Dom Quixote, de Cervantes: a liberdade, a revolta e a ética; a melancolia e a morte! Um romance que jamais perecerá!

“A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus; não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens”.

“Don Quijote de la Mancha”, o romance que Miguel de Cervantes escreveu há quatro séculos, é um emblemático do termo Clássico: em uma única palavra, chamar clássico a um livro implica que sua compreensão nunca será completa e acabada, e sua significação sempre permanecerá renovada através do tempo. A crônica “serventina” de Dom Quixote é nosso clássico por antonomásia e um dos mais indiscutíveis da literatura Universal.

Deste modo, toda chave interpretativa da obra, que sempre será outra mais, na maioria dos casos de repetição, porém, será mais ou menos travestidas de algo que já foi dito; ou seja, como se fosse um azulejo somado a construção inacabável de uma torre de Babel, sem Deus a destrua.

Acreditamos que o núcleo da grande novela pode se encerrar em umas poucas palavras de  Sancho Pança, aflito ao final da mesma, junto ao leito no qual agoniza quem tem sido durante tanto tempo e com tantos infortúnios, o Senhor do seu desespero, D. Quijote: “não se mova vossa mercê, meu senhor, pare de chamar a morte e tome meu conselho, e viva muitos anos porque a maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer, sem mais nem mais,  nas mãos da melancolia.”

 Essa é a mais importante mensagem de todo o livro: um momento em que, por fim, o escudeiro compreendeu a missão aparentemente absurda do cavaleiro andante, revelação que a ele chega, precisamente, quando Dom Quixote abandona suas ilusões e se resigna a morrer.

 Compreende Sancho que todo o empenho quixotesco consistiu numa prolongada batalha contra a necessidade mortal que agoniza o homem: um não se deixar-se morrer, um resistir à a paralisação da rotina, sem permitir que o realismo, pouco a pouco seja o agente aniquilador do espírito e do corpo.

 A vida do “Cavaleiro da Triste Figura” fora toda uma aventura, mas um capricho Indomável; era uma espécie de demência se é que admitimos que a vida estriba em reconhecer e acatar a necessidade, mas uma demência salvadora de nossa humanidade, de nossa categoria de seres vivos!

 Dom Quixote é o santo patrono e o marco da invenção humana em encontrar propósitos para a vida, pois se não somos insignificantes, se o que nos caracteriza é a liberdade e o que nos condena a necessidade, a verdadeira loucura consiste em deixar de cavalgar e se deixar morrer na melancolia.

Que cada um de nós morra por causa de algo exterior, do mal encontro que finalmente todos fazemos antes ou depois, segundo advertência de Spinosa “da conspiração e oportunidade do que não somos e daquilo que nos enfrenta”: mas nunca aceitemos morrer de simples renúncia de viver como humanos, vítimas da enfermidade do “não tem mais remédio” e às mãos da letal melancolia, porque tal dimensão é a verdadeira loucura, a loucura sem emenda nem perdão, a loucura cuja verdade não mente mas nos desmente e aniquila.

 E aqui o entusiasta Sancho, em face de seu D. Quixote, autointitulado “ inimigo da morte”, celebra o momento da iluminação final de seu Escudeiro: “Oh, Heroico Sancho Pança, como poucos advertem o que ganhaste no cúmulo da loucura quando o teu amo se despencava no abismo da insensatez, e que sobre seu leito de morte radiava a tua fé; tua fé Sancho, a fé de ti, que não morreste, nem morreu, nem morrerá. Dom Quixote perdeu sua fé e morreu: tu a recuperaste e vives; era preciso que ele morresse em desengano, para que em engano vivificante tu vivas. ”

Para negarmos a morte, temos que escolher uma utopia, uma cruzada, revoltarmo-nos contra a realidade que se nos apresenta, buscarmos um propósito que se queira invulnerável e que nos faça andar sobre a face da terra, a nós, que nos sabemos mortais, que o único certo e inapelável que conhecemos é nossa mortalidade irreversível, de tal maneira que sigamos agindo como se fôssemos inacessíveis à própria morte.

 Segundo Kant, o projeto moral humano não consiste em chegar a ser feliz, mas sim, fazermo-nos dignos da felicidade; do mesmo ponto de vista, Cervantes entende que o projeto moral humano não estriba em nos convertermos em Imortal, se não em viver como se merecêssemos a imortalidade, como se nada em nós estabelecesse cumplicidade com a morte ou se rendesse à sua vassalagem, uma das consequências da melancolia.

 A saudável uma loucura quixotesca opta por pela cavalaria andante, mas outros muitos outros caminhos vitais são imagináveis e não menos eficazes.

 Formulou muito bem outro herdeiro de Dom Quixote, Gilbert Chesterton, “combater o mal é a origem de todo prazer e de toda a diversão”. (A taverna errante).

Identificar o mal e romper lanças contra ele, chame-se a este de insatisfação ou de feitiçaria, injustiça ou prepotência, carência, aborrecimento ou escravidão: e nisso consiste o verdadeiro contentamento do hedonista não submisso e criador.

 E sua diversão também; desde logo alguém já assinalou, que com todos os seus quebrantos e frustrações, o louco Don Quixote sempre dá impressão ao leitor de divertir-se prodigiosamente cometendo loucuras. Por isso mesmo também torna divertida a grande novela aos leitores.

Fica clara a identificação criminosa da melancolia através da fala Sancho: é o que nos mata desde dentro, sem colaboração nenhuma de mão alheia, quando enlouquecemos de tristeza.

Creio que não há pior leitura de Quixote que aquela dos românticos e depois, de contemporâneos, que o convertem em um livro melancólico. Não ele não é: em verdade o objetivo da história, não o objetivo de Dom Quixote, nem o de Sancho Pança, senão o objetivo de Cervantes é denunciar e combater a melancolia.

A melancolia é a enfermidade mortal que nos afrouxa, no sentido literal do termo: a enfermidade própria de quem se sabe mortal! E desde o realismo da necessidade, compreende a inutilidade de todos os esforços humanos.

Façamos o que façamos, sempre será insuficiente e sempre ficará demasiado por fazer: A conspiração injusta do universo terminará sempre por nos aborrecermos; o melancólico não é que não se tenha os pés sobre a terra, senão que os tenha já fundidos na terra, cravados nela e aprisionados até a imobilidade: a melancolia nos obriga a viver com o pé na tumba.

O humorismo de Cervantes desafia a melancolia! E propõe a um personagem delirante bravo que se enfrenta a ela, tentando emendar o mundo, conquistar o amor perfeito, denunciar a conspiração a que nos submete o peso tremendo das coisas, e praticar com elegância a mais alta forma de amizade

A diversão da parábola está em que não é a crônica de um fracasso, se não de um êxito palpável e tenaz: Alonso Quijano se converte em Dom Quixote para escapar da melancolia mortal que ameaça meio mundo quando alcançamos a idade e consegue! Enquanto se mantém quixotesco, vive faz viver com intensidade tudo a seu redor, ainda que fracasse nos desempenhos, porque o que conta é o ânimo que o move e não os resultados que sempre voltam antes ou depois contra nós mesmos!

O projeto ético nunca fracassa quando não se pode vencer ao mal, dado que sempre haverá velhos e novos males a se enfrentar. O verdadeiro e único fracasso da ética é não poder vencer a preguiça paralisadora e nosso Fidalgo é qualquer coisa menos preguiçoso, não morre de quixotismo se não quando renuncia finalmente a se-lo e voltar a ser um Alonso melancólico. E dessa forma, o Cavaleiro que foi e que a nostalgia de Sancho Pança reclama, se converte em um paradigma do esforço humano.

Cervantes não escreve sua novela para burlar-se de Don Quixote, senão para ridicularizar aqueles que burlam dele.

 Dom Quixote é uma obra festiva e não um lamento fúnebre sobre a condição humana!

 No primeiro volume de sua autobiografia, Bertrand Russell refere-se como em sua infância escutava admirado as grandes risadas de seu avô, Lord John Russell, solene ministro da Rainha Vitória, quando de seus momentos de ócio, lia Don Quixote. Ler a novela de Cervantes era uma realidade sã que honrava o seu avô, mas não sua perspicácia. A resposta humorística que compreende melhor a condição de Dom Quixote deveria ser mais tênue em sua manifestação, e mais funda em seu alcance.

Ao final da novela, nós mesmos nos comportamos com Sancho Pança: compreendemos seu desconcerto e seu passageiro desânimo. Mas queremos com todas as nossas forças que ELE prossiga. Por isso sorrimos para, para animar-lhe e sermos animados.

A qualificação da liberdade.

Se há um traço que marca a personalidade de Dom Quixote, é a defesa incondicional que o herói cervantino faz da liberdade. O ponto essencial do seu programa cavalheiresco é a ética da honra, que se centra na defesa da liberdade individual. Liberdade de ir e vir, liberdade de não ser importunado pelos burocratas do rei, liberdade de amar e de folgar com os amigos, liberdade para os cativos, liberdade das amarras da Contrarreforma, expressas nos preconceitos e barbárie inquisitorial.

Cervantes não poderia ser mais claro: “a liberdade é individual e exige um mínimo de prosperidade para ser real. Porque quem é pobre e depende da dádiva ou da caridade, nunca é totalmente livre”.

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