A década de 1870 marca o nascimento do terrorismo russo. Com forte inspiração no anarquismo de Bakhunin, falecido em 1876, um grupo de intelectuais fundadores da organização clandestina “Vontade do Povo”, deixa as cidades para irem ao campo pregar a revolta aos camponeses.
Em pouco mais de um ano de atividades no campo, noventa e três de seus militantes estavam pres os e aguardando o dia do julgamento que seria em 24 de janeiro de 1878; neste dia, a revoltada Vera Zassulitch (que posteriormente abraçaria o marxismo e seria oposição aos bolcheviques) mata o general Trepov, governador de Petersburgo. Presa e torturada nada declara, o que deixou seus verdugos em dúvidas, tanto que foi absolvida num primeiro julgamento. Livre, parte para a clandestinidade.
Este atentado desencadeará ações repressivas e outros atentados que somente se esgotarão por exaustão. “Morte por morte”, proclama o intelectual Serguei Kravchinski, o qual executaria o general Mezentisov, chefe da polícia política russa.
Poucos meses após, Alexandre II cria a Okhrana, a arma mais eficaz de terrorismo de Estado que até então havia sido montada. Entretanto, após sobreviver a dois atentados, o próprio Alexandre II é assassinado pela “Vontade do Povo”, em 1881. Sofia Perovskaia, Jeliabov e seus companheiros envolvidos na execução, são presos, torturados e enforcados.
Em 1903, forma-se outra organização de combate, o Partido Socialista Revolucionário Russo. As execuções do chefe de polícia czarista Viacheslav von Plehve e a do grão-duque Sérgio Alexandrovich, irmão do finado Alexandre IIII e governador de Moscou, odiado por sua extrema crueldade, encerrarão a fase dos atentados. Estamos no ano de ruptura de 1905.
O poeta Kaliaiev foi o símbolo deste movimento desesperado. A clandestinidade obrigara-o viver na solidão e ele preso é enfocado aos 26 anos de idade. “No que me diz respeito, a condição indispensável à felicidade é preservar para sempre a consciência de minha perfeita solidariedade com vocês”, escreve a seus companheiros de cárcere. Torturado jamais delatou ninguém. O primeiro atentado ao grão-duque Sérgio falhara pois o mesmo Kaliaiev se negara a matar as crianças que o acompanham. Por outro lado, o escritor Savinkov se opôs a um atentado contra o almirante Dubassov, pelo risco de morte de inocentes no vagão que deveria ser dinamitado. Preso, poderia ter fugido da prisão, mas negou-se a atirar contra os guardas do presídio; foi enforcado.
Os conceitos marxistas chegaram com atraso à Rússia Czarista. Somente em meados da década de 1870 surgiu a primeira tradução de “O capital”; sua disseminação dentre a intelectualidade se difundiria basicamente após o assassinato de Alexandre II (1881) e sob o reinado de Alexandre III, de absoluta repressão e da anulação de todas as medidas reformistas do pai morto.
Na Rússia Czarista de Alexandre III e, posteriormente, na do também brutal Nicolau II, a essência de qualquer revoltado era livrar-se de um absolutismo e de uma aristocracia feudal que nem de longe admitiria a existência de uma constituição, dos direitos das gentes e que fortalecera o Estado vinculado à Igreja Ortodoxa.
Enquanto na Alemanha os preceitos marxistas haviam adquirido uma formatação acadêmica, aberta e parlamentar, na Rússia ele foi obrigado a ser desde o princípio clandestino, concentrado e estreito, cultivado à luz das sombras, dos exílios, execuções e torturas. Graças à brutalidade daqueles que o combatiam, o marxismo russo adquiriu algumas características do movimento terrorista dos anos 1870/80, expressos, por exemplo, no “O que fazer?”, livro escrito por Lênin em 1902. Diferentemente da Europa, diante das massas russas ignorantes e analfabetas, Lênin propôs com todas as letras que elas deveriam ser dirigidas por um núcleo duro de intelectuais revolucionários profissionais.
Vladmir Ulianov, que passaria à história como Lênin, tinha uma origem humilde, honrada e letrada. Seu pai, diretor de escola da província de Simbirsk, recebera um título de nobreza graças às reformas educacionais promovidas por Alexandre II. Com o novo czar, o digno pai de Lênin, que com enorme esforço pessoal estabelecera mais de quatrocentas escolas rurais, foi colocado para fora do ensino por suas ideias liberais.
Vladmir tinha um irmão mais velho, Alexander, que estudava na Universidade de São Petersburgo. Se Vladmir era reservado e pouco sociável, Sacha era brincalhão, emotivo, aberto para o mundo. Social- revolucionário e principiante no marxismo, ele envolveu-se com os poucos sobreviventes da organização terrorista que planejava a execução de Alexandre III. Foi preso com material explosivo e enforcado em 1886. Perante o tribunal o valente Sacha Ulianov afirmou: “Não possuímos classes sociais unidas que possam restringir o governo… Nossa intelligentsia é tão desorganizada e fisicamente tão fraca que no momento não possui condições para partir para a luta aberta… só pode defender seu direito de pensar através dos atos de terrorismo.”
De todo modo, a conspiração da qual Sacha participara foi o último gesto político do grupo “Vontade do Povo”, totalmente aniquilado.
O pai de Ulianov faleceu logo a seguir, vítima de um acidente vascular cerebral e Lênin, aos vinte anos, é obrigado a tornar-se o chefe da família. Um ano após, Vladmir teve que enfrentar outra tragédia. No dia mesmo do aniversário da execução de Sacha sua irmã Olga morre de tifo.
Cursava, então, direito na Universidade de Kazan. Ao participar de uma manifestação estudantil foi preso, enviado exilado à Sibéria. Ao ser libertado, por ser irmão de um terrorista morto, foi proibido de frequentar qualquer Universidade em território russo. Foi nesse período de extremas dificuldades que Lênin se aproximou do marxismo, dele extraindo um aprendizado distinto daquele de seu irmão mais velho.
Desde o princípio, assinala Gorki, a motivação essencial de Lênin era o ódio pelo sofrimento do povo, associado a uma paixão pelo combate que assumia uma forma curiosamente impessoal, fazendo-o a si mesmo considerar-se uma força histórica em conflito com outras do mesmo tipo. De certa forma estes fatores impediriam que o futuro líder da Revolução jamais se entregasse ao cepticismo, à autocomplascência ou à indiferença.
Em 1893, com vinte e três anos, Vladmir deixa Samara e busca residir em São Petersburgo. Lá conhecerá uma jovem militante marxista, Nadja Krupskaia, que será sua companheira por toda a vida. Desde então assumirá a liderança nos grupos socialdemocratas dos quais participa sob a alcunha de Lênin.
Vladmir Ulianov, aproveitando uma visita ao marxista teórico Plekhanov, exilado na Alemanha, viajou nos idos de 1895 até um sanatório em Davos (o mesmo que inspiraria “A montanha mágica” de Tomás Mann) para o tratamento de uma tuberculose esofágica, que jamais o abandonaria em vida.
Lênin retornou à Russia sendo preso ao serem descobertos livros proibidos num fundo falso de mala. Ao seu exílio na Sibéria, juntou-se Krupskhaia, presa também, logo após.
Aos trinta anos, Lênin procurava manter-se hígido, fugindo da bebida e dos cigarros. Sobre os mexericos e discussões entre os exilados assim se pronunciou: “Não há nada pior que esses escândalos entre os exilados. Para nós são um retrocesso terrível. Esses velhos (antigos militantes de “A vontade do povo”), estão com os nervos em pandareco. Imaginem o que já sofreram, os anos de cadeia, tortura. Não podemos permitir que escândalos desviem nossa atenção. O nosso trabalho, o verdadeiro trabalho, está por vir.”
Utilizando como tinteiros frascos feitos com pão envelhecido e escrevendo com o sobrenadante do leite, jamais deixou de se corresponder com seus companheiros em liberdade ou no exterior. Até mesmo sua mãe, Maria Aleksandrovna, serviu-lhe como correio.
Foi libertado sob condições restritivas; acontece que a partir de 1900, o risco de um militante político conhecido ser preso na Rússia era altíssimo. Lênin decide, então, partir da Rússia para Munique e lá editar um jornal de resistência, o “Iskra”, “A centelha”, e estabelecer os caminhos pelos quais a publicação entraria clandestinamente na Rússia. Como escritor e propagandista revolucionário, disse sobre Lênin seu companheiro Mirski: “Ele é talvez o escritor revolucionário que nunca disse mais do que quis dizer.” É impessoal, seco, duro, com o dom de produzir epítetos e slogans que permanecem na memória das pessoas.
Reportou seu amigo e escritor Máximo Gorki: “Os discursos falados ou escritos de Lênin sempre me davam a impressão de um brilho frio de raspas de aço, dos quais emanavam com simplicidade surpreendente, as formas evidentes da verdade.”
O segundo congresso do Partido Socialdemocrata Russo aconteceria no exterior, no ano de 1903. Foi quando se formou uma maioria que passaria para a história como os Bolcheviques e uma minoria, os Mencheviques. Líder dos Bolcheviques, o Congresso ocorreu sob a liderança de Lênin, num velho paiol infestado por ratos e sob a vigilância da polícia secreta czarista.
Em 1904, os Ulianov foram residir em Genebra. Enquanto isso, o descontentamento com o absolutismo czarista só fazia aumentar na Rússia, prenunciando o decisivo ano de 1905. Os camponeses espoliados pelos latifundiários invadiam terras e destruíam propriedades, a classe operária emergente nas piores condições de trabalho imagináveis e a agitação por reformas conduziram a uma gigantesca greve geral no sul da Rússia, como jamais se havia visto.
O ano de 1905, marcado pelos desastres russos na guerra contra o Japão, foi também o ano do grande massacre de 22 de janeiro. Depois dele a Rússia jamais voltaria a ser a mesma. Sob a liderança do sacerdote Gaspon, uma enorme massa de manifestantes postou-se frente o Palácio do Czar Nicolau II. Misturadas com bandeiras religiosas, surgiam aquelas que reivindicavam jornadas de oito horas, reforma agrária e constituinte. Por ordem pessoal do Czar foram fuziladas e massacradas milhares de crianças, mulheres e homens. Pela Avenida Niévski, de São Petsburgo, rios de sangue rolavam e coagulavam. Os corpos tardaram três dias para serem recolhidos e atirados em fossas rasas.
Dois meses após, ocorreu a revolta do encouraçado Potenkin e a greve operária de Odessa. Ambas foram reprimidas com total brutalidade.
De todas as maneiras, calcula-se que durante o ano de 1905 mais de 3 milhões de pessoas se manifestaram contra o czarismo. Referindo-se a esse momento, disse Lênin posteriormente: “Foi só então que a velha Rússia rude, patriarcal, religiosa, submissa livrou-se do passado; só então o povo russo conseguiu receber uma educação verdadeiramente revolucionária.”
Marx das últimas décadas do século XIX foi o profeta da produção, do progressismo. O progresso que só deixaria de ser torturante após o apocalipse industrial, quando chegaria o dia da reconciliação. O proletariado aí usaria a sua riqueza para o bem universal. “Só os proletários totalmente excluídos dessa afirmação de sua personalidade são capazes de realizar sua completa autoafirmação. Por suas dores humanas ele será o Cristo a resgatar o pecado coletivo da alienação.” “A ação comunista só pode existir como realidade histórica planetária”. “O juiz é a história, o executor da sentença, o proletariado”.
Logo, a exigência ética é a base do sonho marxista e sua verdadeira grandeza. Ela colocou o trabalho, sua degradação injusta e sua dignidade profunda no centro da reflexão. Rebelou-se contra a redução do trabalho a uma mercadoria e do trabalhador a um objeto. Lembrou aos privilegiados que seus privilégios não eram divinos, nem a propriedade um direito eterno. Denunciou uma classe cujo crime não é tanto ter tido o poder, quanto tê-lo utilizado para os fins de uma sociedade medíocre e sem verdadeira nobreza. Ao exigir para os trabalhadores a verdadeira riqueza, que não é a do dinheiro, mas a do lazer ou da criação, o marxismo reivindicou a qualidade de vida do homem. “Um fim que tem necessidade de meios injustos não é um fim justo”, dissera Marx.
Os primeiros anos do século XX foram de debates acirradíssimos sobre as perspectivas do marxismo na Europa. De um lado, Edward Bernstein propôs uma revisão da teoria marxista. Ele, ao contrário de Marx, julgava evidente que a expectativa de eliminação da classe média fora totalmente frustrada. No futuro, dizia Bernstein, a pequena burguesia somente tenderia a crescer sob o capitalismo. Que os capitalistas se expandiriam e que as crises do capitalismo estavam se tornando menos sérias, pois o sistema possuía capacidade de absorvê-las. Que a catástrofe final prevista por Marx jamais ocorreria, pois o capitalismo monopolista conseguiriam ferramentas para evitá-las. Além disso, ele levantava questões que o marxismo não abordara, pois o ponto de vista científico não fornecia motivações éticas e na verdade, ocultava uma doutrina dos direitos naturais do homem. Enfim propunha o crescimento da consciência e conciliação em oposição ao da revolução proletária.
Lênin reagiu contra toda a proposta revisionista de Bernstein do modo mais furioso. Para ele, essas teorias somente fariam abalar as convicções dos revolucionários russos e tornou-se, então, a cabeça mais influente dentre aqueles que denunciavam como heresias críticas às teorias de Marx.
Marx, bom estrategista colocara primeiramente a questão da tomada do poder. Lenin nada tem a ver com os jacobinos franceses que acreditavam nos princípios e na virtude- e que morreram por isto. Lenin acreditava na revolução e na eficácia! Como Hegel, Marx e Lênin juntam-se contra a moral formal, dessa forma, Lenin lutou todo o tempo contra as formas sentimentais de moral revolucionária. Negou a espontaneidade das massas, pois a doutrina socialista supõe uma base científica que só os intelectuais podem aportar. Quando diz que é preciso apagar qualquer distinção entre o intelectual e o operário, é preciso traduzir: pode-se não ser proletário e conhecer melhor que os mesmos os seus interesses. A revolução antes de ser econômica ou sentimental, ou mesmo política, é militar.
No ambiente russo, Lênin teceu combate com as ideias propriamente russas. Em primeiro lugar combatia os denominados populistas, que acreditavam na capacidade revolucionária de um campesinato unificado. Mais tarde, teve que se posicionar contra os assim chamados “marxistas economicistas”, que propunham a luta sindical como prioritária à política.
Após a derrota do ano 1905, Lênin foi o líder mais importante dentre os socialdemocratas russos a crer que a história se faz com homens, atitudes e as classes sociais em luta. “Das massas surgirá um número cada vez maior de revolucionários profissionais… Num sistema despótico como o russo não se pode ter democracia em um partido revolucionário, como não se pode tê-la em qualquer instituição… Os socialistas alemães podem se dar ao luxo da democracia, pois até seus congressos são públicos.”
“1905 é um brilhante precursor da História, o arauto da Grande Revolução”, diria o brilhante jovem revolucionário, futuro comandante do Exército Vermelho, Lev Trotski.