A carta de Bolsonaro e Temer, ou o malandro “jeitinho” brasileiro.

“Penso que o peculiar modo nacional de se livrar de problemas, ou de falsificá-los, constitui o famoso jeitinho brasileiro”, afirmou Francisco de Oliveira.

Bolsonaro coleciona em seu mandato crimes em série contra a democracia e os direitos humanos. Suas atitudes de destruição da democracia sempre contaram com avanços e recuos, planejadamente calculados, de modo a levarem as instituições ao esgotamento.

Mas a atitude mais relevante de todos seus crimes contra a República foi a tentativa de golpe de Estado de 7/09/2021!

E o golpe fracassou! Seu fracasso e a decorrente “carta de desculpas” ao STF, escritas pela mão malandra de Temer, espelham um dos aspectos mais graves da prática da malandragem das classes dirigentes. Estampa o próprio “jeitão” das elites econômicas, civis e militares brasileiras.

O escárnio desta gente para com as leis e regramento democrático também se tipificou de forma claríssima no banquete do “dia seguinte” oferecido ao homem da “mão amiga”, cujo vídeo foi publicitado nas redes sociais.

A jornalista Vera Magalhães descreveu “Um jantar na casa do investidor Naji Nahas”, antigo especulador da Bolsa de Valores, preso pela Polícia Federal em mais de uma ocasião por golpes aplicados em São Paulo e no Rio.

“Foi a mostra mais eloquente e risonha de que o impeachment de Jair Bolsonaro não sairá”.

Leia-se: Foi dado um “jeitão” brasileiro num caso mais do que claro de Crime de Responsabilidade.

“Em torno da mesa e de vinhos estrelados se reuniram políticos, advogados, empresários, jornalistas, médicos e um humorista, André Marinho, que imitou o homenageado e o capitão, para gáudio da plateia. Mas será prudente, ou mesmo inteligente, tratar Bolsonaro como piada de salão? Não parece. No vídeo foi feito pelo marqueteiro de Temer, Elsinho Mouco, e enviado a jornalistas, André Marinho imita um abobalhado Bolsonaro reclamando da capitulação a que Temer o teria obrigado diante do Supremo Tribunal Federal, mas agradece ter tido a pele salva. O ex-presidente, vermelho, foi quem mais gargalhou, satisfeito da própria relevância”.

O arqui malandro ex-presidente Temer, por outro lado, encarna como ninguém “o homem cordial”, tão bem descrito por Sérgio Buarque de Holanda – para quem as relações pessoais e de afeto ou de ódio se sobrepõem à impessoalidade da lei e à norma social –a própria encarnação do jeitinho brasileiro!

Antônio Cândido tratou claramente do “jeitinho brasileiro” em “Dialética da malandragem”, um ensaio sobre “Memórias de um Sargento de Milícias”, romance que se passa no Rio, século XIX. Para ele, nossa sociedade é tão obscenamente desigual que qualquer crítica às classes dominadas não passa de preconceito – mais um – dos ricos. Nisto, ressalta Francisco Oliveira, o Mestre Cândido deixa de enxergar a malandragem que a partir das elites se espalha pelas ruas e chega até às favelas, e termina por impregnar todo nosso povo.

Eis a tese de Francisco de Oliveira: “o jeitinho é um atributo das classes dominantes brasileiras que se transmitiu às classes dominadas”. Pensar o Brasil sem levar em consideração os “jeitinhos e jeitões” tem-se mostrado inútil.

Este desrespeito às normas de civilidade e às leis vêm de muito longe e por isto incrustou-se em nosso DNA. Pois desde o Brasil Colônia, a classe dominante burlou de maneira permanente e recorrente as leis vigentes, por elas próprias instituídas em outros momentos históricos.

E é este tipo de drible, ou “bossa”, o arremate constante nas soluções formais propicia que propicia a arrancada rumo à informalidade generalizada. E se transforma, ao longo da nossa história em perpétua formação e deformação nacionais, saltando do exemplo e da prática das elites dominantes, até transformar-se em característica da classe média e também dos pobres.

Voltemos a Antônio Cândido e a Francisco de Oliveira. “Essa situação, que é social, se configura no malandro, o especialista no logro e na trapaça. O malandro, com sua modernidade truncada, foi primeiro o carioca. E esse carioca era geralmente pobre, mas não miserável. Como não poderia deixar de ser, era mulato: esgueirava-se por entre as classes e os estratos mais abastados, no típico – e falso – congraçamento de classes herdado do escravismo”.

O “jeitinho brasileiro” é a aptidão para fugir ou escapar das soluções formais. No caso presente do Governo Bolsonaro, a carta “esperta” de Temer representa, frente aos crimes cometidos pelo Presidente, uma fuga à legalidade das leis imperantes. O deboche do banquete, seu coroamento.

A burla das classes dominantes brasileiras é uma forma de adotar o capitalismo como solução incompleta na periferia do sistema. Incompleta porque o capitalismo trouxe para cá a revolução das forças produtivas, mas não as soluções formais da civilidade.

Na segunda metade do século XIX, o café liderava a expansão econômica. O café era a mercadoria mais importante do comércio mundial. Só foi desbancado dessa posição pelo petróleo, nos anos 40 do século XX. Mas o início da expansão do café se deu sobre o lombo dos escravos.

O “jeitinho” malandro se impôs, por exemplo, na abolição da escravatura. A Lei do Ventre Livre fez garotos e garotas negros libertados, mais mantidos com seus pais escravos! Não serviu para quase nada. Depois, a Lei dos Sexagenários. Aos 60 anos, quase 100% dos negros já tinham morrido esmagados. Até mesmo a chamada Lei Áurea, na verdade, manteve a escravidão. Criou uma superpopulação que o sistema produtivo não incorporou.

Qual foi o jeitão da classe dominante, no caso os cafeicultores, a partir do fim do escravismo, em 1888?

Em vez de incorporar os ex-escravos à cidadania, fornecendo-lhes meios de cultivar a terra e se incorporarem ao trabalho regular, concederam todas as vantagens de importação de mão de obra europeia. Malandramente, contornaram os problemas do fim do escravismo e se desresponsabilizaram pelos ex-escravos.

Surgia, então, o trabalho informal, um trabalho sem formas, que hoje ganhou denominações típicas do século XXI e do neoliberalismo: a uberização, o PJtismo, o empreendedorismo!

O “jeitão” da classe dominante obrigou os dominados a se virarem por meio do “jeitinho” do trabalho ambulante, dos camelôs, das faxineiras domésticas, dos entregadores “emboletados” em motos precárias ou, mesmo, em bicicletas.

“Getúlio Vargas, o estancieiro gaúcho que liderou a Revolução de 1930, tentou formalizar o jeitinho para acabar com o jeitão. Vale dizer: buscou civilizar a classe dominante para que o proletariado existisse. Criou uma legislação trabalhista avançada, mas a expansão capitalista seguiu desobedecendo as regras e, junto com os empregos formalizados pela nova legislação, a avalanche do trabalho informal engolfava todas as relações sociais” (Francisco Oliveira).

Nos dias de hoje, a legislação trabalhista, herança do getulismo, virou frangalhos. A informalidade se converteu no apelo à arbitrariedade e não raro, à exibições de crueldade e ao trabalho escravo.

Vivemos tempos de “sociedade líquida”, na acepção de Bauman. Nossa realidade já não comporta a empregabilidade! As pessoas sobram, o trabalho formal tende a sumir. Elas podem ser deixadas para morrer à míngua, serem absorvidas pelo narcotráfico ou serem executadas por milicianos ou policiais nos subúrbios.

Assim, o chamado trabalho informal tornou-se estrutural no capitalismo brasileiro. É ele que regula a taxa de salários, e o pagamento por serviços prestados!

Em todo e qualquer setor, em qualquer atividade, o “jeitinho” se impõe. O executivo, o apresentador da televisão, não são mais assalariados. São pessoas jurídicas, PJs, unicamente para que empresas paguem menos impostos. Advogados, dentistas, médicos e prestadores de serviços oferecem seus préstimos com ou sem recibo, e esse último é mais barato. Eles nem imaginam se organizar e lutar pelas taxas de impostos a serem recolhidos. Preferem o “jeitinho”.

O jeitinho é a regra não escrita, sem existência legal, mas seguida ao pé da letra nas relações micro e macrossociais.

Tornou-se tão corriqueiro que até mesmo a mão esperta de Temer já nem causa surpresa ou repulsa.

Afinal, Temer sabe muito bem que a sanha pelo Golpe de Estado de um paranoico como Bolsonaro não terminou. Apenas ele deu um “jeitinho” esperto, deu um tempo até a próxima tentativa!

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