Os franceses atravessaram tantas revoluções, golpes e contragolpes de Estado em menos de um século, que se pode afirmar que nos tempos da infância e da juventude de Marcel Proust, na transição entre os séculos XIX e XX, a classe média, à qual ele pertencia, respirava a política com enorme enfado.
“Temos tido muitas revoluções desde 1789! A nossa experiência nos revela que as revoluções terminaram sempre em tiranias, que os Partidos se dissolvem, as divergências são esquecidas e os adversários de hoje serão os aliados amanhã. O adversário político, que apesar de raciocínios e provas, considerava como traidor o sectário da doutrina oposta, chega a compartilhar das detestadas convicções quando já não interessam àquele que antes tentava inutilmente difundi-las. Esta costumava ser “a fortaleza” das convicções dos nossos políticos”.
A França, que teve aquela muitas vezes centenária Monarquia dos Bourbons derrubada pela grande Revolução Francesa, instituiu a Primeira República, e com ela a fundação de seu primeiro Estado Nacional. Em 1793, entretanto, a Revolução viveu a fase conhecida como a “do Terror” e, logo a seguir, adveio a derrocada dos jacobinos. Napoleão Bonaparte, que, ganhou destaque no âmbito da Primeira República Francesa, em 1799 liderou um golpe de Estado e instalou-se como primeiro cônsul, sendo que cinco anos após, fez-se proclamar Imperador. A primeira experiência republicana terminou num golpe de Estado.
Napoleão implantou uma política imperialista agressiva e os franceses guerrearam contra praticamente todas as potências europeias. Foram as chamadas Guerras Napoleônicas. Após quinze anos de guerras, com a derrota na frente russa Napoleão I é derrubado e, logo após os “cem dias”, em 1815, internado na Ilha de Santa Helena e, presumivelmente, assassinado.
As elites mais reacionárias de toda a Europa uniram-se na Santa Aliança, comandadas pelo Czar Alexandre I e restauraram na França a monarquia absolutista dos antigos Bourbons, sob a regência de Luís XVIII, irmão do guilhotinado Luís XVI.
Quinze anos após, em 1830, numa sublevação burguesa sob a influência do capital financeiro monopolista, Carlos X, sucessor e irmão de Luís XVIII é deposto e instaura-se uma Monarquia Constitucional, sob o reinado de Luís Felipe. Dezoito anos mais transcorram até que uma Revolução Popular eclodiu com suas barricadas, em 1848. Instaurou-se a Segunda República.
Três anos após, a República voltará s ser sufocada por novo golpe de Estado, comandado pelo próprio presidente eleito da República, Luís Napoleão, pretenso sobrinho do primeiro Napoleão. Ele restaurará o Império com o título de Napoleão III. O novo Império desenvolverá uma política de expansão colonial extremamente agressiva no Oriente Médio e na África. Vinte anos após, em 1870, Napoleão III declara guerra ao Império da Prússia, visando à expansão do imperialismo francês. A carnificina da Guerra Franco-Prussiana levará à derrota das tropas francesas.
Ocorre então uma das mais importantes experiências de regimes comunitários da História da humanidade — a Comuna de Paris — que sobrevém no bojo da insurreição popular de 18 de março de 1871, comandada pelo proletariado parisiense. A Assembleia Nacional Francesa era favorável à capitulação ante a Prússia. A população de Paris, no entanto, opunha-se. Os insurretos forçaram o governo de Thiers a fugir de Paris, onde o Comitê dos Soldados e dos Operários passou a exercer a autoridade. A Comuna de Paris adotou uma política de caráter socialista baseada nos princípios da Primeira Internacional dos Trabalhadores.
O poder “communards” manteve-se durante cerca de quarenta dias, enfrentando não só o invasor alemão como também tropas francesas que, após abandonarem Paris, haviam se refugiado em Versailles. O esmagamento da Comuna revestiu-se de extrema crueldade. Mais de 20 000 “communards”, homens, mulheres e crianças, após a rendição, foram sumariamente executados pelas forças da reação.
Após a vitória da direita instala-se, sob o controle de burgueses e monarquistas “convertidos”, uma Terceira República, que de uma forma ou outra, manter-se-á no poder até a invasão nazista da França em 1940.
Proust nasceu nesse momento histórico, 1871, numa pequena localidade próxima a Paris, na casa de seu tio-avô, enquanto a capital vivenciava os momentos da Comuna revoltosa.
A Terceira República terá um histórico absolutamente conturbado por assassinatos de líderes políticos, por enormes escândalos de corrupção, alianças e traições que se sucederão, somente alcançando certa estabilidade por volta da primeira década do século XX.
O chamado “fin-de-siècle” foi uma crise permanente, onde tudo parecia transitório, os valores de um passado recente não eram mais válidos e os novos valores eram contestados.
O narrador de “Em Busca do Tempo Perdido” reflete sobre esse panorama de decadência na Terceira República:
“A política penetra nos poros de todo francês, em particular nos parisienses. E sempre temos caminhado à frente, pois enquanto alguns países descobrem agora o espírito republicano, nós já tivemos não uma, mas três repúblicas, sendo governados ora pelos republicanos, ora pelos conservadores, ora pelos radicais e até mesmo pelos socialistas. Eu não tenho gênio e nem inclinação para partidarismos e é verdade que busco possuir amizades em quase todos os lados da batalha política, que ora possui o Sr. X de um lado e o Y de outro, no momento seguinte ambos se alternam. Quando trago para o meu livro uma personagem “política” eu o faço como “modelo” de um ser humano, é bem verdade, mas de um modelo assaz especial.”
“Semelhante aos caleidoscópios que giram de tempos em tempos, a sociedade coloca sucessivamente, de modo diverso, elementos que se supunham imutáveis e compõem uma nova figura. Estas novas disposições são provocadas pelo que um filósofo denomina mudanças de critério”.
Marcel comenta ainda a esse respeito: “Isto não impede que, cada vez que a sociedade se ache momentaneamente imóvel, aqueles que nela vivam imaginem que jamais se efetuará mudança alguma”. Ou seja, como um organismo humano, o social está sempre em mutação, mesmo que a velocidade com que isto ocorra nos dê muitas vezes a sensação da estática.”
Também a corrupção dos agentes públicos, os golpes aplicados por companhias de investimentos e as aventuras nas bolsas de valores, foram uma tônica em toda a segunda metade do século XIX.
O próprio pai de Proust, o médico Adrien Proust, por volta de 1892, perdeu quase um ano dos ganhos de seu trabalho por aplicar suas economias na construção do canal marítimo do Panamá. A quebra da empresa francesa, que possuía fundos públicos, foi um dos maiores escândalos do final do século, pois ao falir levou consigo as economias de milhares de franceses. Mais de cem deputados, senadores, ministros e ex-ministros estiveram envolvidos nas trapaças e nas desonestidades da empresa. A falência arrastou consigo a honra até mesmo de pessoas antes consideradas ilibadas como Ferdinand de Lesseps- o construtor do Canal de Suez, assim como o de Gustave Eiffel, o responsável pela monumental torre de Paris.
“Para compreender um político é sempre necessário “ler na entrelinha do que dizem”. “Como exemplo, jamais eles chegam a ser exonerados dos altos postos- talvez porque deveriam ter que responderem pelos seus erros- eles sempre pedem suas demissões.”
Na economia, entretanto, um novo ciclo de expansão e desenvolvimento ocorreria quando da transição para o século XX, ao mesmo tempo em que a aristocracia decadente era absorvida pela alta burguesia. Ocorreram grandes superações científicas e inovações tecnológicas, que propiciaram mudanças revolucionárias nos mais diferentes aspectos da vida humana. “Em Busca do Tempo Perdido”, é recheado dessas descobertas que estabelecem panos de fundo para os ambientes em que os seus personagens se relacionam.
As estradas de ferro, que caminham de Paris até as províncias, tornam viáveis os balneários da costa normanda; a invenção da bicicleta e a nova cultura do esporte e do fisiculturismo incitam a uma maior liberdade e também uma nova forma de ocupação do tempo ocioso; o processo de liberação das mulheres é refletido pelo primeiro Congresso Feminista Mundial, que aconteceu na França na virada do século.
Surgiram novos meios revolucionários de transporte como o automóvel e o aeroplano. A iluminação elétrica tornou possível a escrita noturna e a ida aos teatros sem risco de tantos incêndios; a telefonia que criou as “deusas da escuta” e a fotografia, que incorporou ao papel “mais um instrumento a serviço da memória”.
Numa época de tão profundas transformações, entrecortadas por crises econômicas, políticas e sociais, os homens sentem-se de certa maneira sem o ar e têm pressa em procurar saídas. E essa permanente ansiedade se refletirá tanto na filosofia quanto nas artes. Assim como ressurge o vigor na busca da vida em natureza. A razão, o equilíbrio e a lógica formal cedem passo para certo irracionalismo; o instinto e a intuição conduzem ao aprofundamento da psicologia humana, à busca do inconsciente e do “eu profundo”.
Nas artes ocorre o rompimento com o realismo formal, liberando-se a espontaneidade, a leveza de traços e dos efeitos, uma arte que expressasse a impressão da realidade, o simbolismo e o subjetivismo do artista.
E, finalmente, dentro do ambiente em que os conflitos se arrastam a intolerância racial somente tende a crescer; os conflitos entre as nações se dá na luta por conquistas coloniais; o patriotismo seguido pelo seu filhote bastardo, o militarismo, se espandem; as divisões da sociedade em ideologias que cada vez mais determinam atitudes.
A humanidade caminhará até a enorme tragédia da Primeira Guerra Mundial, que deixará mais de dez milhões de mortos.
Dentro deste panorama geral o gênio de Marcel Proust criou “Em Busca do Tempo Perdido”!