Ou nossa irresponsabilidade enquanto indivíduos e coletividade.
Manuel Antônio de Almeida, em sua curta existência de 30 anos, foi o responsável por uma obra-prima que retrata em suas origens, nos tempos ditos “del rei D. João VI” (1808/ 1820), algumas características que, tempos futuros, somente fizeram se acentuar em nossa História: A irresponsabilidade!
Somos bons de proza, cordiais entre os nossos, violentos e excludentes com todos os demais, principalmente com aqueles que consideramos socialmente inferiores. Um protótipo desta violência é personificado num chefe de polícia do Rio, Major Vidigal, extraído pelo romancista da vida real. Para o Vidigal, chefe de polícia no Rio de D.João, a lei, ora a lei…, para os pobres e os “decaídos” ele era promotor, juiz e executor. Ainda quando necessário dava caça a negros fugidos e a criminosos.
“Memórias de um Sargento de Milícias” nos mostra um povo, cujo protótipo é Leonardo, o futuro Sargento Miliciano, que tem como primazia o princípio do prazer.
Dizia Mário de Andrade que Leonardo foi o primeiro malandro que entrou na novelística brasileira, “correspondendo mais que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo. ”
Uma classe média baixa e burgueses, que cultuam o jeitinho como modo de se arrumar na vida está presente em todo o romance. Afinal, em princípios do século XIX, construía-se uma sociedade em que uma ordem imposta se comunica com uma desordem, que a cerca por todos os lados.
Antônio Cândido define “a dialética da desordem”, como o traço essencial do romance e de nossa formação histórica.
“Memórias de um Sargento de Milícias”, ao contrário dos romances do romantismo brasileiro de seu tempo, apresenta protagonistas da classe baixa, ao invés de altos burgueses, aristocratas lambe-botas da coroa, índios idealizados e aculturados, tão ao gosto de seus contemporâneos românticos.
Na verdade, Manuel se preocupou em apresentar personagens com personalidade mais próxima da realidade da imensa maioria dos fluminenses da época, desmistificando a figura do herói romântico idealizado. Não existem heróis ou heroínas no seu único livro em prosa que chegou a compor.
“O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se a brincadeira, foi o adeus às cerimônias. Tudo daí em diante foi burburinho, que depressa passou à gritaria, e ainda mais depressa à algazarra, e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando viam-se passar através das rótulas da porta e janelas certas figuras que denunciavam que o Vidigal andava perto. ”
Esse Leonardo, um meirinho, ainda não é nosso anti-herói, mas seu pai. Assim, temos o brutal e estúpido Leonardo Pataca, o pai, e o Leonardo filho, o malandro primaz em vagabundagem e desrespeitos. Dos estudos, mal sabe as primeiras letras, embora esperto para uma patuscada o fosse como ninguém mais.
Maria, a mãe do pequeno Leonardo, trai o marido com quem lhe dê na teia. Sempre espancada a cada traição, foge para Portugal com “o capitão de um navio”. Assim, Leonardo Pataca também se manda, e deixa o filho com o padrinho, que lhe tem imenso afeto, pouco explicável sem uma verdadeira paternidade. O padrinho, por sua vez, possui guardada uma fortuna herdada de um chefe do tráfico de negros escravos, que morreu sob seus cuidados. É bem verdade que ele jurara ao português entregar o ouro a uma sua filha. Promessas que o vento do mar leva… Ou seja, de patranhas e patranhas a classe média vai vivendo tentando enriquecer.
E o livro é interessantíssimo e leve como diria Mário de Andrade, recheado de aventuras, irresponsabilidades, desrespeitos, desregramentos, golpes e de sexualidade.
A ironia e o deboche com que nos brinda Manuel Antônio de Almeida criaram Leonardo, o primeiro malandro nacional!
Na juventude, o vadio se apaixona por Luisinha, amor não tem nada de romântico, pois o rapaz logo se interessa por Vidinha. E Luisinha, por seu lado, se casa com José Manuel, um caça dotes bem-falante. Em pouco tempo ela se dá conta de que se casara com “um verdadeiro marido-dragão”.
Assim, em meio a amores nada idealizados, Leonardo é preso pelo seu arqui-inimigo, o major Vidigal, que consegue fazer dele um soldado. Afinal, nada melhor que um malandro e sem caráter para a polícia da época! E graças à influência de sua amante, Maria Regalada, resolve promovê-lo, e aí temos o surgimento do Sargento de Milícias.
A única semelhança com os livros dos românticos de seu tempo é que, ao final, as coisas se ajustam. Morrem padrinho e o marido de Luisinha. Leonardo herda a fortuna do tráfico negreiro e com ela se casa.
Manuel Antônio de Almeida tinha origem muito pobre, mas uma dedicação enorme ao trabalho. Custeou o próprio curso de Medicina na UFRJ com seu trabalho noturno. Seu romance, escrito aos vinte e um anos de idade, ele não o assinou quando foi impresso. Apenas apodou-se “Um Brasileiro. ”
Pouco antes de falecer num naufrágio fora nomeado administrador da Tipografia Nacional. Um dia recebeu uma denúncia: um dos empregados, um “mulatinho gago”, era sempre pego lendo nas horas em que deveria trabalhar. Chamado pela chefia apresentou-se o auxiliar de 17 anos, seu nome: Joaquim Maria Machado de Assis.
Ao invés de repreendê-lo, Manuel deu-lhe todo o apoio e compartia suas leituras, até o dia de seu desaparecimento.
O livro editado em folhetins, “Memórias de um Sargento de Milícias” parecia condenado ao esquecimento. Até que, em 1941, Mário de Andrade lhe pôs os olhos! Na edição que prefaciou destacou um parágrafo imortal do livro:
“Chegamos por nossas investigações à conclusão de que o verdadeiro amor, ou são todos ou um só, e, nesse caso não é o primeiro, mas o último. O último é que é verdadeiro, porque é o único que não muda”.
Em 1920, a Secretaria de Educação de Rondônia mandou recolher todos os exemplares de “Memórias de um Sargento de Milícias” das escolas públicas. “A obra tenta vincular as forças armadas com milicianos” diz a nota divulgada para a imprensa.
Augusto Aras foi acionado para identificar os autores e editores. “O que comprova que a extrema-imprensa sempre espalhou notícias falsas com claro intuito de difamar militares”, concluiu o documento enviado ao Procurador Geral.
No final da tarde, o governador Coronel Marcos Rocha anunciou que os livros recolhidos seriam alvejados por tiros de canhão.
Realmente, os Majores Vidigal e Leonardo, os Sargentos de Milícias, seguem agindo em nosso país, 150 anos após o falecimento do autor de suas “memórias”.