Desde finais do século XVI até 1871, todas as grandes instituições religiosas tinham o seu time de “escravos da religião”, e estes chegaram a dezenas de milhares!
A libertação dos escravizados pela Igreja ocorreu apenas 17 anos antes da assinatura da Lei Áurea, em 1888.
Tanto nos mosteiros quanto nos conventos, tanto nas fazendas de propriedade rurais da Igreja quanto nas casas paroquiais os negros escravos, quer aqueles comprados diretamente dos traficantes, quer aqueles “doados à fé” por seus proprietários, eram obrigados a abdicarem de sua fé ancestral e professar a fé católica, participando de missas, momentos de orações, recebendo os mesmos sacramentos usuais.
Aos rebeldes que insistissem em sua crença religiosa sempre se reservavam punições exemplares, de modo a convencer os demais negros a não repetirem gestos de desobediência e a não participarem de “cultos que ofendessem a Deus”.
Nos períodos de abundância de mão de obra escrava, em algumas ordens havia uma espécie de tabela de preços para negros que pudessem comprar da Igreja sua alforria! No entanto, os preços impostos pela religião, normalmente, eram superiores àqueles exigidos pelos senhores da agricultura para que os negros comprassem sua da liberdade.
“Escravos da religião” é título do livro do historiador Vitor Hugo Monteiro Franco, que se baseia nos arquivos da Ordem de São Bento, na cidade do Rio de Janeiro.
Tendo em mãos registros dos nascidos na propriedade rural dos beneditinos a Fazenda São Bento de Iguaçu, “uma das principais descobertas foi o próprio termo ‘escravos da religião'”, conta ele. “Não foi um termo que eu criei. É um termo da época, que encontrei em livro de batismos. Foi um choque para mim.”
” A situação geral da escravidão no Brasil é de escravos privados, pertencentes a senhores brancos leigos. No caso dos ‘da religião’, eles não pertenciam a um monge específico, eram, sim, de propriedade coletiva. E isso teve repercussões na vida dessas pessoas para sempre, porque influenciava na forma, no dia a dia deles”, diz o historiador. E em suas crenças anscestrais!
Os beneditinos eram um tipo de senhores que conheciam muito bem sua escravaria, e anotavam tudo em detalhes. “Os monges conheciam cada momento, cada fase da vida dos seus escravizados. Isso dava (aos religiosos) um poder muito grande. Ser ‘escravo da religião’ significava ter sua vida controlada por uma instituição religiosa”, acrescentou Monteiro Franco.
As principais ordens religiosas que possuíam negros escravos no Brasil eram os jesuítas, seguidos pelos beneditinos e pelos carmelitas. Em menor escala, os franciscanos.
Em 1759, contudo, os jesuítas foram expulsos do Brasil. Desde então, os beneditinos assumiram a posição de destaque, com a maior quantidade de “escravos da religião”. No ano de sua libertação, em 1871, os beneditinos tinham um total de 4 mil negros escravizados!
Os incentivos à procriação.
Uma maneira de garantir a abundância de mão de obra escrava era o incentivo que os monges davam para que as escravas tivessem muitos filhos.
“As mulheres que procriavam pelo menos seis filhos conseguiam privilégios, tais como não realizarem trabalhos ‘penosos'”, conta o historiador Robson Pedrosa Costa, autor do livro “Os Escravos do Santo”.
A partir de 1866, as mães de pelo menos seis filhos passaram a ter a liberdade gratuita — desde que elas “estivessem devidamente casadas”, pontua o historiador.
Malandramente, nos registros de batismo, a maior parte das crianças era registrada como sendo filhos de “mãe solteira”; isto garantia que a “posse da cria” seria da Igreja.
Em caso de mãe e pai sacramentalmente unidos, poderia haver alguma discussão se o filho pertenceria ao senhor da mãe ou do pai, ou, ainda, da Igreja. Então, os beneditinos preferiam não oficializar relações estáveis quando as mulheres de sua fazenda tinham relações com homens, negros ou não, de fazendas vizinhas.
Foi em meados do século XIX que, graças aos incentivos procriadores, as instituições religiosas praticamente ficaram livres de terem de adquirir escravos do tráfico negreiro.
Alforrias.
A compra da liberdade era mais difícil para um “escravo da religião” que para um escravo privado.
“Estamos falando de uma propriedade institucional”, lembra o historiador Franco. “Não era simples. Os monges liam a petição e colocavam para votação, usando favas pretas para marcar as negativas e favas brancas para sinalizar positivo.”
A partir da década de 1850, a Ordem de São Bento criou uma tabela de preços para casos de alforria. Pelo documento, o preço dos escravizados variava conforme saúde, idade, sexo e “capacidade de procriar”.
Violência.
O pesquisador também encontrou registros que atestam atos de crueldade produzido pelos senhores de escravos religiosos. “Tem um caso, em uma fazenda de Cabo Frio, também dos beneditinos, em que dois monges foram presos depois de matarem, de tanto espancar, um escravizado”.
Os escravos fujões, uma vez capturado, era submetido a “castigos exemplares”, o que incluia o uso do pelourinho.
A violência, era a prática de embutir nos escravos a “crença na Divina Trindade”.”Há um registro de uma visitação realizada por um monge (encarregado de vistoriar os trabalhos de um padre fazendeiro), que dizia que era bom que o mesmo não descuidasse do espiritual dos escravos, para ver se eles estavam seguindo os preceitos do cristianismo”, aponta Franco. “E, verificando que não estivessem seguindo, que fossem punidos exemplarmente. Se não se redimissem, que fossem vendidos.”
Os trabalhos dos “escravos da religião”.
Boa parte dos escravos fazia trabalho semelhante a qualquer outro. As instituições religiosas tinham muitas terras e nelas cultivavam cana de açúcar e café. Quem fazia este trabalho era a mão de obra escrava.
Contudo, havia também muitos escravos especializados que trabalhavam como artesãos. Nesse sentido, a Ordem de São Bento investiu em capacitação. Carpinteiros, ferreiros, oleiros, sapateiros, boticários, enfermeiros. Desempenhar essas funções especiais, conferia “prestígio” dentro da comunidade escrava. E muitos desses profissionais acabavam conseguindo fazer trabalhos “por fora” e, assim, juntar dinheiro para, no futuro, comprar a alforria.
Outros ainda serviam aos monges tanto nos clautros quanto nas casas paroquiais, responsáveis por todo o trabalho doméstico e também no serviço da “fé”: “botavam a comida na mesa, tocavam o sino da capela, seguravam o livro na hora da missa, e por aí vai”.
Abolição “prematura”.
Ao libertar os escravos na mesma época da promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, as instituições católicas gerariam uma certa “comoção” nas elites nacionais.
“A abolição não significa simplesmente a questão humanitária por trás da liberdade do indivíduo, mas também uma questão de ordem econômica sobre aqueles que você teria de estar empregando”, afirma o historiador Philippe Arthur dos Reis.
Quando os debates sobre a abolição se acirraram, isto a partir de 1865, uma lei de 1869 estabeleceu que as instituições religiosas deveriam libertar todos os seus escravos em um prazo de 10 anos!
“Prevendo uma maior intervenção do Estado e do Parlamento, a Ordem de São Bento do Brasil já havia se antecipado, decretando a liberdade de todo as crianças nascidas a partir do dia 3 de maio de 1866”, diz o pesquisador.
Essa medida teve “impacto” junto às autoridades. O imperador Pedro II presenteou o então abade geral com uma caixa de ouro cravejada de diamantes! O deputado Tavares Bastos, voz dita abolicionista, declarou que o gesto era “um ato generoso e solene” — e que deveria ser seguido pelas demais instituições religiosas!
Em 1871, afinal, veio a libertação total dos “escravos da religião” da Igreja Católica no Brasil, quase um século após a libertação dos negros no Haiti, em 1791.