Carlos Gomes e Luís Jatobá: a alma e a voz de “A Hora do Brasil”

“A Hora do Brasil” foi criada no governo de Getúlio Vargas entrando no ar, diariamente, em julho de 1935, primeiramente sob o nome de “Programa Nacional” e, logo após, como “A Hora do Brasil”. A ditadura militar de 1964 rebatizou-a de “A Voz do Brasil”. Que agora, completa 85 anos de existência!

O programa radiofônico mais antigo da América do Sul teve por primeiro apresentador ninguém menos que o inesquecível Luiz Jatobá. Sua entrada no ar era precedida pelos acordes vibrantes e inconfundíveis da protofonia da ópera “O Guarani”, de Antônio Carlos Gomes. Durante o Estado Novo, em 1938, o noticiário passou a ter veiculação obrigatória em todas as emissoras de rádio do país, sempre no horário das dezenove horas.

A ditadura de 1964, para marcar presença, não somente lhe modificou o nome, mas também seu conteúdo. Em 1971, por decreto de Garrastazu Médici, a “Hora do Brasil” transformou-se em “A Voz do Brasil”, nome que é mantido até os dias de hoje, pese a programação haver sido modificada na democracia.

Mas nosso ensaio não deseja focar o programa radiofônico, e sim os homens que, emprestando sonoridade e espírito à “A Voz do Brasil” , transmitiram-lhe vida e perenidade, ganhando lugar nos corações e mentes de gerações e gerações de brasileiros: falaremos sobre o maestro e compositor Carlos Gomes e sobre o primeiro e magistral locutor, Luiz Jatobá!

O caipira Antônio Carlos Gomes, que assinava nhô Tonico em suas dedicatórias, nasceu em Campinas, no ano de 1836, na casa humilde de um mestre de bandas. Destacou-se pelo estilo romântico e dramático de suas composições. Tornou-se, aos trinta e cinco anos, o primeiro compositor brasileiro a reger uma de suas obras no Teatro Scala de Milão, a imortal “Il Guarany”. Foi, sem sombra de dúvidas, o mais importante compositor operístico brasileiro.

A vida desse homem simples, verdadeiro gênio musical, foi desde o princípio marcado pela dor. Ainda criança perdeu a mãe tragicamente assassinada. Seu pai, músico, levava uma vida de dificuldades. É na banda do pai, que Carlos Gomes vai fazer, em conjunto com seus irmãos, as primeiras apresentações em bailes e em concertos. O pão do dia-a-dia ganhava com o dinheiro obtido costurando calças numa alfaiataria.

Ao completar 23 anos, decidiu viajar ao Rio de Janeiro e matricular-se no Conservatório de Música. Ainda costurava para manter-se; foi com a conivência de diretores da Instituição que passou a frequentá-la irregularmente, sem pagar mensalidades. Mas o Conservatório seria amplamente recompensado por essa ação benemérita.

Em setembro de 1861, o Teatro Lírico Fluminense abriu-se para a primeira ópera do jovem campineiro. “A Noite do Castelo” obteve uma receptividade estrondosa e Carlos Gomes foi levado para casa em triunfo por uma entusiástica multidão que o aclamava sem cessar.

Dois anos após apresentou um novo trabalho, a ópera “Joana de Flandres”, que teve no camarote a aplaudi-lo ninguém menos que o Imperador D. Pedro II. O Imperador, que já o agraciara com a Imperial Ordem da Rosa, viu no moço um futuro mais promissor para a ópera em nosso país. Ainda aluno do Conservatório, Carlos Gomes foi convidado a terminar seus estudos na Europa, a expensas do Governo. O sentimento de gratidão de nhô Tonico para com o Imperador seria por toda a vida. Em 1866, Carlos Gomes recebia, em Milão, o diploma de maestro e compositor.

O acaso muitas vezes nos prepara grandes surpresas. Carlos Gomes desejava ardentemente um tema brasileiro que pudesse trabalhar na linguagem de Verdi. Certa tarde, em 1867, passeando pelo “duomo” de Milão ouviu de um vendedor: “Il Guarany! Il Guarany! Storia interessante dei selvaggi del Brasile!”

Era a primeira tradução para o italiano do romance de José de Alencar; o maestro adquiriu-o e buscou por um libretista que o transformasse numa peça teatral. E, assim, surgiu a ópera “Il Guarany”, com estreia consagradora no teatro Scala, em março de 1870. O grande Verdi, nesta noite memorável, teria dito a respeito de Carlos Gomes: “Questo giovane comincia dove finisco io!” (“Este jovem começa de onde eu termino!”).

Na noite de 2 de dezembro de 1870, aniversário do Imperador D. Pedro II, em grande gala, “O Guarani” foi levado à cena no Teatro Lírico Provisório, no Rio de Janeiro. O maestro viveu horas de intensa consagração e emoção.

Novas apresentações se sucederam e em uma delas o maestro ficou conhecendo o médico André Rebouças, que o apresentaria a José do Patrocínio e a outros abolicionistas. Seriam amigos e correligionários por toda a vida.

No ano seguinte, ele retornaria à Itália, onde comporia e regeria “Fosca”, que é considerada pela crítica a sua obra-prima. Posteriormente surgiriam ainda “Salvador Rosa” e “Maria Tudor”.

Casara-se com uma italiana e com ela tivera cinco filhos. A fortuna, entretanto, sorrindo-lhe profissionalmente, destruía-o pelas dores de perdas consecutivas. Um a um de seus filhos foram morrendo em tenra idade, acompanhados em seguida pela esposa. Na velhice restar-lhe-ia o filho Carletto, que a tuberculose também levaria na juventude; uma única filha, Ítala, a ele sobreviveria e foi sua biógrafa.

Já ao final dos anos 70, Carlos Gomes perseguia a sobrevivência. Abalado por seguidos e profundos desgostos, doente, desiludido, procurava uma situação que lhe permitisse viver em sua pátria e ser-lhe útil. Ainda comporia a grande ópera “Lo Schiavo”, O Escravo, levada à cena pela primeira vez, em 27 de setembro de 1889, no Rio de Janeiro, com grande sucesso.

Carlos Gomes contava não mais retornar à Itália. Mas a vida deu-lhe outro destino. Estava à espera de sua nomeação para o cargo de diretor do Conservatório de Música, quando foi proclamada a República, e seu grande amigo e protetor, D. Pedro II, exilado. Ninguém, por interesse ou por temor dos militares, aceitou, em nenhuma das províncias, empregá-lo. Os insignificantes da época diziam que ele abandonara a Pátria, que desprezava até mesmo o idioma português em suas composições. Acontece que toda quase toda ópera era produzida em dois idiomas: italiano e alemão.

Em 1889, após as exibições no Rio, ele transporta sua companhia operística para São Paulo e de lá retorna endividado. As elites paulistas preferiam adular os novos donos do poder e o “positivismo nacionalista” de um Floriano Peixoto.

De todas as calúnias de que foi vítima a que mais lhe doeu foi a que se levantou sobre sua pretensa falta de patriotismo. “Tenho sofrido ultimamente muitos desgostos… De minha parte nada espero do futuro, porque sou muito caipira, não fui feito para adulador”.

Em 1890 vende os direitos de onze peças musicais, inclusive, “O Guarany” e “O Escravo”, para pagamento de dívidas. Sem dinheiro e sem emprego, voltaria ainda uma vez à Itália, “pois lá ainda tinha algum crédito com amigos”.

O câncer de língua e garganta nessa época já o faziam sofrer dolorosamente. Todavia, as desilusões, as decepções, a ingratidão de seus compatriotas e as dores físicas não lhe haviam quebrado a resistência. O combatente ainda não tombara. Estrearia duas óperas no Scala de Milão, a “Condor”, com grande êxito, uma peça mais próxima do recitativo moderno e “Colombo”, em 1892.

Em 2 de fevereiro de 1895, escreve: “ É triste, cômico, gastar até o último vintém para no fim ficar prisioneiro de uma feroz inimiga: a Miséria!”

Finalmente, após tanto sofrimento, em 1896, chegou-lhe um convite de trabalho. O bravo Lauro Sodré, governador do Pará, pediu-lhe para organizar e dirigir o Conservatório daquele Estado. De viagem marcada para Belém do Pará confessa: “ No Rio não me querem nem para porteiro de conservatório! Em São Paulo, em Campinas idem. No Pará, porém, me querem de braços abertos…Não me querem no Sul, morrerei no Norte… Que me importa, é tudo terra brasileira, amém!”

Embarca, no vapor Óbidos, para o Belém. De passagem por Funchal, tem o prazer de abraçar seu velho amigo, o médico e abolicionista André Rebouças, ali exilado pela República.

Em 14 de maio, foi recebido pelo povo paraense com enternecedoras manifestações de carinho. Diante de seu estado de saúde, pouco antes de morrer, o governo de São Paulo autorizou uma pensão mensal de dois contos de réis, enquanto ele vivesse. Mas o emprego e o dinheiro tão arduamente perseguidos chegaram-lhe tarde; o pão tantas vezes pedido já não lhe acharia a boca que o ingerisse. Uma única vez ele saiu do hotel e foi até o Conservatório de Música, que nunca chegou a dirigir. Cercado por amigos, com o governador Lauro Sodré à cabeceira, Carlos Gomes morreu no dia 16 de setembro de 1896.

Dois dias depois do falecimento, o corpo do maestro foi transferido para o Conservatório de Música. O cortejo varou a noite de Belém. O carro funerário foi conduzido pelo próprio povo, numa insólita romaria anunciada pelos acordes de “O Guarani” e iluminado pelas velas e archotes levados pela população.

Sua música perpetuou-se em “A Hora do Brasil”. Apenas durante a ditadura militar, em 1972, a abertura de “O Guarani” foi substituída pelo Hino da Independência do Brasil, patrocinado pelo português D. Pedro I. Com a redemocratização, “O Guarani” voltou a ocupar o seu lugar.

O alagoano Luiz Jatobá, a quem coube a narração oficial de “A Hora do Brasil”, trabalhou no rádio brasileiro por quarenta e cinco anos, tendo influenciado a formação de gerações de locutores não apenas de rádio, mas também de cinema, televisão e vídeo. Jatobá era dono de uma das mais célebres vozes de todas as Américas e o mais famoso timbre vocal masculino do Brasil.

Sua voz era privilegiada para locuções radiofônicas e cinematográficas. Luiz Jatobá, em 1940, foi locutor da CBS (Columbia Broadcasting System), de New York. Tornou-se o locutor a transmitir notícias da Segunda Guerra Mundial em trailers cinematográficos para a companhia Metro Goldwin Mayer.

E Jatobá influenciou gerações de locutores, não apenas de rádio, mas, posteriormente, de cinema, televisão que o veneraram como o dono do mais famoso timbre vocal masculino brasileiro. Além disso, a voz grave desse locutor, que era médico ortopedista nas horas vagas, esteve associada aos trailers hollywoodianos exibidos por anos a fio nos cinemas brasileiros, assim como a lances decisivos do futebol carioca, apresentados no “Cinejornal Canal 100”, ao som introdutório do “Que bonito é…”.

Luiz Jatobá também atuou na televisão e comandou a primeira edição do “Jornal Hoje”, ao lado de Léo Batista, o precursor do “Jornal Nacional” da TV Globo.

Na década de setenta, durante a ditadura militar, Luiz Jatobá, já aos sessenta anos, sofreu perseguição política e foi ameaçado de prisão e tortura. Decidiu emigrar para os EUA, onde retomou para viver à gravação de “trailers de cinema”, até falecer, triste, solitário e empobrecido em 1982.

Se a Alma e a Voz de “A Hora do Brasil” pertencem a um passado cada vez mais distante, este jamais poderá ser olvidado. Com seus esforços, suor e lágrimas, o noticiário obrigatório para todas as emissoras de rádio, antes no horário fixo das 19,00 às 20,00 hs., ajudaram a construir o mundo que herdamos e que os negacionistas de hoje buscam destruir.

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