices, entretanto, parte e ouvem-se trovões e o céu relampeja.

Édipo solicita a presença de Teseu, pois pressente que é chegada a hora de sua morte.

“Teseu, não reveles jamais a ninguém o lugar para onde eu te conduzirei e que será o de minha morte. Revelar-te-ei segredos que permitirão que tua cidade esteja para sempre protegida contra as sementes do dragão (referia-se a Tebas)… Não permita que a loucura te afete, não te apartes do sagrado… Eu caminho guiado por Hermes (deus condutor das almas), a última etapa antes de sumir no invisível, e tu, o mais querido dos estrangeiros, tu, este povo e esta terra, que a aventura vos acompanhe! Florescei em infinita prosperidade!”

Entram os dois mata adentro.

O mensageiro retorna e, ao anunciar a morte de Édipo diz que o cego conduziu a todos junto a determinada pedra, quando despiu as vestes enxovalhadas, e ordenou às filhas que lhe trouxessem água para banho e libações. Satisfeitos seus últimos desejos, ouviram-se os ribombares de Zeus, e ele, apertando-as nos braços, disse:

“A partir de agora não tendes mais pai. Extinto está tudo o que eu fui. Uma última palavra filhas: jamais alguém vos deu o afeto que tivestes deste homem que agora vos é arrebatado por toda a vida.”

Eis que uma voz divina se fez ouvir apressada: “Édipo, quando é que partiremos?” “Édipo ficou só com Teseu e quando os olhamos a certa distância o seu lugar estava vazio. Não foi extinto por fogo celeste, nem por tempestade vinda do mar, nem levado por algum mensageiro. A terra benigna se fendeu para dar-lhe suave repouso. Este homem partiu sem gemido algum, sem tormento ou enfermidades.

Chegam as filhas que o lastimam: “Tenho saudades das contrariedades de então. O indesejável de ontem me é desejável agora… Sinto-me tão só, longe de mim… Prisioneira da dor.”

Entra em cena Teseu: “Cessem o pranto, filhas. Tem sentido chorar aquele que repousa coroado com o reconhecimento de todos?… Podeis contar comigo. Farei tudo que for benéfico a vós e ao que a terra abriga para o vosso bem. Nunca deixarei de cumprir o meu dever.”

O Corifeu encerra a tragédia: “Cesse o pranto, está tudo certo agora!”

A morte e suas questões constituem o centro de toda a tragédia de “Édipo em Colono”. Para onde vamos depois da morte? A natureza que nos gerou nos abraçará como a terra tragou Édipo? A morte nos conduz à última e definitiva aporia, de onde nenhum caminho se vislumbra?

O mistério é parte da morte assim como o é a mensagem que Édipo diz ter para Teseu, jamais dizível. Penetrar nos bosques de Colono, de braços com Édipo, refletir após toda uma vida de lutas e ações, harmonizar-se com a própria vida na hora da morte, MORTE QUE, ENTÃO SE FAZ ESTÉTICA.

Basta, fechem-se as cortinas, nem mais uma palavra!

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