Breves lições de história sobre o declínio hegemônico.

No final da década de 1980, o historiador britânico Paul Kennedy escreveu um caudaloso livro sobre a ascensão e queda das grandes potências nos últimos cinco séculos (1). O objetivo dele foi demonstrar como os impérios projetaram seu poder militar de acordo com seus recursos econômicos e como o alto custo de manutenção da máquina militar os inviabilizou a longo prazo. De fato, de acordo com a pesquisa de Paul Kennedy, quando o custo de manutenção militar se tornou grande demais para cada uma das superpotências estudadas, todas elas partiram para a saída mais óbvia e menos acertada, a saber, o aumento de gastos com a defesa em detrimento da aplicação de recursos fundamentais em áreas produtivas.

Quando tratou brevemente dos Estados Unidos, então a principal potência do planeta – e que logo seria alçada à condição de única, após a derrocada do império soviético -, Paul Kennedy discorreu sobre os desafios que os ianques iriam enfrentar, quais sejam, “a capacidade de preservar, no setor estratégico-militar, um razoável equilíbrio entre as necessidades defensivas do país e os meios de que dispõe para atender a elas; e a capacidade de preservar, como ponto estreitamente ligado à primeira, as bases tecnológicas e econômicas de seu poder contra a erosão relativa, frente aos padrões sempre cambiantes da produção global total”. (KENNEDY, 1989, p. 488)

Essa correlação entre o setor estratégico-militar e a economia estadunidense foi corroída há bastante tempo. Nem todos prestaram atenção quando o economista belga-americano, Robert Triffin, propôs a contradição imanente da hegemonia monetária do dólar americano, ainda na década de 1960. Com efeito, para Triffin, a reserva global do dólar fornecia liquidez ao mundo, mas acarretava déficits crescentes em moeda local, o que levaria à destruição da categoria de superpotência dos Estados Unidos no longo prazo. Incapaz de manter suas aventuras hegemônicas ao redor do globo, pelo menos desde a crise de 2008 – salvo contra países pequenos e/ou com pouca capacidade de revide militar -, a solução encontrada no segundo governo Trump foi aquela apontada como menos acertada por Paul Kennedy.

É através dessa perspectiva que devemos entender as ações tresloucadas do governo Trump 2.0, que não só está mantendo a escalada de guerras regionais que herdou dos governos de Bush pai, Bush filho e Obama, mas as está intensificando em terra, com o ataque ao Irã, a permissão para Israel promover o genocídio em Gaza e agora o possível ataque contra a Venezuela, sem mencionar a guerra econômica de tarifas contra o mundo.

Mas Kennedy já alertava que os Estados Unidos não conseguirão preservar sua condição de principal potência global ad infinitum, pois, segundo defendia, “simplesmente não é dado a nenhuma sociedade ficar permanentemente à frente de todas as outras, porque isso implicaria o congelamento de um padrão diferenciado de taxas de crescimento, avanço tecnológico e desenvolvimento militar, que existe desde tempos imemoriais”. (KENNEDY, 1989, p. 505)

Dito isso, penso que é necessário dar um passo atrás e lembrar o conceito de hegemonia gramsciniano. Como se sabe, Antonio Gramsci (1891 – 1937) entendia a hegemonia como a liderança cultural e ideológica de uma classe social sobre as outras, que se manifesta não apenas pelo uso da força e do poder estatal, mas principalmente pela obtenção do consentimento voluntário das massas. Ela é construída e mantida por meio de instituições da sociedade civil (como a escola, a igreja e a mídia), que disseminam a visão de mundo da classe dominante e a fazem parecer natural e inevitável. Em outras palavras, a classe dominante não opera apenas pela força (“sociedade política”), mas também pelo consentimento das massas, que deferem suas ideias e valores (“sociedade civil”). Assim sendo, a hegemonia é caucionada pelo domínio em diversas esferas, como a educação, a mídia, a religião e a cultura popular. Essas instituições irradiam uma visão de mundo que legitima o poder da classe dominante. Logo, a exposição constante a essas ideias faz com que as classes subalternas as vislumbrem como “naturais” e inevitáveis, desencorajando a resistência. 

Contudo, a luta de classes dentro de um país não é o objeto deste texto. Nos propusemos aqui, desde o início, a tentar clarear um pouco a questão da hegemonia entre os países, notadamente dos Estados Unidos no último século. Será que o conceito gramsciniano de hegemonia poderia ser útil também nesse caso? A resposta é sim. Mas porque, várias décadas após a morte de Gramsci, outro teórico, Robert W. Cox, (1926 – 2018), acadêmico canadense, estendeu o conceito de hegemonia de Gramsci para sua Teoria Crítica das Relações Internacionais.

Cox defendeu que a dinâmica global é impulsionada pela interação de forças sociais, Estados e ordens mundiais, e que as teorias dominantes servem para manter a hegemonia existente, em vez de questioná-la. Nesse diapasão, Cox elevou o conceito de Hegemonia para a esfera internacional. Para ele, a hegemonia mundial não se baseia apenas no poderio militar ou econômico de um único Estado, mas sim em um consenso mais amplo que permeia as estruturas sociais, econômicas e políticas globais. Por consequência, ele entendia a política global como um processo dinâmico e historicamente mutável, moldado por relações de poder complexas que vão além dos Estados e que podem ser desafiadas por forças sociais transformadoras. 

Tal teoria permite perceber porque as investidas belicosas, materiais e virtuais de Trump têm uma grande tendência de não dar certo em curto prazo. Se Cox estiver certo, assim como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe – que entendiam a hegemonia como um processo discursivo de construção de consensos e identidades políticas, onde diferentes demandas sociais são articuladas em torno de um “significante vazio” para formar um bloco hegemônico -, Trump está fazendo tudo pelo avesso! O que ele faz no seu segundo governo é tudo, menos criar consensos e identidades políticas. Pelo contrário, a narrativa de Trump 2.0 é estabelecer dissensos entre seus próprios aliados e consensos com os outros blocos através da força.

De maneira semelhante, se para Cox a política global é um processo dinâmico e historicamente mutável, Trump vem tentando tornar a política global estagnada quanto ao poderio inquestionável estadunidense, pois sabe que o seu mítico slogan “MAGA” (Make American First Again) foi só uma peça teatral de campanha. Talvez o próprio Trump não queira reconhecer isso, dado o seu nível de prepotência, mas com certeza muitos dos seus seguidores estão cientes do problema.

Engana-se, porém, quem pensa que a Pax Americana sempre foi um mar de rosas até a chegada de Trump ao poder.

Só na América Latina dezenas de embaixadores e diplomatas foram expulsos desde o século XIX. É bem conhecido o episódio do embaixador americano Henry Wise, que foi expulso do Brasil, em 1847, por exigir que quatro militares americanos, presos por provocarem arruaças nas ruas do Rio de Janeiro, fossem soltos imediatamente, alegando que o Brasil não tinha autoridade para julgar ou punir cidadãos americanos, mesmo que o crime tivesse acontecido em território brasileiro.

Não há dados disponíveis sobre embaixadores dos Estados Unidos expulsos dos principais países europeus, salvo a Rússia, mas é farta a documentação sobre diplomatas que foram qualificados como “persona no grata” em quase todos eles, e que foram convidados a sair do país.

O mesmo ocorre na África, porém existem dois episódios de expulsão de embaixadores americanos, um no Egito, em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, e o outro na Etiópia, em 1980.

Na Ásia é raro um caso de um embaixador ter sido expulso formalmente, porém existem inúmeros caso de diplomatas de escalão inferior ou funcionários de embaixadas que foram expulsos de vários países como “persona non grata”, em retaliação ou por acusação de espionagem.

Por fim, embaixadores dos Estados Unidos foram expulsos ou retirados do Oriente Médio em diversas ocasiões ao longo da história, geralmente em momentos de crises diplomáticas ou conflitos.   

Como se vê, a história da hegemonia americana no planeta é a história de Hollywood. Apesar do esforço midiático de retratar os valores liberais-iluministas como praticamente inquestionáveis, notadamente no século XX, a ponto de um desavisado filósofo, Francis Fukuyama, ter proposto o “fim da história” quando da queda do império soviético, a verdade é que a hegemonia norte-americana segue o roteiro da hegemonia dos grandes impérios da história passada.

Nesse contexto, é interessante observar que Paul Kennedy não ficou para trás sobre a globalização. Ele sabe que a globalização desafia a soberania nacional, com a primazia das finanças e corporações transnacionais sobre as políticas domésticas dos países. Ele também reconhece que a globalização, impulsionada pela tecnologia e avanços nos transportes, resultou em uma integração global sem precedentes de economias, sociedades e culturas, diluindo barreiras geográficas e culturais. Em obras mais recentes, ele alertou que a abertura de fronteiras ao capital e à competição global, promovida por políticas neoliberais, levou à marginalização econômica de alguns setores da sociedade. Isso gerou ressentimentos contra elites, especialistas e imigrantes.

Ademais, na era da globalização, com a rivalidade entre Estados Unidos e China gerando uma guerra silenciosa titânica, ele vê um “vazio hegemônico” em que nenhuma potência consegue ditar sozinha as regras globais, como evidenciado pela incapacidade dos EUA de resolverem sozinhos crises globais. Mas o país que conseguir se adaptar competitivamente às características mutáveis da globalização alcançará maior prosperidade e influência. Daí a corrida desenfreada pela hegemonia virtual, materializada no domínio da inteligência artificial.

Escrevendo no século passado, na década de 1980, Kennedy foi profético ao alertar para o duplo desafio que as principais potências da época, nomeadamente por ele os Estados Unidos, a União Soviética, a China e o Japão, além da CEE (Comunidade Econômica Europeia), deveriam levar em consideração, a saber, o padrão desigual de crescimento econômico e o cenário competitivo e ocasionalmente perigoso no exterior, e que as forçaria a escolher entre segurança militar mais imediata e segurança econômica de longo prazo. Hoje, como se sabe, duas delas já sucumbiram: a União Soviética se esfarelou pelo cenário competitivo no exterior e o Japão, pelo padrão desigual de crescimento econômico em relação às outras duas potências.

O grande problema que está camuflado na obra de Paul Kennedy é que nenhuma superpotência passada viu sua hegemonia mundial entrar em colapso sem uma prolongada luta armada. É verdade que o colapso hegemônico passa muito mais pela utilização menos eficiente de seus recursos produtivos durante o período de declínio. Basta lembrar, como exemplo, a gigantesca transferência de empresas norte-americanas para a China desde a década de 1970, assim também para outros países asiáticos, por causa da mão de obra mais barata. Não à toa, a China hoje é considerada o chão de fábrica do mundo e Detroit, outrora a cidade dos automóveis, hoje é quase um deserto fabril. Nesse ponto, é pertinente o aviso do intelectual de esquerda, Álvaro Garcia Linera, que foi vice-presidente da Bolívia entre 2006 e 2019, sobre a desintegração da Pax Americana: “E quando uma potência hegemônica está em declínio, torna-se desesperada e perigosa. É uma besta ferida. Ela precisa tentar por todos os meios deter seu declínio, recorrendo a todo tipo de medida, incluindo políticas de subserviência (em relação à Europa); tarifas (em relação ao mundo); políticas ambientais (em relação a toda a humanidade); e também medidas coloniais e militares”. (2)

Quero finalizar esses breves apontamentos lembrando dois pensadores, sendo um do passado e outro da nossa atualidade.

Do passado, vou recorrer ao iluminista e jurista francês Charles-Louis de Secondat, Barão de La Brède e de Montesquieu, conhecido como Montesquieu (1689-1755). Para Montesquieu, conforme se extrai do seu livro sobre a grandeza e decadência dos romanos (3), a prosperidade romana deveu-se em grande parte à sequência inigualável de excelentes reis que tiveram. Depois, quando veio a república, os chefes dessas repúblicas moldaram a instituição e ele acabaram afeiçoados pela república. Ora, qual o grande chefe da república estadunidense depois de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945)? Nem mesmo Barack Obama, que foi eleito sob forte comoção nacional, conseguiu se destacar como um grande presidente ou estadista.

Mas Montesquieu vai além e diz ainda que um povo aguenta o tranco dos tributos se enxerga algum benefício futuro. Porém, não tolera quando se sente ludibriado e tem que pagar a conta. Nessa linha, a queda já acentuada da popularidade de Trump, com menos de um ano de governo, denota a insatisfação popular com as medidas elitistas que o governo dele vem tomando, notadamente o desvio de recursos públicos para o Vale do Silício e o complexo industrial-militar-financeiro.

Montesquieu ainda vai nos dar uma lição sobre os chefes da República que mudam constantemente e, por isso mesmo, buscam não perder tempo para propor novas guerras, por pura ambição. E aqui não importa se as guerras foram promovidas diretamente pelos Estados Unidos no exterior, como a invasão do Afeganistão (2001) e Iraque (2003); por procuração, como o genocídio praticado por Israel contra os Palestinos (2023-2025); ou mesmo promovida internamente por Trump (2025), ao destacar a Força Nacional contra cidades governadas por democratas, sob o pretexto de estarem sob balbúrdia do tráfico de drogas (é bom não esquecer a “guerra ao terror” de Bush filho, que também privou os cidadãos norte-americanos das garantias constitucionais, e que foi continuada, em certa medida, pelos governos democratas de Obama e Biden).

Na atualidade distópica do iminente colapso climático, vou pedir permissão ao/à leitor/a para trazer a mensagem do filósofo ateu britânico John N. Gray.  Para ele, Trump é muito mais que um mero taumaturgo político ou feiticeiro das redes sociais. Para ele, Trump não incorpora qualquer racionalidade emergente do tipo hegeliana. Pelo contrário, ele desencadeou uma nova lógica política que não deixará mais o passado retornar. Gray afirma que o futuro dos Estados Unidos se assemelha mais a uma democracia autoritária do que a uma república constitucional. Nesse sentido, a mutação democrática estadunidense é bem mais profunda e duradoura. Não é uma simples repetição do fascismo, mas uma sociedade polarizada demais para uma governança consensual.

Outrossim, Gray aponta acertadamente para o caminho inexorável da inadimplência norte-americana. Com efeito, num mundo cada vez mais multipolarizado – apesar das tentativas desastradas de Trump de manter a hegemonia dos Estados Unidos -, é visível a ascensão de novos blocos econômicos, como os BRICS e a ASEAN, bem assim a futura hegemonia chinesa, no contexto da fraqueza estrutural do dólar. Segundo Gray, ainda que as tentativas de substituir o dólar como moeda universal tenham fracassado no passado recente, já é notável a corrida para alternativas ainda mais conservadoras de segurança em ativos de reserva global, como o ouro.

No plano interno, a hegemonia da classe dominante também corre perigo de se esfacelar, com as tarifas trumpinianas que prometem proteger empregos numa era de robôs humanoides trabalhando 24 horas por dia, sem falar do risco de crescimento da inflação com pouco benefício para a “classe-que-vive-do-trabalho” (parafraseando o sociólogo Ricardo Antunes). O risco, para Gray, é que, à medida que o padrão de vida não melhora, ou pior, decresce, os mesmos eleitores que alçaram Trump e seu séquito de fanáticos iliberias-religiosos ao poder, podem dar meia-volta e se inclinar para versões mais radicais, tanto da direita quanto da esquerda.

Seja como for, o pessimismo de Gray tem fundamento na ideia de que os Estados Unidos pré-Trump é irrecuperável. Por mais que o órgão fascista de deportação de imigrantes, o ICE, consiga sequestrar muitas pessoas nas ruas, dentro de suas casas, nas escolas e até nas igrejas, ele não conseguirá deportar todo mundo. Os Estados Unidos é um país de imigrantes, assim como foi Roma e todas as grandes potências de suas épocas. O “xis” da questão, na nossa contemporaneidade, é que o capitalismo ocidental se autodestrói. O neoliberalismo é só a face mais cruel de um sistema globalizado que está devastando seu principal incentivador de décadas: os Estados Unidos da América.

Sendo assim, o protecionismo de Trump não irá conseguir reverter o que o livre comércio destruiu. No limite, as novas tecnologias revolucionárias virtuais ainda prolongarão, por um breve tempo, a sensação dos povos de que elas serão capazes de salvar nossa espécie do colapso por meio da barbárie. Mas como disse um professor que tive no doutorado, pela primeira vez na história, desde a revolução industrial, a revolução tecnológica é eliminadora de trabalho humano. Quando a globalização for totalmente reificada em máquinas, 99% da espécie humana será abandonada à sua própria sorte. Nessas circunstâncias, a hegemonia interna não fará mais sentido no seio estadunidense, pois o fantasma da globalização e seu concomitante – a imigração em massa – terão afastado os eleitores norte-americanos da casta política que lançou o experimento global. Quanto à hegemonia externa, bem, na época dos exterminadores do futuro, é provável que sejamos a caça ou os escravos. Se ainda estivermos por aqui…  

REFERÊNCIAS:

1 – KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências. Rio de Janeiro. Campus. 1989;

2 – https://www.ihu.unisinos.br/659806-a-vitoria-de-mamdani-mostra-que-a-esquerda-precisa-ser-ousada-e-abracar-um-novo-futuro-entrevista-com-alvaro-garcia-linera;

3 – MONTESQUIEU. Grandeza e Decadência dos Romanos. São Paulo. Editora PAUMAPE. 1995.

*André Márcio Neves Soares é doutor pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL – e funcionário público federal há trinta anos

Uma resposta

  1. Parabéns ao autor. Belo artigo, reflexivo, questionador. LembraFred J. Kook, autor americano, sobre a força da indústria bélica nos EUA.

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