Um amigo meu, Herman Melville, contou-me certo dia uma história muito interessante a respeito dos direitos e regulamentos da pesca às baleias e como aqueles se aplicavam à vida na sociedade moderna.
Pelos anos de 1840 ele viajara o mundo no baleeiro Acushnet, afinal, precisava com seu salário de marujo manter a família. Somente dez anos após ele escreveu o monumental romance semi- autobiográfico “Moby Dick”.
De suas viagens pelos sete mares ele comentou comigo sobre como um único código baleeiro formal, que era já muito antigo, que, na essência, possuía apenas dois itens mandatórios:
1. Um peixe preso pertence à parte que o prende;
2. Um peixe solto é a caça legítima de quem o apanhar primeiro.
Uma “legislação marinheira” baseada apenas nestes parâmetros, muito prejudicava a aplicação do mesmo, dado que necessitava muitos comentários para ser interpretado!
Isso me causou enorme espanto!
Afinal, qual o segredo de um peixe preso? Ou solto?
Melville explicou-me que, vivo ou morto, um peixe está preso do ponto de vista técnico quando amarrado a um navio ou a um bote tripulado, quer seja pela corda de um arpão, por uma linha, por um remo, ou até mesmo por uma teia de aranha, pouco importa. De modo semelhante, o peixe também é dado como preso quando carrega algum símbolo reconhecível de posse, sempre que o navegante demonstre claramente capacidade de carregá-lo a bordo de seu barco.
A parte estas considerações, meu amigo contou-me uma história antiga de apropriação indébita ocorrida nos mares da Inglaterra e que terminou nas barras da justiça.
Um juiz, uma jurisprudência.
Os autores da ação declararam que após uma caçada difícil a uma baleia, a teriam arpoado, mas devido a risco de naufrágio e morte haviam sido obrigados a abandonarem a presa, assim como o arpão, a arpoeira e o próprio bote.
Os réus, que estavam em um navio próximo, não se fizeram de rogados e empulhando suas lanças terminaram por matar o cachalote e dele se apropriaram na frente daqueles que o haviam arpoado, como todo o mais que flutuasse. Deste modo, a parte queixosa pleiteava receber o valor da baleia, da arpoeira, dos arpões e barco.
Durante o julgamento, o advogado da defesa espertamente recorreu a um caso criminal recente por aqueles tempos.
Um homem, depois de tentavas vãs de “repressão aos instintos sexuais da mulher”, abandonara-a nos mares da vida e partira para outras relações; entretanto, no decorrer dos anos arrependera-se e movera uma ação na tentativa de recuperar “a posse” da mesma, sem, entretanto, obter ganho de causa na justiça. O rábula dizia que se era verdade que o cavalheiro, no passado, arpoara a senhora e a tivera presa, ao abandoná-la, transformara-a em peixe livre para que qualquer outro fincasse-lhe o arpão e dela se apropriasse. Dizia, em conclusão, que o caso da baleia e da senhora se ilustravam reciprocamente, e constituiria uma “certa jurisprudência”.
Muito bem, o magistrado julgou a comparação pertinente.
Que os réus tinham direito à posse da baleia, pois no momento em que ela fora abandonada pelos autores da ação, ela era um peixe livre. Que os arpões e arpoeiras que a baleia trazia presos ao costado, constituíam posse do próprio cetáceo morto e, desta forma, passariam à propriedade de quem o caçasse, ou seja dos réus. Somente o bote, devido suas inscrições, deveria retornara aos queixosos.
Peixe preso, peixe solto: fundamento das relações humanas.
Ao perceber a minha reação contrária à disposição do juiz inglês, Melville simplesmente sorriu e disse-me que os preceitos relativos ao peixe preso e peixe solto, constituem os fundamentos de toda a jurisprudência humana, pois “apesar de seus complicados traçados, os Templos da Lei e o dos Filisteus têm apenas duas colunas a apoiá-los”.
E prosseguiu: “Não se diz por aí que a posse é meia propriedade, sem se levar em conta como se obteve essa posse? Mas frequentemente a posse, mesmo obtida à força, torna-se com o tempo, direito de propriedade”.
Passou, então, a citar-me alguns exemplos: o que seriam os músculos e as almas dos escravos e dos servos, senão peixes presos cuja posse significa todo o direito de propriedade do mais forte?
O que é para um proprietário de terras a última migalha de uma viúva senão peixe preso?
O que é a mansão de um vilão encoberto, senão peixe preso?
O que significa o ágio que os bancos cobram daqueles que necessitam de dinheiro emprestado senão peixe preso?
O que são os salários altíssimos dos altos dignitários senão peixes presos?
O que seriam as fazendas herdadas e as propriedades citadinas senão peixes presos?
Não seriam as grilagens todas formas de posse que se transformam em propriedade, portanto, peixe preso?
Apressou-se meu amigo a dizer-me que se a doutrina do peixe preso é bastante disseminada, a do peixe solto o é ainda mais amplamente, sendo internacional e universalmente aplicada.
Os Direitos Universais do Homem.
O que era a América em 1492 senão peixe solto quando aqui aportaram os colonizadores? O que era o Brasil com suas imensas riquezas e seus índios mansos, senão peixe solto, cuja posse tornaram-nos peixe preso? E a índia para a Inglaterra? E os países árabes para os Ianques? Todos peixes soltos.
Mas os que são os Direitos Universais do Homem, sua Liberdade senão peixes soltos? O que são as mentes e opiniões de todos os homens senão peixes soltos? O que é o princípio da crença religiosa dentro dos mesmos senão peixe solto? E as reflexões dos pensadores? Que é o grande globo terrestre senão peixe solto?
E você que me lê, o que você é?
Eu garanto, que assim como eu mesmo, você é peixe preso, mas também peixe solto, senão jamais perderia tempo com minhas leituras e com meu amigo Herman Melville.
6 respostas
Muito bom! A ironia era coisa de Melville? Sendo, era ele peixe solto?
FANTÁSTICO, MARAVILHOSO!!👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👆👆👆
Há tempos penso sobre a natureza das propriedades de terra no Brasil, agora, eis a definição: peixes presos.
Metáfora ainda mais dramática ao se reportar aos “peixes”, baleias…cujas vulnerabilidade e incapacidade de resposta agressiva levaram quase à extinção. Não à toa, a que consegue se livrar é descrita por Melville como um “monstro marinho”. Que venham MobiDicks para romper cordas e arrastar os baleeiros para fundo do mar…
Caro Jorge, Melville em Moby Dick faz a natureza como um todo refletir-se na baleia. Afinal, fruto da agressão do homem à natureza, quem vence é ela, metaforizada no “monstro baleia”.
Eu usaria a metáfora para a Amazônia que por ser um peixe solto em alguns governos passados se tornou um peixe preso …se me entenderam ótimo senão ficamos bem de todo jeito…