Bulgakov, o ucraniano: o fantástico que espelhou a desagregação do socialismo e a criação de Putin!

Foi a geração dos grandes artistas e intelectuais da década de 1890 que produziu o maior literato e dramaturgo simbolista russo: Mikhail Bulgákov!

Ele era dono de um simbolismo todo especial, definido por Franz Roh, em 1925, como “realismo mágico”, e quase meio século depois, adotado pelos principais escritores latino-americanos sob regimes autoritários, como Cortazar, Vargas Llosa, Garcia Marques e Bioy Casares.

O ucraniano Bulgákov insinuava literariamente as coisas, os homens, as situações e a realidade em que vivia. Como numa espécie de contraponto ao realismo de um Pasternak, trouxe o fantástico para o mundo soviético e a metáfora daquilo que seria o mundo pós-soviético.

O quarto moscovita onde residia o escritor Mikhail Bulgákov com sua esposa ficava no corredor de um prédio senhorial, coletivizado após a Revolução. Um dia, a administradora do imóvel, de tão ansiosa quase arrombou a porta de seu quarto pela manhã, anunciando que alguém no Kremlin estava ao telefone. Ainda sonolento, Bulgákov atendeu:

“Agora o camarada Stalin vai lhe falar”.

Deveria ser uma brincadeira, e ele bateu o telefone, que, no entanto, voltou a soar, insistente. Do outro lado, a voz branda e adocicada do “Pai dos Povos” disse ao escritor: “Como vai, camarada Mikhail Afanasievich? Li sua carta, talvez tenha razão em algumas coisas, mas o camarada deve estar com nojo de nós. Está pedindo para deixar o país […]”. Bulgákov sentiu o golpe, uma possível sentença de morte, e respirou fundo antes de responder-lhe: “Eu tenho pensado muito ultimamente, mas pode um escritor russo viver longe da pátria? Não, não pode. ”

Stalin o retrucou de imediato: “Tem razão. Se quer ficar conosco diga-me se ainda deseja trabalhar no Teatro de Arte”. Perante a afirmativa, o líder prosseguiu: “Envie um requerimento para o teatro, agora eles o aceitarão. E precisamos nos encontrar para conversar”.

Bulgákov animou-se: “Quando, camarada? ”. Respondeu-lhe Stalin: “Vamos ver, vamos ver”. Bulgákov tentou inúmeras vezes novo contato com o líder soviético, mas foi em vão. Escreveu-lhe nova e novamente sem nunca obter outra resposta.

Quiçá, o grande recado que ele teria para Stalin estaria contido na obra-prima em que ele se debruçaria nos últimos de dez anos de vida, o romance O mestre e Margarida. Entretanto, o romance permaneceu escondido até mesmo de sua esposa e dos amigos mais próximos, vindo à luz somente no princípio do ano de 1960, sendo publicado trinta anos após a morte do escritor!

Pois foi esse romance que permitiu que a literatura soviética ganhasse novas e desafiadoras cores. Pode-se mesmo dizer que, com sua publicação, o próprio Simbolismo se revolucionou!

Bulgákov, nascido na Ucrânia, jamais se considerou russo; era médico quando eclodiu a Primeira Guerra; nacionalista alistou-se como voluntário na Cruz Vermelha, atuando no front de 1916 a 1917. Quando explodiu a guerra civil após a Revolução Russa, ele serviu como médico no Exército Branco. No entanto, ao contrário de seus irmãos, um ano após o início dos combates, abandonou a contrarrevolução e decidiu se integrar ao Socialismo e permanecer na Rússia Soviética.

Cansara-se para sempre de conviver com a morte e a violência, definia-se por tratá-las apenas metafisicamente, pela linguagem. Larga para sempre a medicina e torna-se jornalista. Em 1921, muda-se para Moscou, onde inicia o trabalho de escritor e teatrólogo. Publica vários trabalhos durante a década de 1920, até que por volta de 1926 começa a sofrer acusações de comportamento literário antissoviético.

Como frutos de sua magia criativa, seus escritos eram a essência de um simbolismo modernista que nada tinha a ver com o “realismo socialista”. Não tardou muito para que suas críticas ao sistema soviético, advindas de metáforas, provocassem reações.

A primeira execração pública veio através do Izvetia quando Larissa Reissner, a mulher-símbolo do socialismo soviético, acusou Bulgákov de traição à pátria, num artigo intitulado “Contra o banditismo literário”. A seguir, foi Lunatcharski, que no Rabotchaia Moskva conclamou: “Derrotemos o bulgakovismo! Desarmemos o inimigo de classe no teatro, no cinema e na literatura”.

Imediatamente, o romance D’yavoliada foi retirado de circulação. O conto “O ovo fatal” não encontrou editor que o publicasse e A guarda branca (que nada tinha a ver com a guerra civil e que era publicada em fascículos pela revista Rossiia) levou o periódico ao fechamento.

Bulgákov, mesmo proibido de editar, preparou um novo livro em segredo, destinado a ser uma sátira mordaz e agressiva ao mecanicista conceito de o “homem novo soviético”, Coração de cão, um ser do futuro!

Coração de cão foi escrito em 1925, mantido escondido dentro de um forno por décadas e apenas publicado na União Soviética em 1987, com a Perestroika. Um cientista especializado em rejuvenescimento faz uma experiência em um cão vadio, depois de ganhar sua confiança. O professor realiza vários transplantes e manipulações genéticas, e, no futuro, produz um homúnculo chamado Polygraf Polygrafovitch Sharikov: o mais arrogante, perfeito e acabado idiota com que qualquer burocrata poderia ter sonhado! Mal pela própria desumanidade canina!

Como Polygraf se auto intitula amante do proletariado, o professor vê-se perseguido por comitês e comissões estatais proletárias, deslumbrados com o cão que se transformara em “um homem novo”, numa experiência de laboratório que pensavam em centuplicar e reproduzir ao infinito.

A vida muitas vezes imita a arte. Polygraf Polygrafovitch Sharikov constitui um exemplar literário que a vida buscou imitar, na figura de Vladmir Putin, quase um século depois!

A censura e a impossibilidade de publicar obrigaram Bulgákov a trabalhar na escrita e montagem de peças teatrais. Submetendo-se a cortes, encenou Os dias de Turbini. Por incrível que pareça, Stalin, que já censurara seus livros, apaixonou-se pela peça, chegando a assisti-la 12 vezes.

Não obstante, em 1929, outro jornal soviético estampou: “Os teatros se libertam das peças de Bulgákov”.

A partir desse momento, sua carreira estava destruída; toda e qualquer manifestação de trabalho intelectual do artista foi proibida. Sem nem mesmo registro sindical, pois o Sindicato dos Escritores Proletários retirara sua carteira, Bulgákov e a mulher chegaram a passar fome, coletando restos de comida pelas ruas. Em desespero, apelou a Górki para que ao menos conseguisse uma autorização para eles viajarem para o exterior, a fim de se reunirem com os irmãos em Paris.

“Tudo me foi proibido, estou na miséria, acossado, em completa solidão”.

Em 1930, ele escreveu, aconselhado pelo amigo, o teatrólogo Zamiatin, uma longa carta à burocracia soviética e a Stalin. Em um de seus trechos, confessa que:

a luta contra a censura, seja esta qual for e qualquer que seja a autoridade, é meu dever de escritor, como o são meus apelos à liberdade de imprensa. Sou um adepto fervoroso dessa liberdade e suponho que um escritor que pensasse em demonstrar que ela não lhe seria importante, este seria como um peixe que declarasse não necessitar de água.

Stalin leu e, provavelmente, conversou com Górki. Em seguida, realizou aquela ligação telefônica que pegou de surpresa o escritor. Como consequência dela, no dia seguinte, o teatrólogo foi recebido de braços abertos no teatro e nomeado diretor-assistente. No entanto, apesar de seu trabalho, os projetos que realizou não alcançaram um sucesso maior, sendo constantemente submetidos a cortes e censuras, outras vezes a apupos de jovens konsolmols.

Por interferência de Górki, ainda atuou algum tempo no Teatro Bolshoi como roteirista, mas demitiu-se depois de seus roteiros não terem sido produzidos. Até mesmo suas adaptações de peças clássicas, como as de Shakespeare, foram censuradas e recusadas.

Na pobreza em 1936, durante o clima terrível dos processos de Moscou, Bulgákov tentou uma jogada de mestre. Se por um lado, ele segredou à esposa “é minha esperança de sobreviver”; por outro, nutria esperanças de que Stalin, um dia, ainda se desembaraçaria dos demônios burocráticos que o impediam de ser “um homem justo”. Ele acreditava sinceramente no Grande Líder.

Escreveu uma peça teatral que denominou de Batum, tendo como referência um porto do mar Negro onde, em 1902, Stalin comandara uma greve terrivelmente reprimida pelo czarismo. Stalin seria o grande herói. Com a atriz Helena Chilovskaia, sua terceira esposa, parte com toda a direção do teatro para a preparação da montagem, naquilo que se pretendia ser uma homenagem ao sexagésimo aniversário do comandante. No meio do caminho, entretanto, uma ordem originada de Moscou fez com que todos retornassem.

Convocado, Bulgákov soube que o partido considerava inaceitável que Stalin fosse exposto no teatro como um “herói romântico”, dizendo palavras e situações inventadas pelo teatrólogo.

Foi ao desespero. Escreveu para um amigo:

“Nos últimos sete anos conclui dezesseis obras de diferentes gêneros, e todas se perderam. Em minha casa há trevas e uma absoluta falta de perspectivas, nem velas posso mais comprar”.

A seguir, o fundador do realismo mágico russo desenvolveu uma doença neurológica grave e degenerativa, que o deixaria praticamente cego e sem movimentos voluntários, conduzindo-o à morte, em 1940.

Nesse período, em que pesem todos os sofrimentos e dificuldades, trabalhou com o auxílio da esposa todos os dias e noites na obra-prima iniciada em 1928, O mestre e Margarida, cujo primeiro manuscrito fora por ele mesmo queimado em 1930, por medo da N.K.V.D..

A primeira impressão do livro sem cortes ocorreu somente em 1974. Foi um incrível sucesso! O antigo apartamento do escritor em Moscou, no qual se passa parte da trama, virou local de culto por parte da juventude soviética. No final da década de 2000, o apartamento foi transformado no Museu Bulgákov.

O Mestre e Margarida, na URSS de ontem e nos dias de hoje.

O romance trata do combate metafísico entre o bem e o mal, a inocência versus a culpa, do consciente e do inconsciente, da ilusão e da verdade, e, fundamentalmente, da liberdade de espírito num mundo autoritário, assim como da irresponsabilidade daqueles que, embora tenham autoridade, tentam fugir ou negar a realidade dos fatos.

A epígrafe é tirada do Fausto, de Goethe, que influencia todo o desenvolvimento do roteiro. Principia com a pergunta de Fausto a Mefistófeles:

“[…] mas, quem é você, afinal? ”. Mefistófeles responde: “Sou a parte da força que quer sempre o mal, mas sempre faz o bem”.

O realismo mágico de Bulgákov nos conduz a diversas possibilidades interpretativas: humor ácido, profunda alegoria místico-religiosa, sátira profunda da Rússia soviética. Talvez ele seja um pouco de cada uma dessas alternativas. Do que sem dúvida a obra trata é da clara superficialidade das pessoas em geral, principalmente da burocracia e da intelectualidade que escreve apenas o que “as massas devem ler”.

A Moscou de 1929 é visitada pelo diabo, com o nome de Wolland. Mas como o diabo nunca chega só, acompanha-o um séquito de fiéis seguidores, como Koroviev, também chamado de Fagote (tal qual o instrumento musical); um enorme gato negro, Bieguemot ; o anão Azazello, o auxiliar Abadon e uma mulher em forma de bruxa, Hella, nua e gelada.

Wolland é um visitante estrangeiro, mas um estrangeiro que tudo sabe dos russos e da Rússia, sendo que em momento algum se propõe a ser um opositor de Deus. A verdade é que o diabo chega do nada à Moscou de 1929 e pune todos os que cruzam com o seu séquito, meio a esmo, porém acertando sempre na mesquinharia e na covardia humana que ele mesmo cita como as piores das fraquezas da carne.

Já os agentes do demônio Wolland andam em Moscou, surpreendendo a população com seus atos e desesperando a burocracia do regime, que tenta explicá-los racionalmente, cientificamente. A polícia tenta prendê-los, mas fracassa de imediato.

Como muitos soviéticos afetados pelo diabo pedem para serem mantidos em celas blindadas e outros em clínicas psiquiátricas, a polícia conclui, de forma racional, que eles foram vítimas de um bando de hipnotizadores capazes de agir a distância. Seria essa uma reprodução das confissões absurdas dos processos de Moscou?

A mais famosa citação do livro é “os manuscritos não queimam”. Constitui uma clara referência à censura e tem cunho autobiográfico, pois os primeiros manuscritos de O Mestre e Margarida, apesar de queimados pelo próprio autor em função do medo, reviveram em nova versão. É a consciência que não pode ser anulada pela ação de burocratas e censores, porque, de alguma forma, a liberdade de criação construirá sempre um espaço e sobreviverá.

O Mestre do romance, como tanto os fizera Bulgákov, escrevera um livro que não foi aceito pela crítica. Então, ele se interna em uma clínica para loucos. Margarida, sua paixão, aceita uma oferta dos assistentes de Wolland, que a transformam em bruxa, e ela voa, invisível, por Moscou em uma vassoura. Sua primeira ação foi destruir o apartamento de um dos críticos de arte que haviam aniquilado a carreira do Mestre. Depois disso, voa para o sul e passa até pela Ucrânia, terra natal do escritor!

Mas Margarida volta a Moscou e aceita uma proposta de Koroviev: ser a anfitriã de Wolland em um baile, o “baile dos cem reis”; uma espécie de “Noite de Walpúrgis”, à la Fausto. Como todos os que seguem de forma irrestrita as ordens de Wolland, a bruxa Margarida será recompensada.

Como recompensa ela recupera a vida do seu amor, o Mestre.

O romance também estabelece uma interessante correlação entre Jerusalém, a Parúsia cristã, e Moscou, a Parúsia socialista. São dois capítulos especiais em que, com tintas de um Tolstói, Bulgákov estabelece um realismo puro: no primeiro, Wolland narra o interrogatório e a condenação de Jesus por Pilatos, por ele presenciada, e, ao final, o Mestre escritor liberta Pilatos de seu pesadelo condenatório de Jesus, que não é Deus, mas sim, “humano, profundamente humano”, através da ficção. No romance, o apóstolo Mateus se encontra com Wolland, diz-lhe que Jesus leu o romance do Mestre e pede para o demônio dar-lhe a paz.

Então, o Mestre abandona o hospício para alienados e vai viver com Margarida em um refúgio. A paz lhes é garantida. Quem sabe, um dia, lhe seria permitido ser editado e lido?

Alguns insistem em verem no diabo Wolland uma metáfora de Stalin, mas isso é provavelmente uma interpretação equivocada. Wolland é muito mais que Stalin, é ele e toda a burocracia estatal que se encastelara no poder, destruindo dia a dia, como que pela ação de um demônio, o socialismo.

E que, no seu estertor, criaria um Polygraf Polygrafovitch Sharikov, na figura de Vladmir Putin, o autocrata russo do século XXI!

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